Opinião

O direito à renda básica na perspectiva do STF e o impacto da EC nº 114/2021

Autor

  • Fernando Henrique Médici

    é doutorando e mestre em Direito pela PUC/SP especialista em Direito Constitucional e Tributário procurador do Estado de São Paulo e ex-analista judiciário junto ao STF.

14 de janeiro de 2022, 17h09

É notório que a realidade jurídica de dada sociedade, em sendo o Direito uma ciência social por excelência, reflete e é moldada pela conjuntura factual dessa mesma comunidade em determinado tempo histórico.

O afloramento da pandemia da Covid-19, com a consequente geração de efeitos adversos tanto no campo sanitário quanto na economia de diversos países, trouxe consigo a necessidade de fortalecimento do papel do Estado como entidade fiadora e promotora dos direitos fundamentais sociais.

Pela construção de políticas públicas emergenciais, os entes estatais foram chamados a garantir a sobrevivência de indivíduos e famílias assoladas pelo desemprego e pela ausência de outros meios de obtenção da renda necessária à sua subsistência. No caso brasileiro, a criação do auxílio emergencial (Lei Federal nº 13.982/2020 e alterações) e do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda (Lei Federal nº 14.020/2020) foi exemplo de políticas públicas emergenciais destinadas à preservação do mínimo existencial dessas pessoas e famílias, assoladas pelas consequências deletérias da pandemia.

Não obstante, durante esse período de excepcionalidade também retornou com vigor o debate sobre o direito, a implementação e a efetividade dos programas sociais de transferência de renda em caráter permanente, diante do quadro persistente de baixo crescimento econômico e de aumento da pobreza no Brasil.

Ainda que o debate não seja necessariamente novo, seja no campo econômico [1], seja no campo jurídico [2], vale o destaque de movimentos recentes no âmbito do Poder Judiciário e do Poder Legislativo que impactaram na análise do tema: o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do Mandado de Injunção nº 7.300, a promulgação da Emenda Constitucional nº 114/2021 e a promulgação da Lei Federal nº 14.284/2021, objetos de consideração neste estudo. Mais precisamente, pretende-se verificar os impactos da alteração da Constituição Federal e da extinção do Programa Bolsa Família nos contornos da decisão proferida pela Corte Suprema no MI nº 7.300.

A ação constitucional citada foi ajuizada pela Defensoria Pública da União com a finalidade de reconhecimento da omissão estatal na adoção das medidas necessárias à efetivação do benefício de renda básica de cidadania previsto na Lei Federal nº 10.835/2004, o qual, apesar de criado normativamente, nunca foi implementado de fato, vez que dependente da disponibilização de recursos na legislação orçamentária da União (artigos 2º e 3º da legislação de regência).

A liminar da ação mandamental restou indeferida, sendo que, uma vez submetido o caso ao Plenário da corte, o ministro Marco Aurélio havia proferido voto no sentido de reconhecer a omissão inconstitucional na regulamentação do benefício, determinando a aplicação, por analogia, como parâmetro de pagamento, do artigo 20, §3º, da Lei Federal nº 8.742/1993, que prevê o Benefício de Prestação Continuada (BPC) no importe de um salário mínimo, aos idosos e às pessoas com deficiência em situação de vulnerabilidade social.

Por sua vez, após vista regimental, sagrou-se vencedor o voto do ministro Gilmar Mendes, ao final sendo concedida parcialmente a ordem injuncional, para: "1) determinar ao Presidente da República que, nos termos do artigo 8º, I, da Lei nº 13.300/2016, 'implemente, no exercício fiscal seguinte ao da conclusão do julgamento do mérito (2022)', a fixação do valor disposto no artigo 2º da Lei nº 10.835/2004 para o estrato da população brasileira em situação de vulnerabilidade socioeconômica (extrema pobreza e pobreza  renda per capita inferior a R$ 89,00 e R$ 178,00, respectivamente  Decreto nº 5.209/2004), devendo adotar todas as medidas legais cabíveis, inclusive alterando o PPA, além de previsão na LDO e na LOA de 2022; e 2) realizar apelo aos Poderes Legislativo e Executivo para que adotem as medidas administrativas e/ou legislativas necessárias à atualização dos valores dos benefícios básico e variáveis do programa Bolsa Família (Lei nº 10.836/2004), isolada ou conjuntamente, e, ainda, para que aprimorem os programas sociais de transferência de renda atualmente em vigor, mormente a Lei nº 10.835/2004, unificando-os, se possível (…)" [3].

Do voto do ministro Gilmar Mendes, ainda que em resumo, podemos colher algumas premissas: a) não há na Constituição Federal determinação de implementação de renda básica para toda a população brasileira, independentemente de critérios socioeconômicos (o mandado de injunção somente foi conhecido em relação as pessoas em situação de vulnerabilidade pobreza e extrema pobreza); b) há um dever constitucional de combate à pobreza e assistência aos desamparados (artigos 3º, III, 6º, caput, e 23, X, da CF/88); c) há vinculação de receita orçamentária federal para o combate à pobreza, com prazo indeterminado de vigência (Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza  artigos 79 e 82 do ADCT, artigos 1º e 3º da Lei Complementar Federal nº 111/2001 e artigo 1º da Emenda Constitucional nº 67/2010); d) há omissão inconstitucional do governo federal, por insuficiência no cumprimento do dever constitucional de proteção (proteção insuficiente), considerando a deficiência atual dos programas estatais de combate à pobreza; e e) a decisão do tribunal não pode desconsiderar as limitações fiscais e orçamentária próprias do Estado na construção de políticas públicas, tampouco definir os critérios próprios de implementação do benefício, sob pena de invasão do espaço de liberdade de conformação legislativa dado aos representantes eleitos do povo.

Já no final do ano de 2021, a par das controvérsias relativas à tramitação das propostas que resultaram na promulgação das Emenda Constitucionais nº 113/2021 e 114/2021, em especial sobre a validade do regime excepcional de pagamento de precatórios (moratória), é certo que referidas peças legislativas (especialmente a última) trouxeram alterações relevantes no espectro normativos dos direitos sociais. Some-se a isso a aprovação da Lei Federal nº 14.284/2021, com a extinção do programa Bolsa Família e criação dos programas Auxílio Brasil e Alimenta Brasil. 

Por meio da Emenda Constitucional nº 114/2021, foi inserido um parágrafo único ao artigo 6º da Constituição, que passou a assegurar que todo "brasileiro em situação de vulnerabilidade social terá direito a uma renda básica familiar, garantida pelo poder público em programa permanente de transferência de renda, cujas normas e requisitos de acesso serão determinados em lei, observada a legislação fiscal e orçamentária". A mesma emenda inseriu como objetivo da assistência social a redução da vulnerabilidade socioeconômica de famílias em situação de pobreza e extrema pobreza (artigo 203, VI). No campo das disposições transitórias, estabeleceu que os recursos decorrentes da moratória no pagamento de precatórios fossem destinados ao pagamento do programa de transferência de renda previsto no parágrafo único do artigo 6º e à seguridade social (artigo 107-A do ADCT).

Logo em seguida, o Congresso Nacional aprovou e converteu a MP nº 1.061/2021 na Lei Federal nº 14.284/2021, criando os programas Auxílio Brasil e Alimenta Brasil, em substituição ao programa Bolsa Família, previsto na Lei Federal nº 10.836/2004, agora revogada. Estabeleceu também que o programa Auxílio Brasil seria etapa gradual e progressiva do processo de universalização da renda básica de cidadania, previsto na Lei Federal nº 10.835/2004.    

Do quadro acima referenciado, vê-se que a superveniência de novo regime normativo constitucional e infraconstitucional impactou, inevitavelmente, na aplicação da decisão proferida pela Corte Suprema no MI nº 7.300.

O manejo do mandado de injunção pressupõe, de um lado, a existência de um direito ou de uma liberdade constitucional ou de prerrogativa relativa à nacionalidade, à soberania e à cidadania e, de outro, uma omissão normativa (total ou parcial) que inviabilize o exercício desse mesmo direito, liberdade ou prerrogativa (artigo 5º, LXXI, da CF/88 e artigo 2º da Lei Federal nº 13.300/2016).

O direito à assistência social e o dever estatal de combate à pobreza foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal no MI nº 7.300, com anteparo nos artigos 3º, III, 6º, caput, e 23, X, da CF/88. Esses direitos/deveres nada mais são do que desdobramentos do predicado do mínimo existencial, aqui compreendido como o conjunto de condições materiais básicas necessárias à existência digna do ser humano e por meio do qual o exercício da autonomia pública e privada, e dos demais direitos, torna-se viável [4]. É corolário inerente do princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da CF/88), sendo as Leis Federais nºs 10.835/2004 e 10.836/2004 consagradoras de políticas públicas aliecerçadas nestas previsões constitucionais [5].

Assim, a Emenda Constitucional nº 114/2021 não trouxe propriamente uma inovação constitucional, mas apenas densificou um direito subjetivo à prestação antes delineado na legislação infraconstitucional. Por ela, isoladamente, não se poderia cravar a perda de validade da decisão do STF, porque ausente alteração significativa no paradigma constitucional de controle da omissão do poder público.

Ademais, o novo artigo 118 do ADCT pareceria reforçar a decisão de apelo ao legislador na parte em que determinava que o benefício de renda básica familiar fosse regulamentado até 31 de dezembro 2022. Até a nova regulamentação, permaneceriam vigentes as Leis federais nºs 10.835/2004 e 10.836/2004, recepcionadas pela nova ordem constitucional.

Com a aprovação da Lei federal nº 14.284/2021, contudo, houve a revogação total do programa Bolsa Família, previsto na Lei Federal nº 10.836/2004, com a substituição deste pelos programas Auxílio Brasil e Alimenta Brasil. Houve, nesse aspecto, atendimento da ordem de apelo ao legislador, com a atualização dos valores do benefício de transferência de renda e integração parcial deste com o programa de renda básica de cidadania.

Não obstante, dúvidas remanescem sobre o cumprimento pleno da primeira parte da ordem injuncional, por meio da qual se determinou a "fixação do valor disposto no artigo 2º da Lei nº 10.835/2004 para o estrato da população brasileira em situação de vulnerabilidade socioeconômica". Isso porque a leitura do dispositivo da decisão leva à conclusão de que os benefícios seriam cumuláveis (Renda Básica de Cidadania e Bolsa Família) e deveriam ser implementados conjuntamente. Da unificação, parcialmente feita pela Lei Federal nº 14.284/2021, não poderia resultar escala de proteção social inferior que o pagamento de ambos os programas isoladamente.

O ponto central da decisão do STF não é a omissão total (ausência de política pública), mas a sua insuficiência, diante do quadro agravado de pobreza, desemprego e desigualdade social que assola o país. Nesse sentido, a legislação vindoura que regulamentou o benefício de renda básica familiar deveria se ater às diretrizes impostas pela decisão da corte. Não será uma decisão fácil, até porque a interpretação do artigo 11 da Lei Federal nº 13.300/2016 leva a crer que a ordem injuncional somente se cristaliza frente à legislação superveniente após o seu trânsito em julgado (artigo 5º, XXXVI, da CF/88), ainda não ocorrido.

Um adendo final que poderia ser feito é o reconhecimento da possível não recepção parcial da Lei Federal nº 10.835/2004 (e da inconstitucionalidade/invalidade, por arrastamento, do artigo 1º, parágrafo único, da Lei Federal nº 14.284/2021), na parte em que estende o direito à renda básica a todos os cidadãos brasileiros (e estrangeiros residentes há mais de cinco anos), não só àqueles em situação de vulnerabilidade socioeconômica.

A corte, segundo o voto vencedor, assentou que não haveria como defender a existência de um direito subjetivo constitucional amplo de todos os brasileiros à renda básica (inclusive por limitações orçamentárias).

A emenda, por sua vez, ao incluir o parágrafo único ao artigo 6º da Carta, o fez com a definição precisa do âmbito de proteção desse direito, limitando-o aos brasileiros (e estrangeiros) em situação de vulnerabilidade social. A Lei Federal nº 10.835/2004, pela sua extensão, parece não se amoldar à nova previsão constitucional.

 


[1] Análise feita pelo Banco Mundial sobre a eficiência dos programas sociais de transferência de renda no Brasil, tal como o Bolsa-Família e o Benefício de Prestação Continuada  BPC. Um ajuste justo: Analise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil. THE WORLD BANK. Disponível em: <http://documents.worldbank.org/curated/en/884871511196609355/pdf/121480-RE-VISED-PORTUGUESE-Brazil-Public-Expenditure-Review-Overview-Portuguese-Final-revised.pdf> Acesso em: 11/01/2022.

[2] Declaração de inconstitucionalidade parcial do artigo 20, §3º, da Lei 8.742/1993, pelo STF, com a ampliação do critério de renda de per capita para fins de concessão do Benefício de Prestação Continuada  BPC (RE nº 567.985, Relator o Ministro Aurélio, Relator p/ Acórdão o ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe de 03/10/13).

[3] MI nº 7.300, Relator o Ministro Marco Aurélio, Relator p/ Acórdão o ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe de 20/08/21.

[4] BARCELOS, Ana Paula de. apud TORRES, Ricardo Lobo et al. Direitos fundamentais, orçamento e reserva do possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2. ed., 2013. BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2013.

[5] Há que defenda que ambas as políticas públicas possuem âmbitos de proteção diferentes, não sendo a renda básica da cidadania um direito atrelado à assistência social, tal como a renda mínima Bolsa-Família (GARCIA, Gustavo Felipe Barbosa. Renda básica e renda mínima na Emenda Constitucional 114/2021. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2021-dez-25/opiniao-renda-basica-renda-minima-ec-1142021>. Acesso em 12/01/2022). Posição majoritária do STF no julgamento do MI nº 7.300, concessa venia, no sentido da similitude de ambos os programas, apelando ao legislador federal para a sua possível unificação. A Lei Federal nº 14.284/2021, na mesma direção, estabelece que o Programa Auxílio-Brasil é etapa do processo de universalização da renda básica de cidadania prevista na Lei Federal nº 10.835/2004.

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