guerra jurídica

Judicialização de atividade de fretamento de ônibus divide tribunais no país

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19 de fevereiro de 2022, 9h47

Em 2017, surgiu no Brasil uma startup com a promessa de oferecer viagens de ônibus de forma mais rápida e barata. Por meio de uma plataforma digital, a empresa Buser conecta passageiros e viações, para permitir que pessoas interessadas em uma mesma viagem na mesma data fretem um ônibus executivo. Porém, o modelo de transporte passou a ser amplamente contestado por outras empresas do setor, o que levou a diversas disputas judiciais nos últimos anos.

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Serviços oferecidos pela Buser já foram objeto de diversas ações judiciaisDivulgação

A Buser atua nas modalidades de marketplace e fretamento coletivo. Na primeira, vende passagens em parceria com as viações tradicionais reguladas pelas rodoviárias, e funciona como um meio de intermediação com passageiros. Já na segunda, a viagem é feita por empresas privadas de fretamento e os custos são divididos entre todos os passageiros. Este modelo é comumente comparado ao da Uber, e ao mesmo tempo é o mais atacado pelas concorrentes.

A Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros (Abrati), responsável por diversas ações judiciais anti-Buser, argumenta que o transporte rodoviário de passageiros é um serviço público por definição constitucional, e por isso depende de autorização do poder público. "Ainda que se considere transporte coletivo por fretamento um serviço privado, ele pressupõe a observância da legislação e das normas das agências reguladoras, o que a Buser e suas parceiras efetivamente não observam", diz a Abrati à ConJur.

Assim, a Buser representaria uma concorrência desleal às empresas que seguem as normas da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Segundo a Abrati, a startup ofereceria os mesmos serviços de transporte rodoviário, mas sem recolher ICMS sobre o valor integral das passagens (inciso V do artigo 12 da Lei Kandir e artigo 1º do Regulamento do ICMS), sem operar linhas de pouco fluxo (todas criadas pela ANTT a partir de estudos prévios e atendidas pelas empresas regulares), sem respeitar a frequência mínima (Resolução 4.770/2015 da ANTT) e sem garantir gratuidade a idosos (Estatuto do Idoso e Resolução 1.692/2006 da ANTT), crianças (Resoluções 1.383/2006 e 1.922/2007 da ANTT), jovens carentes (Resolução 5.063/2016 da ANTT) e pessoas com deficiência (Lei 8.899/1994).

Já a Buser alega ser uma alternativa "mais confortável, segura e barata" para os clientes. A empresa diz que os questionamentos são "o preço de desbravar um mercado novo" e argumenta que "a regulação estatal não avança na mesma velocidade das inovações".

Com a intensa judicialização, as empresas tradicionais já tiveram decisões contrárias a serviços da Buser em mais estados. Por outro lado, a Buser concentra um volume maior de decisões favoráveis em alguns dos estados mais populosos, como São Paulo e Rio de Janeiro.

Em certas decisões, magistrados estabeleceram a proibição de viagens fretadas da Buser em estados inteiros. No entanto, como também funciona na modalidade de marketplace, a empresa argumenta que nenhuma delas impede suas atividades no todo. Além disso, muitas das decisões se referem a empresas parceiras, e não à plataforma em si.

Anna Grigorjeva
Atividades da Buser e parceiras já foram barradas em vários estadosAnna Grigorjeva

A Associação Brasileira dos Fretadores Colaborativos (Abrafrec), representante de muitas das empresas que utilizam a plataforma da Buser, também diz que as companhias tradicionais tentam barrar a "competição saudável de mercado" e "tirar o direito do consumidor de ir e vir utilizando um serviço moderno, de qualidade e com preços mais acessíveis". A Abrafrec indica que tanto as plataformas de intermediação quanto as empresas de transporte fretado pagam impostos e estão sujeitas à fiscalização de segurança prevista na legislação.

Buser barrada
O estado com o retrospecto mais desfavorável à Buser é Minas Gerais. Até mesmo a viagem inaugural da plataforma, em 2017, foi interrompida por ordem da Justiça Federal. A liminar só foi derrubada por sentença no ano seguinte.

Na mesma época, a ANTT tentou impedir o fretamento da Buser nos casos em que o destino dos passageiros não fosse o mesmo e pré-definido. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região chegou a desautorizar as operações do aplicativo em Minas Gerais, mas a circulação dos ônibus mais tarde foi liberada.

No final do último ano, a Assembleia Legislativa de Minas Gerais aprovou uma lei que restringe o fretamento de viagens de passageiros no estado. A norma foi vetada pelo governador Romeu Zema (Novo), mas o veto foi derrubado pelos deputados estaduais em novembro.

A Federação de Serviços de Minas Gerais (Feserv-MG) questiona a lei por meio de ação direta de inconstitucionalidade no Tribunal de Justiça estadual. A autora alega que a norma impediria a entrada efetiva no mercado do novo modelo de prestação de serviços de intermediação por meio de fretamento compartilhado, em violação à livre iniciativa. Recentemente, o Ministério Público se manifestou de forma favorável à suspensão liminar da eficácia da lei.

No último mês de dezembro, já com a lei estadual em vigor, a 3ª Vara da Fazenda Pública e Autarquias de Belo Horizonte chegou a autorizar, em liminar, uma parceira da Buser a usar plataformas do tipo sem intervenção do Departamento de Edificações e Estradas de Rodagem de Minas Gerais (DER-MG). Contudo, no final de janeiro, a decisão foi revogada. Antes da proibição, também chegaram a ser proferidas algumas liminares favoráveis a empresas parceiras, tanto na Justiça Federal quanto no TJ-MG.

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Empresas acusam Buser de concorrência desleal; plataforma ressalta inovação

 No Espírito Santo, estado vizinho, a situação da plataforma também é desvantajosa. Além de decisões contrárias a uma parceira, a própria Buser foi proibida de divulgar, comercializar e promover viagens de qualquer trecho rodoviário em caráter regular. Em dezembro do último ano, após o descumprimento reiterado da ordem judicial, a Justiça estadual determinou a penhora online de R$ 45 milhões da empresa. A Buser alega estar cumprindo a decisão e informou que iria recorrer.

A plataforma também está proibida de prestar suas atividades sem autorização da ANTT em toda a região Sul. As decisões foram tomadas em ações movidas por federações e sindicatos do transporte rodoviário de passageiros dos três estados, e mais tarde mantidas pelo TRF-4. Para o desembargador Rogerio Favreto, relator dos casos, a tendência é a adequação da legislação à nova modalidade, mas por enquanto é necessário "aplicar a legislação vigente e obstar o exercício irregular da atividade atacada".

Os serviços da Buser também vêm encontrando obstáculos em estados do Nordeste. Recentemente, a Vara Federal Cível e Criminal de Paulo Afonso (BA) reiterou a proibição da empresa a vender passagens para rotas em toda a Bahia. Antes disso, no último ano, houve uma liminar da Justiça Federal baiana favorável a uma empresa parceira. Há ainda decisão contrária à atuação de uma parceira da Buser no Ceará. O recurso está pendente de análise pelo TJ-CE.

Circuito fechado
Se nem sempre é possível barrar toda a atividade das plataformas, a solução, muitas vezes, é impor o respeito ao chamado circuito fechado — ou seja, a manutenção do mesmo grupo de passageiros nas viagens de ida e volta. A norma é classificada pela Buser como ultrapassada, anacrônica, protecionista e anticoncorrencial.

No Distrito Federal, há pelo menos duas decisões liminares que impedem a Buser e empresas parceiras de atuarem no circuito aberto — isto é, sem que os passageiros sejam os mesmos na ida e na volta —, com recursos ainda pendentes de análise pelo TRF-1. Em outras duas decisões, a Justiça Federal do DF determinou que as autoridades liberem as viagens intermediadas pela Buser e promovidas por uma parceira, desde que feitas no circuito fechado. Além disso, duas decisões (uma liminar e uma sentença) já liberaram veículos apreendidos de parceiras.

A Buser lembra que a Frente Intensiva de Avaliação Regulatória e Concorrencial (Fiarc) do Ministério da Economia sugeriu, no último mês de janeiro, a extinção do circuito fechado, já que a norma foi estabelecida muito antes da criação dos aplicativos. No último ano, o Ministério do Turismo também defendeu o circuito aberto.

Discussões envolvem circuito fechado, regra polêmica que barra variações de passageirosReprodução

Buser liberada
Em São Paulo, há muitas decisões a favor do funcionamento do modelo da Buser. Na Justiça Federal, por exemplo, isso ocorre em ações movidas ou não pela Abrati. E não apenas na primeira instância, mas também no TRF-3.

Pelo menos outras duas decisões — uma delas mantida em segundo grau — autorizam empresas parceiras a operar na plataforma, mas, ainda assim, limitadas ao circuito fechado. Outras duas autorizam parceiras a operar especificamente no trecho São Paulo/Paraná.

Ainda, empresas parceiras já conseguiram inúmeras liminares da Justiça Federal paulista — algumas confirmadas em sentença ou pelo TRF-3 — para garantir a liberação de veículos apreendidos no estado sem o pagamento de despesas de transbordo, estadia ou remoção.

Já na Justiça estadual, casos do tipo chegaram diversas vezes ao TJ-SP, que manteve as atividades da Buser e parceiras, além de liberar veículos apreendidos. Em um deles, a corte considerou que a legislação do transporte de passageiros não se aplicaria à Buser, já que seu modelo de intermediação não permitiria classificá-la como transportadora.

Mesmo assim, o serviço não passa impune no estado. A partir do final de 2020, a Agência de Transporte do Estado de São Paulo (Artesp) passou a promover várias autuações contra parceiras da Buser. O TJ-SP já manteve algumas dessas autuações, e ainda validou o trabalho da Artesp.

Além disso, um acórdão já proibiu viagens da Buser em direção ao município de Ubatuba, no litoral paulista. Pedido semelhante, referente a viagens envolvendo a cidade de Caraguatatuba, já havia sido negado. Viagens com desembarque em Piracicaba, Americana e na capital do estado também já foram expressamente autorizadas pela corte.

O Rio de Janeiro é outro estado mais favorável à Buser. Em 2019, o TRF-2 negou a suspensão das atividades da plataforma. Em 2020, a 10ª Vara Federal do Rio de Janeiro obrigou a Buser a respeitar o circuito fechado, mas no ano seguinte o TRF-2 voltou a autorizar as viagens só de ida. Pelo menos mais uma decisão já liberou veículos apreendidos de parceira.

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Buser e parceiras têm jurisprudência favorável em SP e RJBryan Sim/Pexels

Pela Justiça estadual, três empresas parceiras já foram proibidas de operar pela Buser. No último ano, uma decisão de primeira instância negou a suspensão das operações da plataforma, o que mais tarde foi mantido pelo TJ-RJ. O MP estadual já se posicionou favoravelmente à Buser, baseado na livre iniciativa e livre concorrência.

Em Pernambuco, o Tribunal de Justiça já manteve decisão contrária à atuação de uma parceira, ainda pendente de análise pelo STJ. No entanto, a maioria das decisões da Justiça Federal do estado são favoráveis às parceiras da Buser — desde liminares até sentenças e acórdãos do TRF-5.

O sistema de fretamento colaborativo já foi questionado pela Abrati até mesmo no Supremo Tribunal Federal, em 2019, por meio de arguição de descumprimento de preceito fundamental. Após a própria Buser, a Associação Brasileira de Startups (ABStartups) e até a Advocacia-Geral da União defenderem o modelo de serviço, o ministro Luiz Edson Fachin, por questões processuais, negou seguimento à ação. Após este primeiro embate, a judicialização passou a ser mais regionalizada.

A atividade da plataforma também já foi autorizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU). A corte havia suspendido em massa outorgas de funcionamento de serviços de transporte, o que afetava a Buser, mas em março do último ano a decisão foi derrubada.

Clique aqui para ler na íntegra a nota da Abrati
Clique aqui para ler na íntegra a nota da Buser
Clique aqui para ler na íntegra a nota da Abrafrec

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