Opinião

'Caso Márcia Barbosa de Souza e outros vs. Brasil': análise da sentença da CIDH

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3 de janeiro de 2022, 15h16

No último 7 de setembro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) proferiu sentença de mérito no "caso Márcia Barbosa de Souza e outros vs. Brasil" [1]. Este tinha por objeto crimes de homicídio e ocultação de cadáver praticados contra uma mulher que preenche o perfil da maior parte das vítimas de violência no país: negra, pobre e periférica [2].

Márcia Barbosa de Souza era uma jovem negra e pobre de 20 anos de idade, nascida na cidade de Cajazeiras, extremo oeste da Paraíba, distante 475 quilômetros da capital do estado, João Pessoa. Vivia com seu pai e sua irmã menor em uma casa próxima à de sua mãe, naquela cidade.

Em novembro de 1997, Márcia conheceu, na cidade de João Pessoa, o então deputado estadual da Paraíba Aércio Pereira de Lima, com 54 anos de idade, casado e já no exercício do quinto mandato como parlamentar.

Em 13 de junho de 1998, Márcia Barbosa foi novamente a João Pessoa. Por volta das 19 horas do dia 17 de junho de 1998, recebeu um telefonema de Aércio, e os dois se encontraram às 21 horas daquele mesmo dia no Motel Trevo. Desse estabelecimento, foi realizada uma ligação do telefone celular do deputado para um número residencial no município de Cajazeiras, tendo Márcia conversado com diversas pessoas, e uma delas falado também com o parlamentar.

Na manhã do dia 18 de junho de 1998, um transeunte presenciou quando uma pessoa retirava um corpo sem vida de uma mulher de um veículo, atirando-o a seguir em um terreno baldio no bairro Altiplano Cabo Branco, na cidade de João Pessoa. O corpo foi identificado como pertencente a Márcia Barbosa de Souza. Apresentava diversas escoriações e hematomas na região da cabeça e no dorso, e sua causa de morte foi apontada como asfixia por sufocamento, resultante de ação mecânica.

Em 19 de junho de 1998, a investigação sobre a morte de Márcia Barbosa teve início formal nos autos do Inquérito Policial nº 18/1998, com a coleta de depoimentos e provas periciais. Aos 21 de julho de 1998, o delegado de Polícia que presidiu a investigação concluiu que todos os elementos de informação coletados apontavam para a autoria dos crimes pelo deputado Aércio Pereira de Lima, com a participação de outras quatro pessoas. Todos foram indiciados.

Ocorre que Aércio era deputado estadual em exercício, gozando nessa condição de imunidade parlamentar formal, conforme previsão inserta no artigo 27, §1º, da Constituição Federal. Esse dispositivo previa, em cotejo com o disposto no artigo 53, §1º, da Constituição (na redação da época dos fatos), que desde a expedição do diploma os parlamentares estaduais não poderiam ser processados criminalmente sem prévia licença de sua casa legislativa.

Atendendo a disposição inserida no artigo 104, XII, "b", da Constituição do estado da Paraíba, o procurador-geral de Justiça propôs ação penal em desfavor de Aércio no dia 8 de outubro de 1998 perante o Tribunal de Justiça, destacando que seu início só teria efeito se a Assembleia Legislativa da Paraíba o permitisse. Por duas vezes, em 17 de dezembro de 1998 e em 29 de setembro de 1999, aquela casa legislativa negou autorização para o prosseguimento da ação penal, sem qualquer justificativa [3].

Em 2001, com a edição da Emenda Constitucional nº 35, o artigo 53 da Constituição da República teve sua redação alterada. Após a entrada em vigor, no dia 21 de dezembro de 2001, o processamento de ações penais contra parlamentares por crimes praticados após a diplomação não mais dependeria de autorização prévia da casa legislativa. O tribunal competente, caso recebesse a denúncia formulada pelo representante do Ministério Público, deveria somente dar ciência à casa respectiva, e apenas por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros o andamento do processo poderia ser sustado.

À vista disso, em 14 de março de 2003, teve início formalmente o processo-crime em desfavor de Aércio Pereira de Lima, junto ao 1º Tribunal do Júri da Paraíba, sob o número 200.2003.800.562-1. Como não se elegera para cargo eletivo no pleito de 2002 [4], figurando como suplente de deputado estadual da coligação em que se candidatara, não fazia mais jus à prerrogativa de foro conferida aos parlamentares, sendo a denúncia oferecida junto ao Tribunal do Júri — e a circunstância da não eleição pode ter também contribuído para o seguimento do processo-crime, vez que não mais poderia ser sustado pela Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba.

Aos 26 dias do mês de setembro de 2007, Aércio foi condenado a 16 anos de reclusão pela prática dos crimes tipificados no artigo 121, §2º, incisos II e III (quarta figura) e no artigo 211, ambos do Código Penal — homicídio [5] qualificado por motivo fútil e pelo emprego de asfixia e ocultação de cadáver. Interpôs em liberdade recurso contra a sentença condenatória, que aguardava exame quando o ex-deputado faleceu, em 12 de fevereiro de 2008, de infarto do miocárdio. Embora Aércio não fosse mais parlamentar do estado da Paraíba, seu corpo foi velado no Salão Nobre da Assembleia Legislativa e foi decretado luto oficial por três dias.

As outras quatro pessoas contra quem havia indícios de participação nos crimes cometidos pelo ex-deputado nunca chegaram a ser denunciadas. Após a conclusão do inquérito policial com indiciamento, foram realizadas diversas requisições de diligências por representantes do Ministério Público — algumas das quais realizadas pela Polícia Civil, enquanto outras não foram levadas a efeito, sob alegações de acúmulo de trabalho por falta de pessoal e carência de veículos em condições de trabalho. Em 12 de março de 2003, um representante do Ministério Público ofereceu promoção de arquivamento do inquérito policial por falta de provas, o que foi deferido pelo Poder Judiciário seis dias depois.

Importa destacar que toda a investigação e o processo criminal que tramitaram em desfavor de Aércio Pereira de Lima foram marcados por questionamentos e especulações a respeito da vida sexual pregressa de Márcia Barbosa, com emprego de estereótipos de gênero, e de seu envolvimento com entorpecentes.

O caso havia sido levado ao conhecimento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos desde 28 de março de 2000, quando a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recebeu uma petição assinada pelas organizações não governamentais Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), pela sua Regional Nordeste, e Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop). As entidades apontavam a responsabilidade internacional da República Federativa do Brasil por diversas violações de direitos humanos.

A comissão aprovou relatório de admissibilidade da petição em 26 de julho de 2007 e notificou as partes para apresentarem informações sobre o caso. Emitiu ao final, o Relatório de Mérito nº 10/19 [6] em 12 de fevereiro de 2019, considerando o Brasil responsável por violações a direitos previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos e na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (conhecida como Convenção de Belém do Pará), sendo o Estado signatário de ambos diplomas internacionais. Além disso, foram formuladas diversas recomendações ao país, dentre reparações devidas às vítimas e garantias de não-repetição.

O Brasil foi notificado pela comissão, recebendo prazo de dois meses para informar sobre o estado do cumprimento das recomendações estabelecidas. Apresentou apenas um relatório expressando sua intenção de cumpri-las, sem apresentar proposta concreta nesse sentido ou solicitação de dilação de prazo.

Em 11 de julho de 2019, o caso foi submetido pela comissão à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Após a tramitação regulamentar do procedimento, com apresentação de razões pelos representantes das partes envolvidas, realização de audiências públicas e apresentação de escritos por seis amici curiae (entre pesquisadoras, universidades e centros de ensino brasileiros), foi proferida sentença pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 7 de setembro de 2021.

Esta decisão se apresenta paradigmática em diversos aspectos. Foi a primeira condenação da corte ao estado brasileiro concernente integralmente à temática de violência contra a mulher [7]. A corte reconheceu que a violência contra as mulheres no Brasil era e continua sendo um problema estrutural e generalizado, concluindo que altos níveis de tolerância a esse tipo de violência estão normalmente associados a altas taxas de feminicídio. A corte evidenciou, ainda, que o emprego da imunidade parlamentar, sem qualquer indicação da presença de elementos de arbitrariedade no exercício da ação penal, de modo a comprometer a autonomia do legislador, é flagrantemente arbitrária e contribuiu sobremaneira para a impunidade verificada no caso. Ainda, destacou a falta de investigação e processamento do caso com parâmetros de gênero, o que se mostrou evidente na condução das diligências investigativas, com ênfase nos questionamentos sobre o comportamento e a sexualidade de Márcia. A direção de estereótipos de gênero e preconceitos pessoais dos investigadores influíram, para a corte, em suas conclusões profissionais sobre o que se havia praticado contra a vítima dos crimes, pondo em dúvida a própria credibilidade de Márcia nessa condição. Essas circunstâncias ficaram evidentes também, no entender da corte, na falta da devida diligência pelo Estado em empreender esforços para a identificação e o processamento de todos os envolvidos nos crimes.

Ao final da decisão, a corte estabeleceu diversas medidas de reparação integral [8], agrupadas em três níveis:

1) Como medidas de satisfação: 1.1) a publicação e a difusão da sentença e de seu resumo oficial; e 1.2) a realização de um ato de reconhecimento de responsabilidade internacional;

2) Como garantias de não repetição: 2.1) a implementação de um sistema nacional de dados sobre violência contra as mulheres, que permita análises qualitativas e quantitativas; 2.2) a prática de formação continuada das forças policiais paraibanas com perspectiva de gênero e raça; 2.3) a realização de uma jornada de reflexão e sensibilização na Assembleia Legislativa da Paraíba sobre o impacto do feminicídio e da violência contra a mulher, e sobre a imunidade parlamentar; e 2.4) a adoção e implementação de um protocolo nacional para a investigação de feminicídios;

3) Como medidas de compensação, o pagamento dos valores de indenização por danos materiais e morais à família de Márcia Barbosa de Souza.

É precoce a avaliação sobre os impactos que as medidas de reparação impostas deverão produzir na prevenção e repressão à violência contra a mulher no país, mormente no que diz respeito aos feminicídios. Nada obstante, doutrinadores como Engstrom [9], Calabria [10], Tramontana [11] discutem e demonstram a eficácia de decisões proferidas no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, refutando as avaliações de impacto que se restringem ao cumprimento estrito das manifestações da Comissão e Corte Interamericanas.

Não se pode ignorar que as decisões proferidas nesse caso e em outros que tramitaram perante a comissão e a corte refletiram em relevantes transformações sociais, notadamente no fortalecimento do sistema de enfrentamento à violência contra a mulher. Isoladamente, no entanto, não se prestam a revoluções. Restam ao Estado, às instituições e à sociedade civil trabalharem harmonicamente na direção da concretização e defesa dos direitos humanos no país.

 


[1] Disponível em https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_435_ por.pdf. A maior parte das informações apresentadas no presente artigo pode ser consultada no inteiro teor desta sentença.

[2] Dados apresentados pelo Atlas da Violência 2021 (disponível em https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/1375-atlasdaviolencia2021 completo.pdf) indicam que a taxa de mortalidade violenta para mulheres negras é 65% superior à de mulheres não negras. A população de pretos e pardos são 75,2% da população entre os 10% com menores rendimentos, e o percentual de pessoas residentes em moradias inadequadas é aproximadamente o dobro entre pessoas negras, em comparação com pessoas brancas, segundo levantamento do IBGE em 2018 (disponível em https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/25844-desigualdades-sociais-por-cor-ou-raca.html?=&t=resultados).

[3] A Resolução nº 614/1998, que denegou o primeiro pedido, apenas informava que nesse sentido havia sido a deliberação daquela Casa Legislativa, sem qualquer explicação. Em 1999, houve reunião do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar para apreciar o segundo pedido, e foi enviado ofício ao Tribunal de Justiça fazendo menção à denegação de pedido idêntico pelo plenário da Assembleia Legislativa, de acordo com a Resolução nº 614/1998.

[5] A qualificadora do feminicídio somente foi inserida no Código Penal pela Lei nº 13.104/2015.

[7] O "Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil" tratava sobre violência policial no contexto de operações perpetradas em favelas no Rio de Janeiro, com a morte de 26 pessoas durante duas incursões da polícia. Foi julgado em 2017, sendo o Brasil responsa0bilizado internacionalmente por violações de direitos humanos. Neste caso, foi pela primeira vez empregado recorte de gênero no julgamento das violações perpetradas, com análise particularizada da violência sexual empregada por agentes de estado contra três mulheres, duas delas adolescentes.

[8] A doutrina identifica, no Sistema Interamericano, cinco formas preponderantes de reparação: compensação, garantias de não-repetição, reabilitação, restituição e satisfação. Sobre a conceituação pormenorizada de cada uma dessas categorias, ver CALABRIA, Carina Rodrigues de Araújo. Alterações normativas, transformações sociojurídicas: analisando a eficácia da corte interamericana de direitos humanos. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 8, nº 2, p. 1286-1355, 2017.

[9] ENGSTROM, Par. Reconceitualizando o Impacto do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Rev. Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 2, nº 8, p 1250-1285, 2017.

[10] CALABRIA, Carina Rodrigues de Araújo. The Efficacy of the Inter-American Court of Human Rights: A Socio-Legal Study Based on the Jurisprudence of the IACHR Concerning Amnesty Laws, Indigenous Rights, and Rights of Detainees. University of Manchester, School of Law, 2018.

[11] TRAMONTANA, Enzamaria. Hacia la consolidación de la perspectiva de género en el Sistema Interamericano: avances y desafíos a la luz de la reciente jurisprudencia de la Corte de San José. In: Revista IIDH, v. 53, p. 141-181, 2011

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