Opinião

O infeliz abrandamento conferido à tortura-omissão

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27 de janeiro de 2022, 12h46

1) Breve noção dos crimes omissivos impróprios
Em regra, os tipos penais descrevem condutas comissivas, ou seja, aquelas realizadas mediante uma ação humana positiva, fazendo algo que a lei proíbe.

Existem, por outro lado, figuras típicas cujo verbo nuclear consiste em uma conduta omissiva, de modo que o sujeito cometa o delito pelo simples fato de deixar de fazer algo ordenado pela norma. São os intitulados crimes omissivos próprios, os quais não admitem tentativa e dispensam a ocorrência de resultado naturalístico para a sua consumação.

Contudo, em decorrência da norma de extensão prescrita no artigo 13º, §2º, do Código Penal, entende-se que alguns indivíduos (garantidores) têm o dever específico de evitar a ocorrência de determinados resultados lesivos, sob pena de serem responsabilizados por eles como se os tivessem causado ativamente. Nesses casos, a omissão será equiparada à própria causação do delito. Vejamos:

Se Emídio cruza com um desconhecido atirado ao chão, percebe que este está agonizando em virtude de ferimentos, mas se abstém de prestar socorro ou invocar o auxílio das autoridades públicas, será acusado pela prática de omissão de socorro (artigo 135 do Código Penal), pois infringiu o dever genérico de prestação de amparo a uma pessoa ferida. A imputação, aqui, diz respeito meramente à inatividade proscrita em lei. Trata-se de omissão própria.

Em outra esteira, imagine que Emídio é um salva-vidas e se comprometeu, através de uma relação contratual, a evitar o afogamento de crianças na piscina de um clube recreativo. Porém, em determinado dia, ao avistar um infante em apuros na água, o socorrista se absteve de salvá-lo, quando tinha plena faculdade de fazê-lo. Nesse cenário, ele responderá pelo ilícito do artigo 135 do Código Penal?

A resposta é negativa, visto que, diferentemente de um cidadão comum, Emídio figurava como garante na situação narrada (artigo 13, §2º, "b", CP), posto que se obrigou a obstar a ocorrência do dano. Logo, diante do descumprimento de uma incumbência de natureza especial, o ordenamento pátrio autoriza a aplicação, em face de uma inatividade, de uma figura típica que descreve uma conduta ativa, com o fim de que o transgressor responda pelo resultado. Por conseguinte, Emídio será responsabilizado por homicídio (artigo 121 do Código Penal).

Em um primeiro momento, se ausente a norma do artigo 13 do Código Penal, talvez não fosse possível proceder à referida imputação, eis que "matar alguém" (caput), em verdade, aparenta ser um comportamento executável unicamente de forma comissiva. Acontece que, como mencionado alhures, no que tange aos garantidores, a ficção jurídica admite que a sua omissão seja equiparada à própria causação positiva, por meio de um nexo normativo.

2) Da tutela penal deficitária trazida pela Lei de Tortura
Nessa toada, o artigo 1º, §2º, da Lei 9.455/97 penaliza com detenção de um a quatro anos o agente que se omite em face da tortura quando tinha a obrigação de evitá-la ou apurá-la. Isto é, ele incorrerá em pena consideravelmente inferior àquela cominada ao praticante do suplício (reclusão de dois a oito anos).

Ocorre que, tais como qualquer agente de segurança pública, os policiais são considerados garantidores. Em consequência de diversas previsões constitucionais e legais, notadamente dos artigos 144 da Constituição Federal e 301 do Código de Processo Penal, esses servidores têm o dever de preservar a incolumidade física dos administrados e prender quem quer que se encontre em flagrante delito, sendo que até mesmo o seu retardamento só pode ocorrer em hipóteses excepcionais, com prévia comunicação ou autorização do juízo competente, a depender do caso.

Destarte, se um policial militar, durante o patrulhamento ostensivo, presenciar a execução de um furto e se abster dolosamente de capturar o infrator ou preservar o ofendido, não responderá meramente por prevaricação (artigo 319 do CP, delito omissivo próprio), senão que pelo resultado danoso que estava obrigado a impedir, na modalidade omissiva imprópria. Em síntese, ele se enquadrará no furto qualificado pelo concurso de pessoas (artigo 155, §4º, inciso IV).

No caso da tortura, o agente policial que presenciasse a provocação do sofrimento físico intenso e se mantivesse inerte em relação ao seu dever de proteção, nos moldes do artigo 1º da Lei 9.455/1997, incorreria nas sanções preceituadas pelo dispositivo em referência. Sua inação se adequaria à figura incriminada a que ele deveria combater (e não o fez), fazendo com que ele fosse sujeito ativo da tortura.

Nessa esteira, o legislador resolveu tipificar a tortura-omissão. Entretanto, procedeu com reprovável atecnia, posto que concedeu penalidade mais amena ao omitente, perdendo de vista a sua adequação típica mediata ao delito do artigo 1º. Em suma, pretendendo criminalizar as condutas absentistas dos integrantes de órgãos persecutórios, o legislativo acabou por dar-lhes tratamento mais benéfico (em razão de pura ignorância dogmática).

O omitente da tortura, que deveria sofrer os rigores de uma infração hedionda, foi beneficiado com um tipo penal punível com detenção e suscetível de anistia, graça e indulto.

Por tudo que foi abordado, não há dúvidas de que a opção legislativa desconsiderou equivocadamente importantes institutos doutrinários e promoveu uma tutela penal deficiente da sociedade. Resta indagar se tal incorreção consubstancia violação ao mandamento constitucional de criminalização, sob o prisma de um garantismo penal positivo, o que é tema para análises vindouras.

 

Referências bibliográficas
https://www.conjur.com.br/2020-dez-07/direito-defesa-estranho-fascinante-crime-omissivo-improprio-parte.

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9455.htm.

Leis Penais Extravagantes — Teoria, Jurisprudência e Questões Comentadas / Cláudia Barros Portocarrero e Wilson Luiz Palermo Ferreira — 5ª ed, JusPodivm, 2020, p. 1279.

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