Constitucionalismo abusivo e casuísmo eleitoral: PEC do Estado de Emergência
14 de julho de 2022, 13h19
A expressão "constitucionalismo abusivo" foi cunhada por David Landau em 2013. Na origem, o autor a empregava para referir "o uso dos mecanismos de reforma constitucional para erodir a ordem democrática"[1] ou, noutro dizer, "o uso dos mecanismos de mudança constitucional a fim de tornar um Estado significativamente menos democrático do que era antes" [2]. O que isso significa? Constitucionalismo abusivo é conceito de síntese: emprega-se, segundo Landau, para aludir à introdução de mudanças normativas sutis, progressivas, voltadas a criar obstáculos para a alternância no poder, para inibição da atuação dos Tribunais e outros órgãos de controle, para centralizar e prolongar o maior tempo possível a direção do Poder Executivo enquanto são mantidas as aparências de regularidade constitucional e da democracia formal.
Constitucionalismo abusivo é abordagem analítica nova para o abuso de poder no âmbito da competência de reforma constitucional. Apreende vício contextual, revelado a partir da consideração pragmática da incidência da norma reformadora no mundo dos fatos, sobretudo no equilíbrio dos Poderes em ambiente democrático e na tutela dos direitos fundamentais, sendo recurso heurístico capaz de flagrar a ilegitimidade e a regressividade de alterações constitucionais incrementais e o caráter autocratizante de seus fins no curso do tempo.
No constitucionalismo abusivo a retórica liberal é empregada para alcançar fins iliberais; a retórica democrática é usada para atingir a concentração autoritária do poder; alterações triviais ou secundárias, somadas e em sucessão, perseguem o "entrincheiramento autoritário", a fragilização de instituições sociais, de controle ou do próprio debate público equitativo, e com isso minam a democracia e a participação cidadã esclarecida. Perigos e efeitos que muitos não identificam em iniciativas isoladas, o que dificulta a reação no âmbito nacional e internacional.
O conceito de constitucionalismo abusivo alerta para a necessidade de identificar interações normativas e institucionais e observar o efeito acumulado de reformas constitucionais sucessivas. Alerta também para a confiança exagerada no papel contramajoritário e progressista das Cortes Constitucionais: elas também podem se domesticadas pelo poder político e tornarem-se "agentes do retrocesso" [5]. Salienta que eleições são importantes, mas que a governança democrática vai muito além da simples formalidade de eleições regulares.
Em vários países, a exemplo da Venezuela, da Hungria, da Polônia, do Egito, houve neste século retrocesso democrático e constitucionalismo abusivo, sem que deixassem de ocorrer eleições rotineiras. Há democracia de fachada, com perda grave de substância e vigor da democracia real. Em muitos casos, o populismo e o nacionalismo estão na base de legitimação de governos que perseguem insistentemente a redução do pluralismo e a concentração de poder na exaltação de um líder redentor.
O conceito de constitucionalismo abusivo é remédio à ingenuidade formalista e ao neoconstitucionalismo vulgar. Exige dos juristas mais do que simplesmente observar a vigência retórica de discursos constitucionais, regras de competência ou institutos constitucionais isolados. Estimula o realismo pragmático e uma visão abrangente do dinamismo histórico da Constituição, que é compromisso intergeracional e, mais do que palco de qualquer governo, é estrutura ordenadora da sociedade e do Estado ao longo do tempo, fundamento inclusive para a proteção de interesses das futuras gerações, formadas por indivíduos que não existem e não participam ainda do processo político. [6].
Esse conceito — constitucionalismo abusivo —, que invoco desde 2015, permite identificar problemas constitucionais residentes na PEC 1/2022, apensada à PEC 15/2022 na Câmara dos Deputados, em vias de acelerada aprovação, apelidada na imprensa de "PEC do Desespero", "PEC Kamikaze", "PEC Eleitoral" e "PEC do Estado de Emergência".
Casuísmo eleitoral e erosão constitucional
No próximo dia 2 de outubro, isto é, no prazo de 80 oitenta dias, os brasileiros comparecerão às urnas para escolher o presidente da República, governadores, senadores e deputados federais, estaduais e distritais. Eventual segundo turno para os cargos executivos ocorrerá no dia 30 de outubro.
Esse processo eleitoral possui disciplina tanto na Constituição quanto na legislação infraconstitucional. Em qualquer caso, a alteração do estatuto das eleições deve observar uma garantia individual eleitoral fundamental: a regra da anualidade, prevista no artigo 16 da Constituição, segundo a qual "a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência".
O objetivo da regra é de fácil compreensão: mudanças nas regras eleitorais devem ser feitas com no mínimo um ano de antecedência. Trata-se de garantia para a segurança jurídica das eleições e para evitar o casuísmo e a competição eleitoral desleal.
O artigo 16 da Constituição Federal é garantia fundamental do cidadão eleitor, que não pode ser mitigada, pois, como ressalta Eneida Salgado, "esse artigo configura uma 'muralha da democracia', uma exigência da predeterminação das regras do jogo da disputa eleitoral com um ano de antecedência para evitar casuísmos e surpresas, em nome da estabilidade". [7]
O princípio da anterioridade da lei eleitoral, previsto no artigo 16 da Constituição, é mais abrangente do que aparenta a sua interpretação literal. Emendas constitucionais que alterem ou afetem as eleições também devem ser aprovadas até um ano antes das eleições para surtirem efeitos na data de sua publicação, ou terão a sua eficácia no tempo diferida, sendo aplicáveis apenas nas eleições seguintes. Por igual, instruções normativas da Justiça Eleitoral, de natureza administrativa ou não, mas que interfiram no exercício dos direitos eleitorais, devem respeitar o princípio da anterioridade ou anualidade, preservando a estabilidade das regras das eleições.
Segundo o STF, "o artigo 16 representa garantia individual do cidadão-eleitor", "a quem assiste o direito de receber, do Estado, o necessário grau de segurança e de certeza jurídicas contra alterações abruptas das regras inerentes à disputa eleitoral" (ADI 3.345, rel. min. Celso de Mello).
Também decidiu a corte que o princípio da anualidade eleitoral contém, em si, "elementos que o caracterizam como uma garantia fundamental oponível até mesmo à atividade do legislador constituinte derivado, nos termos dos artigos 5º, § 2º, e 60, § 4º, IV", a burla ao que contido no artigo 16 ainda afronta os direitos individuais da segurança jurídica (CF, artigo 5º, caput) e do devido processo legal (CF, artigo 5º, LIV) (ADI 3.685, rel. min. Ellen Gracie, j. 22-3-2006, P, DJ de 10/8/2006).
A aplicação do princípio da anterioridade eleitoral, decidiu a corte, "não depende de considerações sobre a moralidade da legislação". "O artigo 16 é uma barreira objetiva contra abusos e desvios da maioria (…). A jurisdição constitucional cumpre a sua função quando aplica rigorosamente, sem subterfúgios calcados em considerações subjetivas de moralidade, o princípio da anterioridade eleitoral previsto no artigo 16 da Constituição, pois essa norma constitui uma garantia da minoria, portanto, uma barreira contra a atuação sempre ameaçadora da maioria" (RE 633703 MG, rel. min. Gilmar Mendes, j. 23/3/2011).
Essa garantia fundamental — assim como os direitos fundamentais — possui eficácia abrangente, sendo aplicável a todas as normas legais ou administrativas que possam afetar processos eleitorais. E, mais, abrange também as chamadas "viragens jurisprudenciais".
Conforme assentou o STF, no RE 637.485, "no âmbito eleitoral, a segurança jurídica assume a sua face de princípio da confiança para proteger a estabilização das expectativas de todos aqueles que de alguma forma participam dos prélios eleitorais". A importância fundamental do princípio da segurança jurídica para regular transcurso dos processos eleitorais está plasmada no princípio da anterioridade eleitoral positivado no artigo 16 da Constituição. (…) Em razão do caráter especialmente peculiar dos atos judiciais emanados do Tribunal Superior Eleitoral, os quais regem normativamente todo o processo eleitoral, é razoável concluir que a Constituição também alberga uma norma, ainda que implícita, que traduz o postulado da segurança jurídica como princípio da anterioridade ou anualidade em relação à alteração da jurisprudência do TSE. Assim, as decisões do Tribunal Superior Eleitoral que, no curso do pleito eleitoral (ou logo após o seu encerramento), impliquem mudança de jurisprudência (e dessa forma repercutam sobre a segurança jurídica), não têm aplicabilidade imediata ao caso concreto e somente terão eficácia sobre outros casos no pleito eleitoral posterior" (RE 637485, rel. min. Gilmar Mendes, Pleno, j. 1/8/2012).
O problema é que a legislação eleitoral em vigor, ainda sem as alterações da PEC 1/2022 ou 15/2022, refere ao conceito de "estado de emergência", sem defini-lo e sem encontrar sobre ele base constitucional objetiva.
Confira-se o artigo 73 da Lei 9.504, de 30/09/1997, que estabelece normas para as eleições:
Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:
§ 10. No ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa. (Incluído pela Lei nº 11.300, de 2006)
O que pretende o governo federal é, em sede constitucional, carimbar como "estado de emergência" o período que inicia com a promulgação da Emenda até a data de 31 de dezembro de 2022. Expediente artificial para ladear as limitações eleitorais vigentes e contornar o artigo 16 da Constituição Federal.
A alteração constitucional pretendida insere-se como exemplo típico de constitucionalismo abusivo. Além de casuística, voltada precipuamente a alcançar efeitos no período eleitoral, cria "estado de emergência" artificial para violar norma voltada a "evitar a utilização abusiva ou casuística do processo legislativo como instrumento de manipulação e de deformação do processo eleitoral" (ADI 354, relatoria ministro Octavio Gallotti, DJ 12.02.93).
Insere desequilíbrio na competição eleitoral justa, isto é, promove competição eleitoral desleal, alterando as regras do jogo em pleno jogo, com favorecimento direto do detentor atual do poder político. Fundamenta o suposto "estado de emergência" em agravamento do preço dos combustíveis no exato momento em que o preço dos combustíveis começa a declinar fortemente, seja pela redução dos tributos estaduais e federais, seja pela desaceleração das economias no plano internacional.
Viola o devido processo de elaboração das normas reformadoras, sendo na Câmara apensada e Proposta em fase adianta de avaliação (PEC 15/2022), suprimindo a instância da Comissão de Constituição e Justiça e prazos essenciais para o debate, e, no Senado, desconsiderando o interstício que deve marcar os dois turnos de discussão e aprovação.
A PEC da Emergência (eleitoral) concede benefícios adicionais a grupos de interesse ativos eleitoralmente, sem exigência de comprovação de efetiva despesa com combustíveis, e sem controle disciplinado em lei. Amplia benefícios sociais meritórios, porém apenas até o fim do ano; cria compensações para situações já vigentes, misturando o razoável e o irrazoável para inviabilizar o debate parlamentar equilibrado.
Deve ter a sua eficácia protraída para após o período das eleições, ou após decorrido um ano da data de sua vigência, à semelhança do que já ocorreu no passado com a Emenda Constitucional 52, de 08/03/2006, que alterou a regra das coligações eleitorais (ADI 3685, Rel. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, julgado em 22/03/2006), tendo em conta o evidente embuste da proclamação do "estado de emergência" apenas para o período eleitoral, abrindo perigosíssimo precedente para este e para futuros processos eleitorais.
Evitar autocracias eleitorais, estados apenas aparentemente democráticos, cuja competição pelo poder seja um vale-tudo normativo, é algo que deveria ser contido de forma imediata pelo próprio Congresso, por ser de seu interesse preservar o equilíbrio de poderes. Mas quando isso não ocorre, e o Parlamento e o Executivo comportam-se como "poderes selvagens" (Luigi Ferrajoli), desvalorizando a "dimensão constitucional da democracia" [8], sobra apenas aguardar que a Suprema Corte seja rapidamente provocada e tenha tempo para reagir. Ou apenas nos restará, como diz o sábio Manuel Bandeira, tocar um tango argentino.
Notas:
[1] LANDAU, David. Abusive Constitutionalism. 47 UC Davis Law Review 189 (2013).
FSU College of Law, Public Law Research Paper N. 646. Disponível on-line: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2244629
[2] LANDAU, David. Abusive Constitutionalism, cit, p. 195.
[3] Sobre o tema dos limites materiais implícitos, ver o clássico SAMPAIO, Nelson. O Poder de Reforma Constitucional. 3ª.ed. Rev. Uadi Bulos. Belo Horizonte Nova Alvorada Edições Ltda, 1994, pp. 89-108.
[4] BERNAL, Carlos. Unconstitutional constitutional amendments in the case study of Colombia: An analysis of the justification and meaning of the constitutional replacement doctrine, International Journal of Constitutional Law, Volume 11, Issue 2, 1 April 2013, Pages 339–357, https://doi.org/10.1093/icon/mot007
[5] DIXON, Rosalind & LANDAU, David. Abusive Constitutional Borrowing: Legal Globalization and the Subversion of Liberal Democracy. Oxford: Oxford University Press, 2021, 6.
[6] Sobre o tema da Constituição como compromisso intergeracional, ampliar em MODESTO, Paulo. Uma Introdução à Teoria da Justiça Intergeracional e o Direito. In: Café com Prosa: crônicas de direito e reforma do estado. Rio de Janeiro: Ed. GZ, 2021, pp. 296-312.
[7] SALGADO, Eneida Desiree. Princípios constitucionais eleitorais. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 222.
[8] FERRAJOLI, Luigi. Poderes selvagens: a crise da democracia italiana. Trad. Alexandrer Araujo de Souza. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 19.
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