Opinião

Rescisão do acordo de colaboração premiada substancialmente cumprido

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13 de julho de 2022, 16h04

O acordo de colaboração premiada, conforme conceitua o artigo 3º-A da Lei 12.850/2013 (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019), é um "negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse públicos", ou seja, por tratar-se de negócio jurídico processual, é materializado por contrato, cuja regulação está prevista no Código Civil brasileiro.

No ramo dos contratos, a liberdade de ajustar o conteúdo, desde que não contrarie o disposto em lei, é materializada pelo princípio da autonomia da vontade. Segundo explica o civilista Orlando Gomes [1], no ramo dos contratos, o regramento legal, geralmente, têm caráter subsidiário a vontade dos contratantes, aplicando-se somente no caso de silêncio ou carência das partes. Portanto, podem regular conforme seus interesses, de forma diversa ou oposta àquela prevista em lei. Em suma, são livres para pactuarem o objeto do contrato, desde que respeitem os limites legais categóricos.

Diante desse livre-arbítrio legal, dentre as cláusulas que cabem às partes pactuarem quando da celebração do acordo, estão as destinadas às hipóteses de rescisão. No ponto, cumpre esclarecer que a rescisão somente poderá ser cogitada quando a colaboração premiada deixar de ser uma proposta e passar a ser um acordo, ou seja, quando as partes anuírem com as cláusulas e todo o teor do documento, através da assinatura e a respectiva homologação judicial, tornando-o um negócio jurídico perfeito, antes disso, tratar-se-á de resolução [2].

Assim, diante da natureza jurídica dos acordos, cujo regramento está previsto no Código Civil brasileiro, ante a rescisão do instrumento, alguns critérios deverão ser observados, dentre eles, os princípios da função social, boa-fé objetiva e conservação do negócio jurídico, que materializam a teoria do adimplemento substancial, construída a partir da doutrina e jurisprudência e reconhecida na IV Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal, sob a coordenação-geral do Ministro Ruy Rosado de Aguiar, através do enunciado nº 361 "O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475" [3].

Desse modo, a teoria surge como mecanismo a limitar a rescisão do contrato unilateralmente, trazendo, assim, segurança jurídica aos contraentes de que será efetivamente prezado o princípio da conservação do negócio jurídico e buscado o reequilíbrio das relações contratuais, preconizando que não seja rescindido o contrato substancialmente cumprido, de modo que a parcela inadimplida seja ínfima perante o todo.

No entanto, tal teoria não deve ser vista apenas sob o aspecto quantitativo (x por cento do todo), mas, também, qualitativo, conforme preconizado no enunciado nº 586, editado na VII Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal, sob a coordenação-geral do ministro Ruy Rosado de Aguiar: "Para a caracterização do adimplemento substancial (tal qual reconhecido pelo Enunciado 361 da IV Jornada de Direito Civil – CJF), levam-se em conta tanto aspectos quantitativos quanto qualitativos". Na prática, Carlos Roberto Gonçalves [4] exemplifica que, em uma construção de um prédio com vários andares, pode ser classificada como algo gravíssimo uma única omissão, como não colocar elevadores, haja vista que traria dificuldades ou até impossibilitaria o uso; já diversos defeitos imperceptíveis que não prejudicariam a obra, considerados de pouca monta, aplica-se, então, a teoria do adimplemento substancial.

Um dos principais pilares para a aplicação da referida teoria do adimplemento substancial para impedir a rescisão da colaboração premiada substancialmente adimplida está na segurança jurídica do instituto, pois muito embora também seja utilizado como instrumento de defesa, o instituto foi criado para, acima de tudo, auxiliar as autoridades para desmantelar organizações criminosas que atuam no seio da administração pública e coibir novas práticas criminosas, além de reparar o dano causado ao erário. Ou seja, assim como há interesse pelo colaborador em cooperar a fim de receber premiações, há, acima disso, o interesse estatal em que o colaborador venha a aderir ao instituto, pois o Estado sozinho não obteve sucesso em coibir a prática dos crimes sofisticados. No entanto, justamente pelo interesse estatal, deve ser primada a segurança jurídica ao colaborador que está na situação de vulnerabilidade, porquanto, na visão de Amanda da Mata [5], a precariedade dos acordos firmados é manifestamente preocupante, pois

"Não basta a renúncia ao direito de silêncio e o compromisso de dizer a verdade, o colaborador ainda estará sujeito à homologação, quiçá à revisão, e, ao total arrepio da segurança jurídica, à rescisão do pacto de colaboração ante a eventual descoberta de pontos omitidos ou mal explicados. Tudo isso sem qualquer prejuízo de contaminação de ilegalidade às provas apresentadas."

A situação acima exposta retrata o que ocorreu no case amplamente divulgado pela mídia, envolvendo a rescisão de contrato de colaboração premiada, em que um dos colaboradores possivelmente omitiu-se em comunicar ao MPF acerca de ato ilícito que tinha conhecimento, além de possivelmente ter praticado crime de corrupção ativa. A defesa, inclusive, alegou o adimplemento substancial do acordo, de modo que não caberia a rescisão, mas, eventualmente, a revisão proporcional, preservando, assim, o compromisso [6]. No entanto, ainda assim, houve a submissão ao Supremo Tribunal Federal para a homologação da rescisão pela Procuradoria-Geral da República que, para afastar a aplicação da teoria, argumentou: "a conduta desleal ou de evidente má-fé por uma das partes do acordo de colaboração, da qual resulte o seu descumprimento parcial, é relevante o suficiente para afastar a alegação de que se trata de descumprimento de menor importância" [7].

Na contramão, Alexandre Morais da Rosa [8] discorre que o inadimplemento é gerado pela armadilha das cláusulas abusivas impostas pelo Estado e, assim, revela a crítica:

"A crítica que se faz é que as condições impostas pelo Estado configurem verdadeira armadilha plantada para capturar, de qualquer jeito, quando já se sabe que o adimplemento é impossível, mas a negociação é forçada sob o é pegar ou largar. Trata-se de expediente usado para atrair e, depois descumprir, afinal, se trata de bandidos. Quase algo como se eles traem, nós também podemos trair. A ocorrência de dolo bilateral sem boa fé. O desafio é pactuar cláusulas democráticas, pois da maneira como estão sendo avençadas, por capricho podem ser revistas."

Nesse sentido, evidente a atuação abusiva do Estado, como "credor" do negócio jurídico, ao inobservar o preceito básico de cooperação para manutenção do acordado, impondo cláusulas impraticáveis para rescindi-lo, sob o argumento de inadimplência. Acerca do dever de cooperação, discorrem os civilistas Gustavo Silveira Borges e Cristina Stringari Pasqual [9]:

"O dever de cooperação no contrato determina que as partes devem agir de forma a obterem um objetivo comum que é o desenvolvimento justo e equilibrado do negócio. Diante disso, uma vez inexistindo a cooperação mútua, pode surgir desequilíbrio negocial e até mesmo inadimplemento contratual."

Inclusive, o desequilíbrio negocial se dá, quando se exige expertise pelo colaborador sobre o que constitui ilicitude, de modo que, eventuais fatos omitidos podem não constituir crime aos olhos do colaborador, o qual sequer imagina que tal desconhecimento pode custar a manutenção do acordo. A extensão da omissão e o grau de comprometimento que ela traz para o adimplemento total sequer é averiguado, tampouco o desequilíbrio acima retratado, em evidente contrariedade à cooperação acima explicitada. No ponto, André Luis Callegari [10] aponta contundentemente:

"O conhecimento da ilicitude em matéria penal não é tarefa fácil, nem mesmo para expertos na área criminal, o que levará, muitas vezes, a uma suposta omissão em fatos narrados pelo colaborador que ele julga não relevante, mas que na ótica ministerial o seriam, ou seja, deveriam ter sido relatados."

Ou seja, a rescisão da colaboração premiada deve ser a última ratio, razão pela qual sua aplicação é condicionada à perfeita configuração e correlação do incumprimento previsto em cláusula. Nesse cenário, a verificação do inadimplemento não pode ser feita de maneira uniforme, aplicando-se fórmula exata, mas sim, analisado individualmente pelo Juiz, verificando a extensão da inadimplência, de modo que faça preponderar a melhor solução mútua aos contraentes. E para essa verificação, deve haver a abertura da ampla defesa e do contraditório, a fim de que as partes e, principalmente o colaborador, possam exprimir o que o levou ao descumprimento, qual a expectativa do credor referente àquela parcela faltante, para verificar se há realmente a necessidade de rescisão ou se a aplicação da teoria já é suficiente para a conservação do negócio jurídico. Nesse sentido é a fala de Paula Yurie Abiko [11]:

"Observa-se, com base nos acordos homologados no âmbito da Operação Lava Jato, o seguimento de um procedimento específico em caso de rescisão do acordo de colaboração, no qual as partes são intimadas a prestar justificação sobre os fatos, com o intuito de assegurar o contraditório e ampla defesa, demonstrando-se essencial a oitiva dos colaboradores nos casos concretos a ponto de averiguar os fatos arguidos e as hipóteses efetivas de cabimento de uma rescisão dos acordos."

Após isso, caso seja verificado que o inadimplemento não preencheu perfeitamente a cláusula de rescisão, esta última solução não deve ser imediata, mas sim, a repactuação da premiação ao colaborador, conhecida como recall, proporcional a efetividade da colaboração prestada, conforme Vinicius Gomes Vasconcellos [12] preceitua:

"A não realização de parte das obrigações assumidas, em regra, não deve ocasionar a não concessão de todos os benefícios acordados, mas somente a sua redução, em conformidade com os critérios de análise da efetividade da colaboração no momento do sentenciamento, especialmente se houver justificativa razoável apresentada pelo imputado."

Além disso, a verificação não pode ficar restrita à parcela que foi inadimplida, mas deve ser estendida ao que foi efetivamente cumprido, verificando quais as consequências positivas, se a colaboração prestada até então, de fato auxiliou as autoridades públicas. Ao encontro disso, o item 38 da própria Orientação Conjunta nº 01/2018 do MPF [13]:

"É recomendável a inserção de cláusula com previsão de sanções ao colaborador que omitir informações pontuais, quanto a um elemento probatório ou a agentes diversos, circunstância que pode não ensejar, por si só, a rescisão do acordo, caso fornecida a devida complementação e esclarecimentos, independentemente da aplicação de penalidades pela omissão."

No mesmo sentido, é o posicionamento, inclusive, do renomado profissional da área André Luis Callegari [14]:

"Deve ser levado em conta tudo o que foi entregue na colaboração (adimplemento substancial), ou seja, se grande parte do acordo foi cumprido e possibilitou a abertura de inúmeros inquéritos exitosos, rescindir o acordo por uma omissão não seria razoável. Aqui, dentre outros princípios, feriríamos o da proporcionalidade e o da razoabilidade. Na própria aplicação da pena, o princípio da proporcionalidade tem aplicação, isto é, a pena deve ser proporcional ao fato praticado, ou melhor, em relação ao bem jurídico tutelado e a lesão que este sofre. De acordo com isso, não seria proporcional rescindir um acordo que gerou a descoberta de vários fatos delitivos por apenas alguma omissão."

Portanto, a teoria do adimplemento substancial deve ser aplicada com o propósito de assegurar a estabilidade do instituto da colaboração premiada, pois através dela, os critérios absolutos de cumprimento total ou, automaticamente, a rescisão são limitados, preconizando, assim, a análise, caso a caso. Iniciando-se pelo todo pactuado pelas partes, seguido da parcela inadimplida se ela, de fato, prejudicou ou não o objeto do acordo e, por último, o exito da grande parte do acordo cumprido e, a partir dessa verificação, ser ofertado ao colaborador, ao menos, as premiações proporcionais, através de uma renegociação (recall), abrindo espaço para que o colaborador complemente as suas declarações e, em contra partida, sejam incrementadas reparações, multas e aumento dos juros. Do contrário, estar-se-ia indo de encontro a todos os princípios acima discorridos, de viés civilista, que regem os negócios jurídicos e aplicam-se aos acordos de colaboração premiada, fazendo, assim, valer a ultrapassada sistemática inquisitorial, ainda presente em nosso falho sistema penal.


[1] GOMES, Orlando. Contratos. 27ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 20.

[2] CARVALHO, Marília Araujo Fontenele de. Apontamentos sobre hipóteses resolutivas da colaboração premiada. In: CALLEGARI, André Luis. Colaboração Premiada: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 228-229.

[3] BRASIL. Conselho da Justiça Federal. Enunciado nº 472. IV Jornada de Direito Civil, [S. d.].

[4] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Contratos e atos unilaterais. v. 3. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 195.

[6] BRASIL, STF, Petição 7003, Petição para homologação da rescisão do acordo, p. 23-26.

[7] Ibid., p. 25.

[8] ROSA, Alexandre Morais. Para entender a delação premiada conforme a teoria dos jogos: Táticas e estratégias do negócio jurídico. Empório Modara: Florianópolis, 2018, p. 332.

[9] BORGES, Gustavo Silveira; PASQUAL, Cristina Stringari. O dever de cooperação nas relações contratuais. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 971, set. 2016, p. 160.

[10] CALLEGARI, André Luis. Colaboração premiada: breves anotações críticas. In: CALLEGARI, André Luis. Colaboração Premiada: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 22.

[11] ABIKO, Paula Yurie. A retratação e rescisão nos acordos de colaboração. Canal Ciências Criminais: [S. l.], 2018, [S. p.].

[12] VASCONCELLOS, Vinicius Gomes. Colaboração premiada no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 257.

[13] Id. Ministério Público Federal (2ª e 5ª Câmaras de Coordenação e Revisão – Combate à Corrupção). Orientação Conjunta nº 1/2018. Acordos de Colaboração Premiada. Brasília, 23 mai. 2018, p. 12-13.

[14] CALLEGARI, 2019, p. 19.

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