facebook-pixel
Consultor Jurídico

Luiz Panelli: Suprema Corte americana entrou em pane?

7 de julho de 2022, 13h06

Por Luiz Felipe da Rocha Azevedo Panelli

imprimir

Recentemente, decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos causaram espanto em parte da opinião pública, fazendo com que o tribunal — e a própria sistemática de jurisdição constitucional — voltassem a protagonizar manchetes. Especificamente, em curto espaço de tempo, decidiu que o direito de ter armas, previsto na 2ª emenda à Constituição dos EUA, autoriza não só a posse da arma como também o porte nas ruas (caso New York State Rifle & Pistol Assn., Inc. v. Bruen). Para um país marcado por massacres causados por atiradores que compram armas de guerra com facilidade, não parece uma decisão prudente. O que mais causou espanto, porém, foi a decisão intitulada Dobbs v. Jackson Women's Health Organization; esta decisão reverteu um precedente de 1973 (Roe v. Wade) que afirmava que o direito a realizar um abortamento até o terceiro mês de gestação era constitucionalmente protegido.

O caso Dobbs gerou um terremoto político. Manifestantes contrários e favoráveis foram às ruas — em alguns casos, de modo violento — e políticos do mundo todo correram ao Twitter para dar suas opiniões. O termo mais recorrente encontrado em manchetes e textos de opinião era "retrocesso". Pela primeira vez, afirmavam os comentaristas, a Suprema Corte havia retirado do povo um direito constitucional. Isto era, diziam, resultado de décadas de estratégia conservadora de colocar juízes confiáveis na corte, para que pudessem reverter precedentes históricos da lavra de grandes juristas como Felix Frankfurter, Earl Warren, Oliver Holmes e outros. A corte, outrora grande, teria se apequenado.

Acredito — talvez de modo um pouco ingênuo — que o jurista não deve se apressar ao fazer uma crítica. Se for para simplesmente repetir o que políticos e grupos de pressão falam nas ruas e na mídia, não precisamos de juristas. A primeira atitude do jurista, creio, é agir com calma, permitindo uma reflexão à luz do direito — e não da opinião comum. Modestamente, e enquanto aguardo a opinião de pessoas muito mais sábias e experientes, é o que pretendo fazer agora.

Vamos ao caso Dobbs. Ele nos traz uma palavra mágica: aborto. Difícil pensar em um termo mais propício a causar todo o tipo de paixão e conflito. Na lógica simplista da mídia (americana, em especial), podemos classifcar todas as pessoas como "pró-vida" ou "pró-escolha"; os primeiros veem os segundos como assassinos de bebês enquanto os segundos veem os primeiros como misóginos que querem controlar o corpo das mulheres. Para não variar, esta simplificação não leva a nada, salvo à criação de uma massa manipulável, que é o sonho de qualquer político.

O abortamento era, antes do caso Roe, uma questão de alçada dos estados-membros. Com a decisão de Roe, em 1973, a Suprema Corte determina que o abortamento até o primeiro trimestre da gravidez é direito constitucional, sendo que os estados não podem impedir tal prática. A ratio decidendi do caso Roe é relacionada ao direito à privacidade que, segundo a maioria à época, era decorrência do direito de liberdade previstos nas 1ª, 4ª, 5ª, 9ª e 14ª emendas à Constituição dos EUA. Posteriormente, em 1992 (caso Planned Parenthood of Southeastern Pa. v. Casey), a corte reafirmou o precedente de Roe, valendo-se da doutrina do stare decisis (que afirma que o precedente deve ser sempre observado em casos futuros, como forma de garantir a segurança jurídica), mas afirmou que o direito ao abortamento no primeiro trimestre de gestação tem base somente na 14ª emenda à Constituição (uma das Emendas feitas no período da Reconstrução e cujo objetivo era avançar nos direitos de igualdade). A corte reconheceu que havia um direito do estado, expresso através da lei, de proteger o feto, mas que no primeiro trimestre este interesse ainda era muito incipiente, sendo necessário privilegiar o direito de escolha da gestante.

Alguns estados, porém, não se deram por satisfeitos e continuaram a fazer leis contrárias ao abortamento, chegando ao limite do permitido pela Suprema Corte em Roe e Casey. O estado do Mississipi editou uma lei proibindo o aborto após a 15ª semana de gestação, o que levou uma clínica médica a ajuizar processo arguindo que tal restrição conflitava com Roe e Casey. Por via recursal, o caso chegou à Suprema Corte.

Escrevendo pela maioria, o juiz Alito afirma que Roe foi decidido de forma errada e teve consequências trágicas, como o esvaziamento do processo democrático — já que as pessoas não podiam mais expressar suas opiniões sobre a eticidade do abortamento por meio da lei, legitimamente editada pelos legisladores estaduais — e, ademais, ignorou quase todos os precedentes anteriores ao julgamento do caso. Alito afirma também que, ao julgar o caso Casey em 1992, a Corte afirmou que a ratio de Roe era excepcionalmente fraca, tanto que mudou o fundamento do direito ao abortamento.

Alito escreve de modo muito duro. O direito ao abortamento, afirma, não está previsto no texto constitucional, sendo ônus dos seus defensores demonstrar cabalmente que ele decorre de uma interpretação dos outros direitos, o que não foi feito. Por fim, Alito descarta a ideia de que a doutrina da stare decisis impediria a Corte de rever o precedente em Roe. Alito afirma — e este argumento teve sucesso em constranger os progressistas — que os grandes casos em que a Suprema Corte proibiu discriminação racial foram casos em que precedentes bem estabelecidos foram revistos e reformados (o caso Brown v. Board of education, de 1954, reverte o trágico Plessy v. Ferguson, de 1896). Atacando o voto dos dissidentes, Alito diz que "precedentes devem ser respeitados, mas às vezes a corte erra e ocasionalmente a corte decide de maneira extraordinariamente errada. Quando isso acontece, a doutrina da stare decisis não pode ser uma camisa de força".

A decisão de Alito ainda discute algo que é muito caro aos progressistas: a ideia de que a 14ª emenda, ao tratar de devido processo legal, traz implícita a ideia de um "devido processo material" (substantive due process). Esta doutrina do substantive due process foi absorvida pelo STF, em especial nos acórdãos relatados pelo ministro Celso de Mello (ADI 2.667 e ADI 1.063, dentre outros). Alito, no entanto, deixa claro que a decisão de Dobbs não afeta outras decisões tomadas com base no substantive due process, tal como foi sugerido pelo voto dos três juízes dissidentes. A distinção com outros precedentes envolvendo o substantive due process, como os caso Lawrence (que impediu os estados de criminalizar condutas sexuais consentidas entre pessoas capazes), Griswold (que declarou que o Estado não pode impedir a comercialização e uso de anticoncepcionais) e Obergefell (casamentos entre homossexuais) faz com que a corte não tenha discutido — ao menos não neste julgamento — a doutrina do substantive due process. Alito faz questão de ressaltar que a decisão de Dobbs não serve para afirmar que estes outros precedentes, não relacionados ao aborto, são válidos.

O que causou temor na mídia foi o voto do juiz Clarence Thomas, que concorda com a opinião da maioria, mas por suas próprias razões. Thomas afirma que não existe um substantive due process. Ressalte-se: trata-se de obiter dicta do juiz Thomas e, por ora, a doutrina do substantive due process se mantém, apesar de que Thomas afirmou que todos os casos decididos com base no substantive due process deveriam ser revistos – e isto inclui Lawrence e Obergefell.

Voltemos ao voto de Alito. O ponto central da questão, segundo ele, é que o voto dos três dissidentes exige que o Estado negue ao feto o direito mais básico — o direito à vida — até um ponto arbitrário da gestação (três meses). A Constituição não tem nenhuma provisão autorizadora do abortamento nestes termos, tampouco é possível fazer uma leitura sistêmica que leve a tal conclusão.

O voto do impecável juiz John Roberts reconhece que a lei do Mississipi foi feita sob medida para provocar a Suprema Corte a reverter o caso Roe. Diversos estados cujo Poder Legislativo foi dominado por legisladores conservadores passaram a escrever leis que desafiavam o precedente de Roe apenas com a finalidade de provocar a corte a rever o seu posicionamento.

Ao fim, Roe e Casey estão revertidos. A legalidade do abortamento volta à alçada dos estados-membros. Para uns, é o maior ataque ao direito das mulheres em décadas; para outros, é uma medida democrática e que permite que o Poder Legislativo local (mais próximo ao cidadão do que o federal) discuta uma questão tormentosa de bioética.

Paremos agora com a análise do caso Dobbs. A questão que eu quero abordar — sobre uma suposta pane na jurisdição constitucional americana — passa pela consideração de Roberts sobre a estratégia processual. Se Roe era um precedente, por que provocar seguidamente a Corte com casos similares? Afinal, a doutrina da stare decisis não serve justamente para impedir uma constante reconsideração de precedentes?

A estratégia adotada, porém, consiste em provocar uma nova Suprema Corte a reconsiderar os precedentes tomados por uma corte que não mais existe. Com efeito, desde Roe, os membros do Partido Republicano passaram a considerar a indicação de juízes contrários ao aborto um tema central da sua plataforma politica. Foi necessário paciência, perseverança e tática, mas ao fim de quase cinquenta anos, os republicanos conseguiram alcançar a meta decidida em 1973.

Pergunto: A jurisdição constitucional é isto? É tática, perseverança e sorte? Afinal, a doutrina de direito constitucional não deveria nos munir de métodos interpretativos confiáveis, capazes de formar um consenso na comunidade jurídica?

A pergunta é sincera. Eu considero que a maioria dos juízes da Suprema Corte dos EUA são muito capazes. Alito e Sotomayor (respectivamente, o autor da opinião da maioria e uma das autoras da opinião dissidente) são juristas muito competentes, Roberts é excepcionalmente hábil – eu diria que até genial. Por que eles chegaram a tal ponto de divergência?

É claro que a divergência é inerente ao direito, mas há algo errado em uma jurisdição constitucional que é exercida com base em estratégia ("gambit", para usar o termo que consta do voto de Roberts, que pode ser melhor traduzido por "manobra").

O movimento conservador privilegiou uma doutrina conhecida como "originalismo", que dispõe que a Constituição deve ser interpretada tal e qual era quando da sua adoção, no fim do Século 18. Clarence Thomas parece aderir a esta linha. Respeitosamente, não vejo muito sentido em fazer tal leitura da Constituição. Em 1819, ao julgar o caso McCulloch, John Marshall afirmou que a Constituição era um documento que tinha que durar por séculos, conduzindo os EUA em diferentes períodos. Uma leitura "originalista" mina esta possibilidade.

Mas afinal, qual é a alternativa? Há várias outras correntes de interpretação. Tribe e Dorf, por exemplo, em seu excelente "On Reading the Constitution" dão alternativas. O ponto, porém, é que é necessário criar uma teoria de leitura constitucional — uma teoria hermenêutica — que seja forte o bastante para blindar a jurisdição constitucional do triste destino de se tornar um mero joguete político. O caso Dobbs foi a vitória de uma estratégia política muito bem implementada. O direito constitucional não deveria se sujeitar a este sequestro pela política, em especial em tempos em que a política é áspera e radical.

É claro que o direito constitucional, sendo um campo da dogmática jurídica que promove o contato entre o jurídico e o político (ele garante que o poder jurídico seja exercido de acordo com uma vontade política e que a disputa política e dê de acordo com regras jurídicas) é sujeito a todo o tipo de disputa pelo poder. Não estou sugerindo que juízes sejam agentes sem qualquer ideologia, ou que um documento constitucional seja "neutro". Eu, como qualquer pessoa, tenho posições políticas e as defendo. Por exemplo, no caso do abortamento, eu considero que o feto é uma vida humana e deve ser protegido pelo direito — apesar de que as complexidades de casos envolvendo estupro e risco de vida à gestante certamente põem a questão do abortamento na pilha dos "hard cases" de que tratava Dworkin.

A questão, porém, não é se o abortamento deve ou não ser legalizado, ou se a Suprema Corte errou em Dobbs. Se houvesse precedente contrário à prática e, através de décadas de estratégia e paciência, os progressistas o tivessem revertido a fim de declarar a existência de direito constitucional ao abortamento, o problema seria o mesmo: o sequestro da jurisdição constitucional pelo radicalismo político (que existe dos dois lados do espectro político, frise-se). Não deveria ser possível construir uma maioria na Suprema Corte por meio de uma longa e paciente estratégia; o direito constitucional deveria dar respostas para evitar esta contaminação política.

As respostas não foram dadas, infelizmente. A doutrina falhou em construir teorias sólidas e acessíveis a todos — ou seja, sem ficar restritas a um seleto grupo acadêmico. O contra-ataque ora planejado pelos progressistas também segue o receituário político. Até agora, o campo progressista cogita em aumentar o número de juízes da corte para ter direito a mais indicações (o que é puro autoritarismo à la América Latina), impeachment de juízes que subscreveram a opinião da maioria do caso Dobbs (o que também é medida autoritária; a Constituição dos EUA prevê impeachment por "mau comportamento", não pelo teor das decisões), aprovação de lei federal tratando do direito ao abortamento (inviável e, à luz de Dobbs, de duvidosa constitucionalidade, por usurpar competência dos estados).

Enquanto o direito constitucional continuar refém da guerrilha política, sua autoridade e autonomia serão minadas. Nesse cenário, quanto maior for a polarização política, pior será para o direito constitucional.

A solução não é imediatista. É árdua, mas simples: valorizar a doutrina constitucionalista, retirar a Suprema Corte da arena política, construir uma teoria hermenêutica que combata esse sucesso de marketing do "originalismo" e que seja acessível a um grande público e, acima de tudo, escolher juízes que não sejam militantes políticos, mas militantes do constitucionalismo. De novo, correndo o risco de parecer pateticamente ingênuo, acredito que nenhum jurista deve usar a hermenêutica jurídica para travestir a sua opinião política, mostrando-a como resultado de interpretação normativa.

É uma tarefa árdua, de fato, mas se os EUA não o fizerem, correm o risco de ter um direito politizado, em que importa mais a opinião pessoal dos julgadores do que a norma, em que o império das leis não mais existe e em que o direito se resume a relações de poder, num inferno "mandacionista".

Conheço um país assim…