Questão de Gênero

Crime de estupro x abortamento legal

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1 de julho de 2022, 8h00

Em uma semana marcada por opiniões antagônicas a respeito do caso de uma menina de 11 anos de idade que se encontrava grávida após ter sido vítima de um ato infracional análogo a estupro de vulnerável, reacendeu-se a discussão a respeito do abortamento legal, escancarando-se o nível de desconhecimento de operadores do direito e da área da saúde a respeito do tema e do novel tipo penal da violência institucional.

Spacca
O caso que gerou comoção e debates encerrou-se nesta semana com a interrupção da gravidez, hipótese que se enquadra no chamado aborto legal.

O artigo 128, inciso II do Código Penal prevê que não se pune o aborto praticado por médico se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. Há muito já se firmou o entendimento de que o termo "estupro" deve receber interpretação expansiva, para abranger todos os crimes contra a dignidade sexual.

Também conhecido por aborto sentimental, aborto ético ou aborto humanitário, a hipótese prevista no inciso II do artigo 128, decorre da lógica de que não se pode obrigar que uma vítima de um crime contra sua dignidade sexual conviva com o fruto desse crime.

O crime de estupro é um dos mais repugnantes previstos no ordenamento jurídico, violando não apenas o corpo físico da vítima, mas também sua dignidade. A vítima do crime de estupro que acaba por engravidar, além de guardar em sua memória a grave violação que sofreu, teria que suportar o fardo de carregar em seu ventre o fruto dessa violência.

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Nada parece mais lógico do que permitir que essa vítima tenha a possibilidade de escolher não conviver com o resultado de um estupro e de não ser compelida a gerar e conviver com um filho não desejado e que a todo momento a relembrará da violência sofrida.

Devemos ter em mente que nenhum direito pode ser tido como absoluto. Nem mesmo o direito à vida, que encontra exceções até mesmo na Constituição da República. Permitir a interrupção de uma gravidez decorrente de crime seria fazer uma ponderação entre o direito à vida do ser em formação no ventre materno e o direito à vida digna dessa mulher que o carrega.

Importante ressaltar que a lei penal em momento algum exige autorização judicial para a interrupção da gravidez.

Ainda a respeito do caso de grande repercussão, foi noticiado que a menina teria mantido relações sexuais consentidas com um adolescente de treze anos de idade. Esse fato não exclui a possibilidade de interrupção da gravidez das hipóteses legais previstas no artigo 128 do Código Penal. Com ou sem violência real, a gravidez de uma menina menor de 14 anos de idade é materialidade inequívoca de ato atentatório à sua dignidade sexual (seja crime, seja ato infracional).

A criança de 11 anos de idade é considerada vulnerável pelo Código Penal que adota o critério objetivo etário para definir a vulnerabilidade. Entende-se, por razões de política criminal, que a pessoa menor de 14 anos de idade não possui discernimento e desenvolvimento suficientes para consentir a prática de atos sexuais. O ordenamento jurídico desconsidera a vontade do menor de 14 anos no que se relaciona aos atos da vida sexual.

Vítima menor de 14 anos, mas que já tenha vida sexual ativa também é considerada vulnerável para efeitos da aplicação do tipo penal.

Como já mencionado, não se exige autorização judicial para que a vítima seja submetida à interrupção da gravidez indesejada. Não se exige sequer que haja um registro de boletim de ocorrência ou instauração de inquérito policial para se apurar o crime contra a dignidade sexual. Também não há, no sistema legal, norma alguma que determine idade fetal máxima para o aborto legal.

Ademais, o Código Penal ainda admite o abortamento legal quando a manutenção da gravidez puder ensejar risco à vida da gestante, o que é até intuitivo no caso. Uma menina que engravida aos dez anos de idade não é uma mulher, seu corpo e seus órgãos reprodutivos não estão amadurecidos o suficiente para levar a termo uma gravidez. A menarca não transforma meninas em mulheres adultas.

Ressalte-se que a Lei nº 14.321/2022 prevê o crime de violência institucional que foi inserido na Lei de abuso de autoridade e tem como móvel evitar a vitimização secundária de quem já sofreu uma violação pretérita.

Pretende-se a todo custo minimizar a revitimização. Sim, minimizar, pois é cediço que esta ocorrerá, seja em maior ou menor grau. O simples fato de se rememorar o crime já é uma forma de revitimizar. O que se pretende é diminuir tal sofrimento.

Exigir que a vítima de crime contra a dignidade sexual passe por um processo criminal a fim de interromper uma gravidez indesejada por certo que acarretará traumas ainda maiores nessa pessoa.

Outro ponto importante a se destacar é que muito se comentou que a criança deveria manter a gravidez até que o embrião se formasse e pudesse viver para ser entregue à adoção. Ora, não bastasse ser vítima de estupro, vítima de violência institucional, ainda se pretendia que a criança gerasse o bebê, ou seja, que carregasse em seu ventre por mais semanas o fruto do estupro.

Curioso é que na mesma semana em que tal caso ocorreu, outro caso veio à tona, qual seja, de uma mulher que engravidara após um estupro e decidiu manter a gravidez e, em seguida, entregar a criança para adoção.

De se presumir que a atitude dessa mulher que gerou o bebê e o entregou à adoção fosse aplaudida pelas mesmas pessoas que criticaram a interrupção da gravidez da menina de 11 anos. Porém, não foi assim. Ambas as vítimas foram criticadas pela sociedade. Houve até quem propalasse que esta cometera crime de abandono de incapaz. Nada que cause espanto, vindo de não operadores do direito.

O que causa indignação é o fato de que, como sói acontecer, a vítima de crime contra a dignidade sexual é colocada em posição de destaque não para ser protegida ou amparada pela sociedade e pelo ordenamento jurídico, mas sim, infelizmente, para ser criticada e ter sua dignidade posta à prova.

Ainda a respeito do tema abortamento, foi lançado pelo Ministério da Saúde o manual "Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento", o qual se apresenta da seguinte forma:

"O Ministério da Saúde, cumprindo o seu papel de normatizador da atenção prestada à população, elaborou o manual Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento, um guia para apoiar profissionais e serviços de saúde quanto às abordagens atualizadas sobre acolhimento e atenção qualificada baseada nas melhores evidências científicas e nas estatísticas mais fidedignas em relação à temática, sempre levando em conta a defesa das vidas materna e fetal e o respeito máximo à legislação vigente no País."[1]

Tal manual ao tratar dos aspectos jurídicos do aborto traz a seguinte citação:

"Não existe aborto 'legal' como é costumeiramente citado, inclusive em textos técnicos. O que existe é o aborto com excludente de ilicitude. Todo aborto é um crime, mas quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido, como a interrupção da gravidez por risco materno."

Mais adiante, no citado manual, é citada a discussão jurídica a respeito do artigo 128 do Código Penal, vejamos:

"Muito se debate se o fato de o artigo 128 falar em não punir o aborto praticado por médico implica dizer que o aborto, mesmo nas hipóteses autorizadas, seria crime, deixando-se apenas de aplicar sanção; ou se o próprio crime restaria afastado. Limitando a análise apenas à redação, pode-se concluir sim que todo aborto é crime, sendo afastada a pena nos casos específicos apontados. No entanto, no âmbito da doutrina do Direito Penal, prevalece o entendimento de que a punibilidade integra o conceito de crime e, nessa perspectiva, o crime seria, de plano, afastado. Na prática, a discussão tem pouca relevância, pois, uma vez que a gravidez tem tempo limitado e, para fins de interrupção, a limitação temporal é mais restritiva ainda, seria impossível aguardar transcorrer todo um procedimento para apurar se houve crime, ou não."

Fato é que, num primeiro momento, o guia do aborto, como vem sendo popularmente chamado, afirma que todo aborto é um crime e que, pode deixar de ser punido após investigação policial. Tal afirmação não possui embasamento técnico e pode até mesmo causar insegurança jurídica. Imagine o caso da mulher que engravide após ter sido vítima de estupro e, ao tomar conhecimento do manual, acredite que será criminalmente investigada caso interrompa a gravidez. Ora, apesar do primado de que todos devem conhecer as leis e o direito, sabemos que a realidade não é essa. Assim, essa vítima de estupro mais uma vez seria prejudicada, pois poderia acreditar que, caso interrompa essa gravidez, estará cometendo um crime.

 Concluindo, há de se ressaltar que, como Delegadas de Polícia que somos e, sendo aquelas que em geral primeiro tomam conhecimento dos fatos, devemos primar para que as garantias e direitos fundamentais de todos os atores da persecução criminal sejam respeitados. Incluindo aí a vítima.

Especialmente a vítima de crime sexual que teve sua dignidade violada. Não basta garantir o direito à vida, deve-se garantir o direito à vida digna.

Em eventual conflito entre o direito à vida do embrião em formação e o direito à dignidade da mulher gestante, a solução já foi dada pelo Código Penal, que deixa a cargo da mulher ou da sua família a escolha sobre qual bem preservar. Valores religiosos ou morais de terceiros não podem determinar o destino de casos como o dessa menina.


[1] Aqui.

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