Opinião

A longa disputa sobre a HRA e a recente decisão favorável do STJ

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27 de janeiro de 2022, 11h04

É de longa data a disputa de alguns setores econômicos para ver reconhecida a natureza indenizatória e, por consequência, a não incidência das contribuições previdenciárias e de terceiros sobre a parcela paga aos trabalhadores que laboram em turno ininterrupto [1] de revezamento, pela não concessão do intervalo intrajornada mínimo para repouso e alimentação (conhecida como Hora Repouso Alimentação  HRA).

Inicialmente, referida discussão apresentava um cenário jurisprudencial dividido nos Tribunais Regionais Federais, e bastante negativo no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, pautado em julgados apenas da 2ª Turma daquela corte, o qual só passou a esboçar alguma perspectiva de mudança quando, em 2017, a 1ª Turma daquele tribunal, por maioria, julgou o REsp 1.328.326/BA e, em seguida, o RESp nº 1.619.117, ambos em favor dos contribuintes, no sentido de que a HRA "reveste natureza jurídica autenticamente indenizatória, (…) assumindo perfil de genuína compensação, de verdadeira contrapartida a que o empregador está obrigado, por lei, a disponibilizar ao obreiro, em virtude da não fruição do direito ao intervalo para refeição e repouso que lhe é garantido, imprescindível ao restabelecimento do seu vigor físico e mental".

Em 2019, contudo, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento dos embargos de divergência interpostos pela União no REsp nº 1.619.117/BA, definiu, por maioria de 6 votos a 2, a controvérsia entre as aludidas turmas de Direito Público [2] no sentido de que a parcela tem natureza remuneratória, por ser paga como única e direta retribuição pela hora em que o empregado fica à disposição do empregador [3].

De partida, ouso discordar da premissa fática adotada nos votos vencedores, sobretudo do relator, no sentido de que o trabalhador recebe salário normal pelas oito horas regulares e HRA pela nona hora, em que ficou à disposição da empresa, e que o empregado fica efetivamente nove horas contínuas trabalhando ou à disposição da empresa e recebe exatamente por esse período, embora uma dessas horas seja paga em dobro, a título de HRA.

Isso porque, ao contrário do que externado no voto do relator e apontado na ementa do acordão, o regime de trabalho em turno ininterrupto de revezamento [4] é de oito horas ininterruptas, não havendo na jornada ordinária desse regime a suposta nona hora trabalhada ou posta à disposição do empregador!

Além desse equívoco na fundamentação do julgado, a maioria dos ministros da corte superior desconsiderou completamente o fato de que o que se paga ao trabalhador, sob a designação de HRA, é um valor calculado nos termos da legislação aplicável para reparar prejuízos e/ou danos decorrentes da supressão do intervalo intrajornada [5], o qual sequer é computado na duração do trabalho [6].

Assim, se os intervalos destinados ao descanso e alimentação consistem em um direito garantido aos trabalhadores que sequer são computados na duração do trabalho, a sua compensação/substituição por dinheiro (pela sua não concessão)  que é paga sem prejuízo das horas efetivamente trabalhadas , jamais poderia ser caracterizada como salarial e, portanto, integrante da base de cálculo das contribuições, cujo elemento material de incidência pressupõe o pagamento/crédito de salário e "rendimentos do trabalho" (artigo 195, I da CF/88), "total de remunerações", que o próprio artigo 22, I, da Lei nº 8.212/91 circunscreve àquelas "destinadas a retribuir o trabalho" [7].

Evidente, portanto, a falha na premissa adotada pelo tribunal naquele julgamento, o que induziu a um desfecho em descompasso com o artigo 195, I, da CF/88, com a legalidade tributária (por extrapolar os contornos da regra matriz de incidência previdenciária), com a própria definição do instituto da indenização no âmbito do direito privado, e, por consequência, com o artigo 110 do CTN, e com a própria segurança jurídica proposta pelo sistema de precedentes, já que a solução ali conferida foi totalmente de encontro com a alcançada em outros julgamentos daquela mesma corte, que, ao apreciar verbas igualmente pagas para recompor direito legítimo do empregado suprimido [8], concluiu pela sua natureza autenticamente indenizatória.

É o que se infere, por exemplo, das razões de decidir de precedentes que excluíram das bases de incidência das contribuições previdenciárias outras verbas, como o auxílio-creche [9] e o aviso prévio indenizado  por se tratarem de importâncias pagas a título de indenização, que não correspondam a serviços prestados nem a tempo à disposição do empregador[10]  todas elas, assim como a HRA, destinadas a indenizar o trabalhador, pela não concessão de um direito que lhe é reconhecido.

Comparando a fundamentação desses julgados, não se escapa da conclusão de que não se sustenta juridicamente — a menos que se admita e que efetivamente se enfrente uma mudança de posicionamento do tribunal (overruling)  a incidência das contribuições previdenciárias sobre o pagamento a título de HRA, cuja natureza é essencialmente idêntica ao das verbas objeto dos precedentes acima citados, nitidamente indenizatória, posto que voltado a recompor direto lesado ou suprimido.

Como se pode ver, o posicionamento firmado nesse caso pelo STJ, além de pautado em premissa equivocada acerca da existência e remuneração de uma suposta nona hora extraordinária  que o induziu à equiparação de tratamento fiscal conferido à hora extra, resultando em efetiva violação a legislação e a própria matriz constitucional (artigo 195, I, "a") das contribuições previdenciárias —, ainda mostra-se visivelmente dissonante com o raciocínio jurídico que embasou precedentes (ainda vigentes e reiteradamente aplicáveis) daquela mesma corte erigidos em situações intimamente análogas à ora tratada.

Além disso, a nossa leitura é a de que referido julgado se mostrou inconsistente ao ter limitado a aplicabilidade da decisão apenas aos recolhimentos realizados até a entrada em vigor da supracitada Lei, sob o argumento de que a nova redação do artigo 71, §4º, da CLT não foi objeto de discussão no presente caso, mesmo tendo reconhecido, ainda que, em obiter dictum, a alteração na CLT promovida pela Lei nº 13.467/2017 (veiculadora da denominada reforma trabalhista), que reconheceu expressamente a natureza indenizatória da verba.

Esse particular da decisão, prontamente, chamou a atenção, ensejando a interpretação de que as consequências tributárias da nova lei, segundo os ministros, deveriam ser analisadas em outro julgamento [11].

E ainda trouxe a inquietante questão: é possível essa demarcação temporal pretendida pelo órgão julgador em se tratando de uma normativa superveniente que em absolutamente nada altera a essência da verba, mas que sim, tão somente, reconhece a natureza indenizatória da verba paga pela supressão a empregados urbanos e rurais, ainda que parcial, do intervalo intrajornada para alimentação e repouso[12]?

Sem maiores delongas, não! Isso porque não há como se admitir que a referida alteração legislativa inaugurou ou estabeleceu o caráter indenizatório do pagamento aqui tratado, como fazem crer os autores dos votos vencedores, posto que mantida a sua originária natureza e a sua finalidade de conferir uma verdadeira contrapartida (reparação) ao trabalhador em virtude da não fruição do direito ao intervalo para refeição e descanso que lhe é garantido.

Nessa senda, sigo defendendo com veemência a natureza genuinamente indenizatória da rubrica  que se põe notadamente a ressarcir os prejuízos da supressão do direito ao intervalo para repouso/alimentação, vinculados à saúde física e mental dos empregados —, a qual foi expressamente reconhecida pelo legislador ordinário, ao conferir nova redação ao artigo 71, §4º, da CLT.

E, no contexto atual de que ainda não há precedente de observância obrigatória sobre o tema, mantenho acessa a expectativa de que, em um futuro próximo, a discussão venha a ser reaberta pela corte superior, com a profundidade que a matéria demanda.

Mesmo porque um olhar crítico para as questões aqui levantadas, certamente levaria à conclusão de que, se havia alguma dúvida quanto à natureza da parcela aqui tratada, esta restou sumariamente dissipada com a nova redação do §4º do artigo 71 da CLT [13], que reconheceu explicitamente e, consequentemente, concretizou como indenizatória a natureza do pagamento realizado em função da não concessão ou concessão parcial do intervalo intrajornada para repouso e alimentação, como vem acertadamente decidindo alguns tribunais, entre os quais o Tribunal Regional Federal da 1ª Região [14].

Não é exatamente isso, contudo, o que se constata em algumas decisões da Justiça do Trabalho [15], de outros Tribunais Regionais Federais [16] e até mesmo do STJ que, em recente decisão monocrática da lavra do próprio ministro Herman Benjamim [17], reconheceu a natureza indenizatória da rubrica HRA e, consequentemente, que não incidem as contribuições previdenciárias sobre referida verba trabalhista tão somente para os fatos geradores posteriores ao advento da Lei n° 13.467/2017 [18].

Indubitavelmente, tais decisões representam uma importante vitória aos empregadores, que já contam com um maior conforto para recorrer ao Judiciário visando a ver reconhecido o seu direito de não mais tributar os valores pagos a título de HRA, bem como reaver o indébito correspondente, sobretudo considerando o silêncio da RFB acerca do tema, que não alterou a legislação previdenciária-tributária [19], não emitiu qualquer orientação formal, nem ajustou seus sistemas para eventual adequação (E-Social/DCTFWeb).

De todo modo, por todas as razões aqui pontuadas, ainda subsistem argumentos jurídicos hábeis a sustentar a tese ampla dos contribuintes em relação à HRA, paga pela supressão a empregados urbanos e rurais, ainda que parcial, do intervalo intrajornada para alimentação e repouso, já que a multicitada alteração legislativa tem por efeito o expresso reconhecimento daquilo que a adequada intepretação do texto anterior já dizia, qual seja, a natureza indenizatória dos valores pagos aos trabalhadores a título de HRA sem qualquer limitação temporal, e, consequentemente, a não incidência das contribuições previdenciárias e devidas a terceiros sobre tal rubrica.

 


[1] Diante das particularidades operacionais da empresa.

[2] Embora, caiba ressaltar, não foi processado e não se encontra no rol de precedentes de observância obrigatória (artigo 927 do CPC).

[3] Trânsito em julgado em 23/09/2021, após rejeição de EDcl e seguimento negado ao RE interposto pelo contribuinte.

[4] Nos termos dos artigos 3º, II, da Lei 5.811/1972 e 71, §4º, da CLT.

[5] Que, como bem assinalado pela ministra Regina Helena em seu voto no REsp n° 1.619.117, denotam elevado grau de agressão à saúde e à integridade física do empregado, de modo que a perpetuação da jornada laboral sem a pausa necessária constitui, ipso facto, prejuízo e/ou dano ao trabalhador, ordinariamente recomposto por prestação de insígnia indenizatória.

[6] CLT, artigo 71, §2º – "Os intervalos de descanso não são computados na duração do trabalho".

[7] PAULSEN, Leandro; VELLOSO, Andrei Pitten. Contribuições no sistema tributário brasileiro. 4ª ed. São Paulo. Saraiva 2019.

[8] STJ, 1ª Turma, relatora ministra Regina Helena, REsp nº 1.619.117/BA, DJe 14/09/2018.

[9] STJ, REsp nº 1.146.772 /DF, Primeira Seção, ministro Benedito Gonçalves, data do julgamento: 24/02/2010.

[10] REsp 1.230.957/RS, relator ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, DJe 18/03/2014, submetido ao rito de Recurso Repetitivo, C

[12] TRF1, Processo nº 1008185-34.2017.4.01.3400, relator desembargador federal Marcos Augusto de Sousa, 8ª Turma, julgamento: 29/06/2020.

[13 "Artigo 71 – Em qualquer trabalho contínuo, cuja duração exceda de seis horas, é obrigatória a concessão de um intervalo para repouso ou alimentação, o qual será, no mínimo, de uma hora e, salvo acordo escrito ou contrato coletivo em contrário, não poderá exceder de duas horas.(…)
§4º A não concessão ou a concessão parcial do intervalo intrajornada mínimo, para repouso e alimentação, a empregados urbanos e rurais, implica o pagamento, de natureza indenizatória, apenas do período suprimido, com acréscimo de 50% sobre o valor da remuneração da hora normal de trabalho."

[14] TRF-1, AMS nº 1013996-76.2020.4.01.3300, Oitava Turma, relator desembargador federal Marcos Augusto de Sousa, DJ: 22/03/2021. Posicionamento confirmado por decisão integrativa proferida em 07/06/2021.

[15] Que passaram a revisar seu antigo posicionamento firmado na Súmula do TST n° 47 e, assim, reconhecer a natureza indenizatória da HRA a partir da vigência da Lei n° 13.467/2017. TRT-7  RO: 00005583820185070028 e TRT-6 – RO: 00006259620185060103.

[16] TRF 4ª Região, Processo nº 5005070-09.2020.4.04.7001

[17] STJ, REsp nº 1.963.274/SP.

[18] Grande surpresa foi o ministro assinalar na decisão que a Corte Superior já havia pacificado o tema jurídico em exame, tendo em vista que no julgamento dos EREsp 1619117/BA, a Primeira Seção de Direito Público julgou no sentido de não incidir as contribuições previdenciárias sobre a verba trabalhista denominada Hora Repouso Alimentação (HRA), após o advento da Lei 13.467/2017. Até porque, na citada decisão da Seção de Direito Público do STJ, restou assinalado que, até a entrada em vigor da Lei 13.467/2017, a verba denominada Hora Repouso Alimentação (HRA) possui natureza remuneratória, submetendo-se à incidência de contribuição previdenciária, e que a compreensão esposada abrange apenas os pagamentos e recolhimentos realizados antes da entrada em vigor da Lei 13.467/2017, uma vez que a nova redação do artigo 71, §4º, da CLT não foi objeto de discussão no presente caso.

[19] Por exemplo, para incluir a rubrica HRA nas hipóteses elencadas no artigo 28, § 9º, da Lei n° 8.212/91.

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