Ambiente Jurídico

Autos de infração ambiental com base em sensoriamento remoto

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  • é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU) advogada mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR professora de Direito Ambiental pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

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9 de julho de 2022, 8h02

Dentre os debates nacionais, sobretudo entre os órgãos de meio ambiente, pairam questionamentos sobre a legalidade na lavratura de autos de infração em razão de ilícitos ambientais com base em laudos ou relatórios de fiscalização gerados com dados de sensoriamento remoto ou outras tecnologias.

Spacca

Os regulamentos mais antigos, dos órgãos ambientais, sobre o assunto da instrução técnica acerca da peça de acusação da infração ambiental reportam, no mais das vezes, a necessidade da presença física do agente fiscal para a realização de vistorias e constatação in loco da infração, como forma de validação da fé pública conferida ao servidor público responsável pela constatação do ato ilícito.

À vista de que a tecnologia foi fortemente incrementada nas últimas décadas e cada vez mais, é possível, com clareza afirmar, que os computadores, satélites e máquinas conseguem ter uma precisão igual e muitas vezes melhor que a do olho humano, de modo que essa polêmica merece um aprofundamento jurídico para delinear os contornos interpretativos adequados para a atuação da fiscalização ambiental.

De fato, a verificação, à distância, de um desmatamento considerando imagens de satélite com altas resoluções, a contabilização de poligonais de áreas desmatadas e embargadas, a verificação de tipologias de vegetação nativa/exótica, data da prática de infração dessa natureza, o exercício de atividades sem licenciamento, mortandade de animais silvestres, destruição de flora e fauna, lançamento de efluentes, dentre tantas outras situações, podem perfeitamente ser registradas e contabilizadas por equipamentos eletrônicos, cujas tecnologias são altamente confiáveis.

De início cumpre trazer à reflexão o fato de que em centenas de situações há uma impossibilidade, de fato, da presença do agente público no local da ocorrência do ilícito ambiental. Por outro lado, deve-se colocar na balança a economicidade e ganho de escala que esses usos permitem, coibindo com muito melhor eficiência as práticas ilícitas e consequentemente os danos ambientais.

Cita-se ainda o número não raro reduzido de agentes fiscais, ao que se soma a intensa dinâmica dos eventos infracionais e as questões logísticas de cobertura de todo o território nacional, seja em terras, seja no extensíssimo território marítimo. Não se pode tirar de vista as questões ambientais em si que, por força de diluição, ventos, correntes, dentre outros, podem rapidamente desconfigurar os elementos caracterizadores da infração, como é o caso específico do lançamento de efluentes líquidos, com cargas poluidoras.

A questão, portanto, a saber é se a lavratura de auto de infração, que tem a sua base jurídica fundada na fé pública do agente fiscal, pode ter como fundamento, verificações eletrônicas com ou sem a validação de mãos humanas investidas do poder de fiscalização ambiental.

A legislação de âmbito nacional, retratada pela Lei 9.605/98, estabelece:

"Art. 70. Considera-se infração administrativa ambiental toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente.

§ 1º. São autoridades competentes para lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo os funcionários de órgãos ambientais integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente – Sisnama, designados para as atividades de fiscalização, bem como os agentes das Capitanias dos Portos, do Ministério da Marinha.

§ 2º. Qualquer pessoa, constatando infração ambiental, poderá dirigir representação às autoridades relacionadas no parágrafo anterior, para efeito do exercício do seu poder de polícia.

§ 3º. A autoridade ambiental que tiver conhecimento de infração ambiental é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante processo administrativo próprio, sob pena de co-responsabilidade.

§ 4º. As infrações ambientais são apuradas em processo administrativo próprio, assegurado o direito de ampla defesa e o contraditório, observadas as disposições desta Lei."

Segue-se que a lei atribui competência para a lavratura do auto de infração, que dá início a acusação da prática infracional, bem como a instauração do processo administrativo, aos servidores públicos que integram os órgãos ambientais, como agentes fiscais.

Retrata ainda a lei que a apuração da infração — uma vez constatada e lançada em auto de infração — se dará por processo administrativo próprio, assegurado o contraditório e ampla defesa, garantido, portanto, o devido processo legal.

Deve-se apontar a circunstância de que, não obstante a lavratura do auto de infração seja a peça inicial de acusação da prática ilícita, a merecer ampla instrução processual a posteriori, quando todas as questões e eventuais vícios podem ser sanados, é um fato que, desde início, já impõe consequências de âmbito jurídico-administrativo. Seja porque o autuado passa a constar de lista de infratores, seja porque o agente fiscal é investido do poder de imposição das medidas administrativas preventivas visando cessar imediatamente o dano e resguardar a recuperação ambiental, como é o caso de embargos e apreensões de instrumentos usados na infração, conforme autoriza o artigo 101 do Decreto federal 6514/08.

Nesse sentido deve-se registrar que o auto de infração, já que, desde início provoca consequências jurídicas ao autuado, não pode se restringir, de forma elementar, a palavra (revestida de fé pública) do agente fiscal na redação do tipo infracional infringido, consubstanciado pela descrição da infração, devendo, no mais das vezes, estar acompanhado de elementos mínimos que configurem e caracterizem o ato ilícito no âmbito de um laudo técnico ou relatório descritivo, apontando de forma circunstanciada os elementos de fato, a gravidade da infração, os danos verificados, as circunstâncias materiais, os elementos que implicam na dosimetria adequada das penalidades administrativas, dentre outras circunstâncias que ao caracterizarem a infração também permitam ao autuado o direito de defesa.

A esse respeito, vale registrar que nas infrações de poluição, lançamento de efluentes, descarte inadequado de resíduos, dentre outras, previstas nos artigos 61 e 62 do Decreto federal 6.514/08 está prevista a condição pré-ordenada de que a aplicação de multas e demais penalidades decorrentes dependem de um laudo técnico identificando a dimensão do dano decorrente e a gradação do impacto ambiental.

Tais circunstâncias reportam ao fato de que a existência de um ato complementar ao auto de infração, que delimite os exatos contornos da prática ilícita, constituem elementos necessários à sustentação do ato acusatório perpetrado pela autoridade pública ambiental. O delineamento do espectro infracional integral que dê aporte efetivo à acusação e defina a autoria, a materialidade, a gravidade, a circunstância de fato constitui condição mínima do ordenamento jurídico para que o ato administrativo possa produzir efeitos, ainda que em caráter inicial.

Deve-se ponderar, a par de tais considerações, que os atos complementares e instrutórios que delimitem a infração e devem acompanhar a autuação não tem forma rígida, não havendo, destarte, a necessidade da presença física do fiscal, no locus infracional, para a sua constatação. Sobeja à forma, a necessidade da caracterização inequívoca da infração.

Admite-se assim, aproveitando-se de forma ampla o uso de tecnologias, que permitam afirmar, com certo grau de segurança, a ocorrência da infração, a imputação de sua autoria e materialidade e os elementos circunscritos a prática ilícita que viabilizem ao autuado, desde início, conhecer da imputação e se defender, de forma ampla, em relação a ela.

O uso de ferramentas tecnológicas, assim, é perfeitamente plausível para a sustentação da autuação pois não há qualquer exigência para que, desde início, o órgão ambiental necessite comprovar materialmente a ocorrência da infração mas sim de, relatar e concluir, por meio de elementos plausíveis, a ocorrência do fato e a sua gravidade, ainda que se faça por meio de constatações inferidas ou até presumidas, a partir dos elementos disponíveis em cada situação.

A partir daí, os contornos mais específicos, detalhamentos e delineamentos poderão ocorrer no âmbito da instrução processual que subsidiará o julgamento administrativo da infração quando então esta passará a estar definitivamente constituída.

Uma questão que se pode suscitar, sobre o assunto, é a possibilidade de utilizar-se de elementos produzidos pelo próprio infrator quando em situações de auto denúncia ou quando decorrer de relatórios produzidos pelo mesmo como decorrência de licenciamentos ambientais ou outras manifestações dadas perante o órgão ambiental. É dizer: pode o órgão ambiental lavrar auto de infração com base, exclusivamente, em elementos trazidos a conhecimento pelo infrator?

Deve-se entender que a delimitação inicial da infração deve ter como base mínima a materialidade e a autoria, de modo que, havendo, seja de que origem for, elementos que configurem com certa margem de segurança a prática infracional, desnecessário que os atos instrutórios para tanto sejam produzidos pela autoridade ambiental, com exclusividade, que, de todo modo, deverá conferir e assegurar da veracidade do conteúdo a que teve conhecimento quando trazido por terceiros.

Deste modo, se o próprio infrator colaciona e produz esses elementos ou um terceiro quando de uma denúncia, nada impede que o órgão ambiental, entendendo que o fato seja inquestionável e os seus elementos constituintes estejam presentes, não tendo sido produzidos por meio de provas obtidas de forma ilegal, nada impede que o agente fiscal os utilize para dar início a persecução administrativa ambiental.

Em resumo, o princípio da verdade real é o que incide em matéria de persecução administrativa ambiental, exigindo-se que a confecção das peças de acusação estejam acompanhadas de elementos necessários que instruam a autuação, caracterizando-a em todos os seus elementos e que permitam, com amplo espectro, o direito de defesa do autuado.

Vale citar jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que valida especificamente o uso de imagens de satélite para comprovação de ilícitos ambientais:

"PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DESMATAMENTO NA AMAZÔNIA. ESTADO DO PARÁ. RESPONSABILIDADE CIVIL PELA DEGRADAÇÃO AMBIENTAL. ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. EXISTÊNCIA DO DANO. IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO DE DOCUMENTOS PÚBLICOS. MAPAS E IMAGENS DE SATÉLITE. ART. 405 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. SÚMULA 7DO STJ.

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5. Em época de grandes avanços tecnológicos, configuraria despropósito ou formalismo supérfluo negar validade plena a imagens de satélite e mapas elaborados a partir delas. Ou, em casos de desmatamento apontados por essas ferramentas altamente confiáveis, exigir a realização de prova testemunhal ou pericial para corroborar a degradação ambiental.

6. Recurso Especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido. STJ."

REsp 1.778.729 / RECURSO ESPECIAL 2018/0261005-0. Relator ministro HERMAN BENJAMIN. Data do julgamento 10/9/2019

No mesmo sentido a Recomendação nº 99, de 21 de maio de 2021, do Conselho Nacional de Justiça que "recomenda a utilização, pelos magistrados, de dados de sensoriamento remoto e de informações obtidas por satélite em conjunto com os demais elementos do contexto probatório, quando for necessário para a instrução probatória de ações ambientais cíveis e criminais".

Logo, não há, de fato, nenhum motivo para que o entendimento do STJ ou CNJ para ações civis e criminais não seja estendido para as infrações administrativas ambientais.

Por fim, cumpre ainda investigar se a lavratura eletrônica de autos de infração, por meio de computadores, baseados em laudos ou relatórios de constatação da infração são válidos, quando não houver a intervenção de um agente público, de forma direta e imediata.

A saber que a tecnologia atualmente já permite, como por exemplo no caso de desmatamentos ilegais, identificar exatamente o local da infração, o polígono do desmatamento, o total da área desmatada, a data aproximada da prática infracional e, inclusive, busca em bancos de dados, o registro cadastral do titular do imóvel para caracterizar a autoria da infração, ainda que presumida.

Essa prática, da lavratura de autos de infração sem a presença humana, já é adotada no Brasil há muito tempo, em relação a infrações de trânsito, bastando que haja, como já dito acima, os elementos necessários que tornem a materialidade da infração inequívoca. A autoria, por sua vez, é presumida em relação ao proprietário (do veículo ou do imóvel), admitida prova em contrário.

Assim, é perfeitamente admitido pelo ordenamento jurídico brasileiro que todo o ato inaugural da acusação administrativa seja feito de forma exclusivamente eletrônica, dispensando o agente fiscal quando a tecnologia puder substitui-lo, desde que, contudo, tanto a autuação quanto a caracterização da infração tenha, de fato, alto nível de certificação quanto à realidade dos fatos e circunstâncias, baseadas no uso de tecnologias confiáveis.

Registre-se, por importante, que o uso de autos de infração eletrônicos realizados de forma remota é muito baixo no Brasil, havendo pouquíssimos órgãos ambientais que adotam essa prática. Poucos órgãos ambientais possuem base geoespacial organizada que permita o uso das ferramentas tecnológicas disponíveis, o que precisa ser incrementado para que o entendimento ora esposado possa ser amplamente adotado.

A adoção dessa modalidade de autuação permitiria enormes ganhos em escala para coibir as práticas infracionais no Brasil e permitiriam uma redução significativa na extensão e gravidade de danos ambientais.

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  • é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás, procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU), advogada, mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR, professora de Direito Ambiental, pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro "Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado".

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