Observatório Constitucional

Alguns apontamentos sobre o constitucionalismo digital

Autor

  • é professor da Faculdade de Direito da UFPR e do IDP líder do grupo de pesquisa "Democracia Constitucional Novos Autoritarismos e Constitucionalismo Digital" no IDP membro do CCons-UFPR e da Fundação Peter Häberle e sócio do escritório de advocacia Marrafon Robl e Grandinetti.

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22 de janeiro de 2022, 8h00

Introdução
O constitucionalismo digital é um conceito em construção. A literatura jurídica estrangeira [1] e a doutrina brasileira [2] promoveram preliminares análises, ainda que relevantes, sobre as interações entre a Constituição e o mundo conformado pela tecnologia.

Este texto é um breve ensaio, apresentando algumas ideias com o intuito de produzir maior clareza analítica e sustentando certas teses. De maneira sistemática, os elementos nucleares são enumerados abaixo.

1) O mundo transformado pela tecnologia digital, nos últimos 25 anos, alterou profundamente as vidas privada e pública, com aspectos bastante positivos, porém também com consequências negativas e muito preocupantes para o futuro breve.

2) O constitucionalismo digital não se resume às descrições sobre o impacto da tecnologia digital nas relações sociais, jurídicas e constitucionais, assim como não se restringe apenas às prescrições acerca da regulação das tecnologias.

3) O discurso pautado nos direitos é preponderante no constitucionalismo digital, mas: a) inexiste um bloco monolítico tanto no espectro jurídico como nos âmbitos social, político e filosófico em relação ao tema; e b) as discussões sobre o constitucionalismo digital não se esgotam na questão dos direitos.

4) Há duas visões parcialmente equivocadas: a) as estruturas do constitucionalismo tradicional são suficientes para lidar com o mundo transformado pela tecnologia; e b) o constitucionalismo digital consiste em fenômeno completamente novo na trajetória da teoria constitucional.

5) O constitucionalismo digital produz uma revisão crítica sobre a estrutura do constitucionalismo.

1) Tecnologia digital
O Estado e o Direito modernos são produtos da racionalização e da formalização dos poderes social e político. Nesse contexto, a emergente ciência moderna tem papel de destaque, procurando compreender e alterar os fenômenos sociais e naturais, a partir do seu novo método. Os direitos humanos passam a ser verdades evidentes relevadas pela razão, o Estado é uma construção racional de indivíduos e a constituição surge como projeto racional de limitação do poder estatal e político.

A tecnologia — aplicação prática da ciência no aprimoramento da técnica e na construção de instrumentos — ganha destaque, citando apenas alguns exemplos: trens, carros, aviões, indústrias, eletricidade, telefone, rádio, fontes energéticas, cinema, televisão etc. No século 20, há o desenvolvimento da computação, modificando nossas vidas e o mundo que compartilhamos com a advento da internet [3].

Na prática, os smartphones são pequenos computadores que permitem instantâneos intercâmbios entre bilhões de pessoas no mundo inteiro. Ocorre uma ressignificação do espaço, podendo um indivíduo no Brasil teclar com um italiano e chinês, nos seus países, por um custo relativamente baixo.

Dessa maneira, aplicativos e redes sociais estabelecem relacionamentos de pessoas distantes e próximas geograficamente, permitindo o compartilhamento intenso da intimidade, por exemplo. No aspecto público, o acesso a informações socialmente relevantes torna-se facilitado. Essas mudanças não possuem somente perspectivas positivas, porque, por exemplo, a internet é instrumento facilitador da propagação do discurso do ódio e os aplicativos são desenhados para causarem grande impacto na personalidade e na psique, com danos psicológicos, em muitos casos severos, a pessoas vulneráveis e fragilizadas.

2) Constitucionalismo digital
Em assuntos constitucionais, as modificações também são amplas. Visões libertárias (anarcocapitalistas) são comuns nos programadores, desenvolvedores e profissionais da computação, construindo sistemas, softwares e aplicativos que maximizam os anseios individuais e, no mínimo, que desprestigiam os aspectos comunitários e republicanos, pressupondo a figura do Estado como o grande inimigo. De outra banda, a tecnologia digital coloca em xeque a autonomia individual, pois a observância de normas privadas e públicas não precisa ser voluntária com os contratos eletrônicos e com mecanismos de execução que, em teoria, independem da vontade humana.

Da minha perspectiva, a questão da igualdade e da justiça social é uma das mais complexas e dramáticas. A inclusão digital e tecnológica necessita de substancial quantidade de recursos privados dos interessados e de políticas públicas sérias e institucionalizadas para sua implementação, sendo estas insuficientes no mundo e no Brasil. O acesso aos benefícios da tecnologia em geral e da tecnologia digital torna-se central nas discussões sobre justiça social. Em poucos anos, aqueles que utilizarem a tecnologia aplicada às ciências médicas terão expectativa e qualidade de vida enormes, enquanto os excluídos não possuirão fármacos e procedimentos básicos.

Para a maioria esmagadora das pessoas inexiste um mundo analógico e outro digital, e, sim, um mundo integrado e compartilhado com auxílio da tecnologia. Assim, o constitucionalismo digital não versa somente sobre questões tecnológicas em sentido estrito. Como a realidade, o Direito e a vida cotidiana incorporaram de forma indelével os aspectos tecnológicos, o constitucionalismo na sua versão digital é o campo por excelência da teoria constitucional contemporânea.

3) O tema dos direitos
Pessoas naturais, desenvolvedores, empresas de tecnologia, governos, sociedade civil, comunidade e órgãos regionais e globais reivindicam, incorporam, reconhecem e propõem direitos nas interações tecnológicas [4]. Trata-se de fato a ser comemorado, porque os direitos e principalmente os direitos humanos e fundamentais são mecanismos centrais na filosofia constitucional e no Direito Constitucional positivo. As empresas de tecnologia desenvolvem termos de uso que se inserem na linguagem dos direitos. O Estado, por meio do Legislativo, do Executivo e do Judiciário, tutela os diretos a dados pessoais e ao acesso à tecnologia, tendo de lidar com complexas reivindicações por direitos ao esquecimento e à desindexação e combatendo a desinformação para garantir o direito à informação.

Coletivos e grupos sociais lutam por reconhecimento de direitos, o qual acontece com a utilização de aplicativos, das redes sociais e da interação por meio da internet. Em verdade, pautas antirracistas e contra o sexismo também representam demandas em relação a algoritmos e à programação da inteligência artificial que mantêm e ampliam a discriminação negativa e a opressão social. A batalha por direitos está no coração do constitucionalismo contemporâneo, logo digital.

Esse fenômeno (direitos e constitucionalismo digital), por mais relevante que seja, precisa ser compreendido criticamente ao menos sob duas dimensões. Em primeiro lugar, a visão sobre direitos de grandes empresas de tecnologia não coincide em relevantes pontos com a luta por direitos da sociedade civil e de coletivos, isto é, há diversos discursos acerca de direitos com premissas, fundamentos e consequências diferentes. Em segundo lugar, o constitucionalismo digital não se esgota na discussão e na reivindicação por direitos, já que a filosofia constitucional possui outros elementos centrais, conforme será visto no item abaixo.

4) Perspectivas sobre a estrutura do constitucionalismo digital
O constitucionalismo é a filosofia que informa a construção do Direito Constitucional positivo, além da conformação do Estado democrático de Direito e de inúmeras relações sociais. São características dessa filosofia social:

"a) As limitações estruturais e substantivas ao governo; b) o reconhecimento dos direitos fundamentais e, especialmente, dos civis e políticos; c) a constituição como um documento escrito e superior à legislação; d) a separação dos poderes; e) a integração da soberania popular nas estruturas estatais; e f) a diferença entre os espaços públicos e privados (…). Também compõem o constitucionalismo g) a autonomia entre a esfera política e a esfera religiosa, tendo como consequência a separação entre Estado e religião e a adoção do modelo de Estado laico; h) a técnica de decisão principal é a regra da maioria; i) a limitação do soberano pelo direito e pela lei; j) a existência de mecanismos de tutela dos direitos dos indivíduos e dos cidadãos; e k) o controle judicial de constitucionalidade (…)" [5].

Dessa maneira, a correta e adequada constitucionalização de temas com seu reconhecimento pelo Direito Constitucional positivo pressupõe a observância do constitucionalismo. As características apontadas acima podem e são interpretadas pelas correntes do constitucionalismo (republicana, comunitária, liberal-igualitária, popular e outras) de diferentes maneiras, porém representam elementos nucleares do conceito.

O mundo alterado pela tecnologia digital não é compreendido e regulamentado sem alterações na teoria constitucional. Por exemplo, o populismo digital é diverso do populismo analógico, visto que promove novas comunicações entre líderes e grupos populistas, assim como se observa a criação de conceito bastante distorcido de povo, a partir de um conjunto de perfis.

De outro lado, é absolutamente indevida a desconsideração da teoria constitucional tradicional. O exercício da regra da maioria com limitações especialmente em razão dos direitos fundamentais é tema clássico do constitucionalismo, o qual também é objeto de discussão na e-democracia.

5) Revisão crítica do constitucionalismo
A teoria constitucional desenvolve-se por meio de camadas, sendo a digital recentíssima. Em relação à metodologia constitucional, apresentam-se as seguintes reflexões:

"O método geológico, por outro lado, respeita essa complexidade do histórico, mas propõe uma visão que procura pelas continuidades. Na aplicação dessa visão na Teoria da Constituição, a rocha (teoria constitucional) é um todo, porém a partir de um corte do topo até a base da rocha é possível observar as suas diversas camadas, que foram formadas ao longo dos anos.
Essa perspectiva metodológica, ao invés de valorizar as rupturas e as fundamentais diferenças entre os contextos, demonstra como temas, conceitos, ideias, institutos e estruturas, os quais foram gestados em contexto histórico radicalmente diverso, acabaram por se constituir em uma camada do conhecimento fundamental em determinado ramo do saber" [6].

Os limites e as possibilidades da liberdade de expressão são assuntos clássicos do constitucionalismo, gerando debates, por exemplo, desde o século 18. Por sua vez, a adição de robôs e de inteligência artificial modifica a esfera pública, gerando com frequência desinformação e fake news. A teoria constitucional sobre a liberdade de expressão não entende como completamente obsoletas as ponderações acerca desse direito fundamental antes do mundo alterado pela tecnologia digital.


[1] Cf. GILL, Lex; REDEKER, Dennis; GASSER, Urs. Towards Digital Constitutionalism? Mapping Attempts to Craft an Internet Bill of Rights. Berkman Klein Center for Internet & Society Research Publication 2015; CELESTE, Edoardo. Digital Constitutionalism: a New Systematic Theorization. International Review of Law, Computers & Technology, 33:1, 76-99, 2019; TEUBNER, Gunther. Horizontal Effects of Constitutional Rights in the Internet: A Legal Case on the Digital Constitution. The Italian Law Journal, Vol. 03, n. 01, 2017;

[2] Cf. DANTAS, Miguel Calmon; CONI JR., Vicente. Constitucionalismo Digital e a Liberdade de Reunião Virtual: Protesto e Emancipação na Sociedade da Informação. Revista de Direito, Governança e Novas Tecnologias, Brasília, v. 3, n. 1, p. 44 – 65, Jan/Jun., 2017; TAKANO, Camila Cardoso; SILVA, Lucas Gonçalves da. O Constitucionalismo Digital e as Novas Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC). Rev. de Direito, Governança e Novas Tecnologias, Evento Virtual, v. 6, n. 1, p. 1-15, Jan/Jun., 2020; MENDES, Gilmar Ferreira; OLIVEIRA FERNANDES, Victor. Constitucionalismo Digital e Jurisdição Constitucional: uma Agenda de Pesquisa para o Caso Brasileiro. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, v. 16, n. 1, p. 1-33, out. 2020.

[3] Cf. SUSSKIND, Jamie. Future Politics: living together in a world transformed by tech. Oxford: Oxford University Press, 2018.

[4] Cf. KARPPINEN, Kari; PUUKKO, Outi. Four Discourses of Digital Rights: Promises and Problems of Rights-Based Politics. Journal of Information Policy, Vol. 10, p. 304-328, 2020.

[5] ROBL FILHO, Ilton Norberto; MARRAFON, Marco Aurélio; PANSIERI, Flávio. Constitucionalismo como salvaguarda do Estado de Direito: crítica ao (ciber) populismo autoritário e a necessária reengenharia constitucional. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica: RIHJ., v. 18, p. 142, 2020.

[6] SCHLEDER, Adriana Fasolo Pilati; ROBL FILHO, Ilton Norberto. Teoria da Constituição, Jurisdição Constitucional e Democracia: uma Análise das Camadas Clássica (SCHMITT) e Pós-Clássica (LOEWENSTEIN) no Direito Constitucional. In: Adriana Fasolo Pilati Scheleder; Ilton Norberto Robl Filho. (Org.). Jurisdição Constitucional e Democracia. Itajaí: Univali, 2016, v. 1, p. 11.

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