Opinião

Estupro de vulnerável praticado por vulnerável e o aborto legal

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  • é advogado criminalista pós-doutor em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC) doutor em Direito Penal pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e professor de Direito Penal da Universidade Regional do Cariri (Urca).

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1 de julho de 2022, 6h38

No segundo semestre de 2020, emergiu na sociedade brasileira mais um intenso debate — permeado de polêmicas e (in)certezas — em torno do chamado "aborto legal". Tratou-se da interrupção da gestação de 22 semanas de uma menina de 10 anos, vítima de reiterados atos de estupro na cidade de São Mateus (ES), sendo o tio desta criança o principal suspeito do cometimento (continuado) de tão repugnante e bárbaro crime, tipificado no artigo 217-A, §3º, do Código Penal [1].

Passados quase dois anos dessa triste efeméride, o tema volta à ribalta com o "caso da menina de 11 anos", do Estado de Santa Catarina, que também engravidou após sofrer ato (s) de estupro quando ainda tinha dez anos de idade [2]. No primeiro caso, conforme noticiado amplamente pela imprensa [3], mesmo diante de ordem judicial específica, o Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (Hucam), localizado em Vitória (ES), se negou a realizar o procedimento, alegando "questões técnicas". Já em relação ao segundo, a negativa se deu também por parte do Poder Judiciário, que ademais disso afastou a criança do lar, encaminhando-a para um abrigo, com o fito de "preservar" a sua gravidez [4].

Com efeito, esses marcantes exemplos demonstram pelo menos três situações verificadas com frequência no Brasil: 1) crianças e adolescentes são vítimas do crime de estupro; 2) instituições hospitalares se negam a fazer o aborto legal nesses casos; e 3) a legislação que autoriza o aborto é mal interpretada. Pensando nessas realidades, trabalharemos no presente texto a caracterização do crime de estupro conforme a legislação brasileira (I), atos sexuais cometidos entre vulneráveis e a caracterização do estupro de vulnerável (II, infra) e as exigências impostas pela dogmática penal para a realização do aborto quando a gravidez é oriunda de estupro (III, infra).

Após modificações implementadas pela Lei nº 12.015, de 2009, o artigo 213 do Código Penal, que prevê o crime de estupro, passou a ter a seguinte dicção: "Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso (…)" [5]. Com isso, revogou-se o artigo 214 do mesmo diploma legal, que trazia o crime de "atentado violento ao pudor", assim descrito: "Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal (…)". Deste modo, conjunção carnal e ato libidinoso dela diverso se tornaram condutas que caracterizam o estupro, pouco importando se praticadas contra mulheres ou contra homens [6].

Ao criminalizar esse tipo de comportamento, punido, na sua forma simples, diga-se de passagem, com uma pena que varia de 6 a 10 anos de reclusão [7], a lei penal busca proteger o bem jurídico "liberdade sexual" da mulher e do homem, vale dizer, o direito de exercerem a sua sexualidade ou a faculdade que ambos têm de escolher livremente seus parceiros sexuais, o que significa a possibilidade de recusar, nesse aspecto, inclusive o próprio cônjuge, se assim o desejarem, tutelando, em síntese, a norma penal incriminadora, a dignidade sexual individual de homem e mulher, consubstanciada na liberdade sexual e no direito de escolha outorgado a cada um [8].

Em que pese a criminalização em análise, cujo propósito fulcral consiste em exercer efeitos preventivos, a violência sexual, mormente a praticada contra a mulher, vem ganhando contornos preocupantes no Brasil. É o que mostram os recentes dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública: o ano de 2021 marca a retomada do crescimento de registros de estupros e estupros de vulnerável contra meninas e mulheres no Brasil (…). Foram registrados 56.098 boletins de ocorrência de estupros, incluindo vulneráveis, apenas do gênero feminino. Isso significa dizer que, no ano de 2021, uma menina ou mulher foi vítima de estupro a cada 10 minutos, considerando apenas os casos que chegaram até as autoridades policiais. Entre 2020 e 2021 verificou-se crescimento de 3,7% no número de casos de estupro [9].

Estupro de vulnerável e a possibilidade de concorrência da mesma conduta em um único ato
O estupro de vulnerável está criminalizado no artigo 217-A do Código Penal brasileiro, que diz: "Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos: Pena — reclusão, de oito a 15 anos". Pune-se, pois, essa conduta, com uma pena privativa de liberdade maior do que a prevista para o estupro comum, dado o caráter de extrema agressividade de que se reveste.

Aqui, assim como em relação ao artigo 213, podem ser sujeitos passivos do crime tanto o homem quanto a mulher. A questão que se coloca, nessa toada, e que também serve para o comportamento capitulado no artigo 213 do CP, é saber se a mulher pode figurar como sujeito ativo do crime, sendo a resposta afirmativa, uma vez que a lei penal não veda essa possibilidade. Ao contrário, a partir da edição da Lei nº 12.015/2009, o estupro passou a ser um crime comum, podendo ser praticado ou sofrido, indiferentemente, por homem ou mulher [10].

Em relação ao estupro de vulnerável, consoante se dessume do artigo 217-A, caput e §1º [11], o bem jurídico tutelado pela regra penal é a dignidade sexual do menor de quatorze anos e do enfermo ou deficiente mental que não tenha capacidade de discernir a prática do ato sexual. Destarte, para a configuração do delito em análise, não interessa saber 1) se houve consentimento da vítima, 2) se a vítima teve experiência sexual anteriormente ao crime ou 3) se a vítima mantinha relacionamento amoroso com o autor do fato [12].

Nesse sentido, se a vítima da violência sexual for menor de 14 anos estaremos diante de uma presunção absoluta de violência, restando o crime configurado. Voltando ao caso da "menina de 11 ano" que engravidou após sofrer abuso sexual (estupro), mais recentemente a mídia divulgou nova e relevante informação, segundo a qual o provável autor do fato (principal suspeito) seria um adolescente hoje com 13 anos, o qual assumira perante a polícia ter mantido relações sexuais com a criança [13]. Ora, se tal hipótese for comprovada, estaremos diante de uma situação de todo peculiar, não sendo cabível, seja para a criança seja para o adolescente, o argumento do consentimento.

Com efeito, é importante registrar que como as investigações e os processos judiciais correspondentes a esse lamentável fato tramitam em segredo de justiça, há que se ter muito cuidado para não se tirar conclusões jurídicas açodadas, de modo que trabalharemos, abaixo, com projeções ou possibilidades, uma vez confirmadas as hipóteses levantadas ou divulgadas exaustivamente nos últimos dias pelos veículos de comunicação nacionais.

Vejamos algumas repercussões jurídico-penais: 1) relações sexuais mantidas entre pessoas menores de 14 anos configuram ilícito penal, independentemente do consentimento das partes; 2) nesse caso, por consequência lógica, ambos estarão cometendo um ato infracional análogo ao crime de estupro de vulnerável [14], se sujeitando às normas do ECA e não às da legislação penal comum (artigos 27 do CP, 228 da CF/88 e 104 do ECA), não havendo, ainda, que se falar em "concorrência de culpas", vedada pelo direito penal; 3) medidas socioeducativas aplicam-se apenas aos adolescentes (artigo 112 do ECA), sendo que conforme previsão do artigo 105 do ECA ao ato infracional praticado por criança corresponderão as medidas previstas no art. 101 do mesmo estatuto [15], de menor gravidade; 4) a conduta de genitores ou representantes legais de crianças ou adolescentes menores de 14 anos que permite a prática de atos sexuais por estes, inclusive na sua residência, poderá, em tese, ser enquadrada na previsão do crime de estupro de vulnerável, a teor do artigo 13, §2º, al. "a", do CP (omissão imprópria); 5) dada a hipótese do item anterior, é possível, à luz do ECA (artigo 98, inciso II c/c artigo 101, inciso VII, ambos do ECA), que a criança ou adolescente seja afastada do lar por ordem judicial, a fim de se preservar a sua integridade ou dignidade sexual.

Tipicidade do crime de estupro e o aborto legal
A lei penal brasileira admite a prática pelo médico do aborto no caso de gravidez resultante de estupro (artigo 128, inciso II, do CP). É o que a doutrina chama de aborto humanitário ou sentimental. Além da exigência de ser praticado pelo médico, o procedimento abortivo deve ser precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. Junte-se a isso a seguinte observação: a norma penal não exige autorização judicial para a realização do ato, de sorte que o profissional da área médica está livre para realizar o aborto independentemente até mesmo da existência de boletim de ocorrência ou de inquérito policial em desfavor do autor do crime, para quem, por óbvio, igualmente não há que se exigir a condenação criminal.

Entender diferente seria ampliar a literalidade do dispositivo penal, de modo a produzir efeitos in malam partem, o que como cediço é vedado. Daí que não é compatível com a legalidade, na vertente da taxatividade do tipo penal, a norma técnica do Ministério da Saúde que recomenda limitar o ingresso para atendimento ao aborto previsto em lei com 20 semanas de idade gestacional ou, quando disponível, com predição de peso fetal menor que 500 gramas [16], muito menos a Portaria nº 2.282/2020, também do Ministério da Saúde, a qual, ao trazer um detalhado procedimento de justificação e autorização da interrupção da gravidez nos casos previstos em lei, mina o já reduzido poder de autodeterminação da mulher.

Por fim, compartilhamos do entendimento de que a lei exige para a legalidade do aborto apenas a tipicidade do fato, o que implica a sua subsunção à descrição típica do estupro, sendo irrelevante, nesse sentido, se perquirir acerca da ilicitude e da culpabilidade da conduta do agente.

Conclusão
O crime de estupro de vulnerável traduz uma conduta ignóbil, que como tal merece veemente rechaço da lei penal. É possível que uma mulher figure na qualidade de sujeito ativo do crime de estupro (Lei nº 12.015/2009) e se o ato for praticado entre pessoas menores de 14 anos, ambas poderão ser responsabilizadas penalmente, à luz do ECA. O aborto legal, nomeadamente a hipótese que o autoriza quando a gravidez resulta de estupro, pode ser realizado mesmo quando o autor do fato é penalmente inimputável (verbi gratia, menor de idade), pois o Código Penal brasileiro garante o direito ao aborto sempre que houver a conduta típica de estupro (contra mulher vulnerável ou não).


[1] Diante dos fatos, o Ministério Público do Estado do Espírito Santo (MPES) ofertou denúncia-crime contra o acusado, o qual, no início de 2021, veio a ser condenado em primeira instância a uma pena privativa de liberdade de mais de 44 anos, a ser cumprida no regime fechado. Nesse sentido, confira-se: <https://www.metropoles.com/brasil/justica/tio-que-estuprou-e-engravidou-crianca-de-10-anos-e-condenado-a-44-anos>. Acesso em: 24 jun. 2022.

[4] O caso veio à público após reportagem do veículo de notícias "The Intercept": <https://theintercept.com/2022/06/20/video-juiza-sc-menina-11-anos-estupro-aborto/>. Acesso em: 24 jun. 2022.

[5] A antiga redação do dispositivo estabelecia: "Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça (…)".

[6] Veja-se o que a respeito escrevemos em: OLIVEITRA NETO, Emetério Silva de. Legislação penal e teoria da vitimologia. 2. ed., rev. atual e ampl. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018, p. 76.

[7] Os §§1º e 2º dispõem sobre o chamado estupro qualificado pelo resultado, ampliando-se, corretamente, as penas abstratamente cominadas: "§1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 ou maior de 14 anos: Pena  reclusão, de oito a 12 anos. §2º Se da conduta resulta morte: Pena  reclusão, de 12 a 30 anos".

[8] Nesse sentido, confira-se: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, vol. 4. 9. ed., rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 47-48.

[9] Informações disponíveis em: <https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/03/violencia-contra-mulher-2021-v5.pdf, p.8>. Acesso em: 25 jun. 2022.

[10] Nessa linha, BITENCOURT, Cezar Roberto, op. cit., p. 49. Mesmo bem antes da modificação legislativa, Beni Carvalho, professor catedrático da então Faculdade de Direito do Ceará, averbou: "Em tese, pois, é possível cometer a mulher um crime de estupro, embora, praticamente, ocorram todas essas dificuldades relativas à determinação do sexo do agente" (cf. CARVALHO, Beni. Sexualidade anômala no direito criminal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1957, p. 121).

[11]   Veja-se o que afirma o §1º do dispositivo legal em menção: "§1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência".

[12] É o que diz o §5º do artigo 217-A do CP, incluído pela Lei nº 13.718, de 2018: "As penas previstas no caput e nos §§1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime". Assim igualmente preceitua a Súmula 593 do STJ: "O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente".

[14] Segundo artigo 103 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), "considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal".

[15] Nos termos do artigo 2º do ECA, "considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade".

[16] BRASIL. Ministério da Saúde. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica. 3. ed. atual. e ampl., 1. reimpr. Brasília: Ministério da Saúde, 2012, p. 76 e 81.

Autores

  • é advogado criminalista, pós-doutor em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC), doutor em Direito Penal pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e professor de Direito Penal da Universidade Regional do Cariri (Urca).

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