Opinião

A compensação como matéria de defesa em embargos à execução fiscal

Autor

  • Edward Shindy Toma

    é advogado do escritório Brazuna Ruschmann e Soriano Sociedade de Advogados (Bratax) e especialista em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

    View all posts

18 de fevereiro de 2022, 18h11

O Superior Tribunal de Justiça, em julgamentos recentes [1], vem proibindo que contribuintes discutam débitos originários de compensações indeferidas pelo Fisco em sede embargos à execução fiscal, ao argumento de que o Tema Repetitivo 294 [2] apenas autoriza que compensações deferidas figurem como fundamento de defesa nesse incidente processual.

A possibilidade, ou não, de se alegar a compensação como matéria de defesa em embargos à execução fiscal tem grande impacto na vida prática das empresas e dos profissionais do Direito, afinal é ela que determinará se o contribuinte irá se utilizar de uma ação de conhecimento incidental, que estará vinculada à ação principal e tramitará no mesmo juízo, ou se terá de ajuizar uma ação anulatória de débito fiscal, que, em muitos casos, pode ser dirigida a outros juízos ou comarcas, dada a restrição das Varas Especializadas em Execução Fiscal para receberem e processarem outros tipos de ações, ou mesmo em razão das regras de competência para ajuizamento de ações (exempli gratia, domicílio do réu).

O impacto, aliás, não diz respeito apenas à competência territorial para processamento das demandas. Com a tramitação de duas ações principais autônomas (id est, execução fiscal e ação anulatória de débito fiscal), surgem algumas questões de ordem prática bastante relevantes, como:

1) A incerteza quanto ao juízo para o qual a garantia deverá ser ofertada: se apresentada a garantia ao juízo da execução fiscal, surge o dever legal de oposição de embargos à execução fiscal, no prazo de 30 dias, sob pena de decurso de prazo e execução definitiva da garantia ofertada, ocasionando o já rechaçado solve et repete; mas, se apresentada ao juízo da ação anulatória, será imprescindível a concessão da tutela provisória para suspensão da exigibilidade do crédito tributário, sem a qual haverá o prosseguimento da execução para bloqueio de bens da parte executada; 

2) Eventual duplicidade na condenação da parte sucumbente em honorários advocatícios: a coexistência de duas ações com o mesmo objeto gera o risco de condenações duplicadas em honorários, o que se torna ainda mais grave quando estamos diante de execuções propostas pela União, nas quais há uma aplicação automática do encargo-legal de 20%, previsto no Decreto-Lei 1.025/69, que pode se somar à condenação na ação anulatória;

3) O prazo prescricional para ajuizamento da ação anulatória: dúvidas sobre a contagem em dois anos, conforme previsão do artigo 169, do CPC, ou em cinco anos, pela disposição contida no artigo 1º, do Decreto 20.910/1932;

4) Definição do termo inicial da contagem prazo prescricional para ajuizamento da anulatória: aspecto ainda mais relevante para os embargos à execução fiscal já em andamento, opostos à época em que o entendimento majoritário era pela possibilidade de se alegar a compensação prévia (homologada ou não) como matéria de defesa;

4) Risco de decisões conflitantes: o artigo 55, §3º, do CPC permite a reunião de processos que possam gerar risco de prolação de decisões conflitantes ou contraditórias caso decididas separadamente, mesmo sem conexão entre eles, o que se torna inviável quando estamos diante de juízos cuja competência para processamento é absoluta (exempli gratia, Vara Especializada de Execução Fiscal).

Não se pretende, no breve resumo acima, esgotar todos os problemas de ordem prática envolvidos na coexistência de duas ações autônomas com o mesmo objeto, mas não há dúvidas de que, além de contraproducente, a vedação que vem sendo imposta pelo STJ agrava a morosidade e a onerosidade do sistema judiciário como um todo.

Para além dos aspectos práticos, a condição imposta em alguns precedentes, exigindo-se que a compensação tenha sido "deferida" previamente ao ajuizamento da execução fiscal, não considera as peculiaridades existentes na legislação federal sobre a compensação tributária, além de esbarrar no entendimento vinculante do próprio STJ.

Embora comumente utilizada no Direito Privado, durante longo tempo não existiu previsão legal autorizando a compensação para a quitação de débitos tributários, a despeito de ser elencada como uma causa de extinção do crédito tributário desde a edição do CTN, em 1966. Apenas com a Lei 8.383/91 foi que surgiu, no âmbito federal, a autorização para a compensação de débitos e créditos relacionados a tributos da mesma espécie, tendo a legislação evoluído [3] até a edição da Lei 10.637/2002, que trouxe os contornos gerais do procedimento de compensação atualmente vigente.

A compensação tributária feita sponte propria pelos contribuintes, nos termos do artigo 74 da Lei 9.430/96, extingue o crédito tributário sob condição resolutória de ulterior homologação (§2º), possui natureza de "declaração de compensação"  e não mero "pedido de compensação" (§4º)  e fica sujeita à fluência do prazo de cinco anos, ao final do qual haverá a homologação tácita da compensação (§5º), sem possibilidade de questionamento pela administração tributária.

Infere-se dos dispositivos acima que, na prática, inexiste ato formal de "deferimento" ou "homologação" das declarações de compensação, dado que, no exato momento em que transmitidas, ocorre a extinção dos créditos tributários, sendo este um ato perfeito e acabado [4]. Os débitos somente voltam a ser exigíveis com a ocorrência de uma condição resolutória, que, no âmbito federal, será o despacho decisório de não homologação da compensação, a partir do qual o contribuinte poderá pagar o débito ou apresentar manifestação de inconformidade, seguindo-se o rito do contencioso administrativo previsto no Decreto 70.235/72.

A compreensão de que apenas as compensações "deferidas" é que poderiam figurar como matéria de defesa esbarra na própria legislação federal sobre o assunto, porquanto inexiste ato expresso de deferimento da compensação (id est, despacho decisório de homologação), até porque ele se faz desnecessário para as "declarações de compensação", cuja extinção dos débitos e créditos é imediata, em uma relação perfeita e acabada. A existência de um ato administrativo é reservada aos pedidos "indeferidos" ou "não homologados", sendo inviável compreender que o termo "compensação efetuada”, presente no Tema Repetitivo 294, seria o mesmo que "compensação deferida", até pela inexistência desse ato na Lei 9.430/96.

É notório, nesse sentido, que a vedação contida no §3º do artigo 16 tem por objetivo alcançar aqueles contribuintes que, em uma ação de execução fiscal, oponham embargos à execução para, ao mesmo tempo: a) reconhecer a procedência e a existência da dívida cobrada executivamente; b) afirmar ser credor da administração tributária em razão de um crédito estranho aos autos; e c) solicitar ao juízo que faça o encontro de contas necessário.

Hipótese distinta da acima é aquela em que o contribuinte, previamente à execução, já realizou a declaração de compensação sponte propria, mas seja pela pendência do prazo para a homologação tácita, seja pelo indeferimento do seu pedido a partir de fundamentos totalmente equivocados, teve os seus débitos inscritos em dívida ativa e levados à cobrança via execução fiscal. Nessa hipótese, não há dúvidas de que o contribuinte tem o direito subjetivo de alegar que a cobrança daquele débito estaria impedida pela compensação efetuada (id est, transmitida) anteriormente, que, caso fossem aplicados os critérios jurídicos corretos, seria homologada pela administração tributária. 

Inclusive, é exatamente nesse sentido a argumentação vencedora do REsp Repetitivo 1.008.343/SP, acolhida pelo ministro Luiz Fux para a firmar a tese objeto do Tema Repetitivo 294:

"Isso porque, o que veda a Lei 6.830/80 é que o devedor, em sede de embargos à execução, reconhecendo a procedência e a existência da dívida cobrada executivamente, oponha-se ao pagamento do débito alegando que, por ser credor da Fazenda Pública em razão de indébito tributário por ele suportado, o débito objeto da execução haverá de ser extinto pela compensação com o crédito resultante do indébito.
Diametralmente diversa é a hipótese dos autos em que a compensação precedeu a irregular formação do título executivo. Ou melhor, o débito correspondente à compensação já realizada com base na lei (no caso o artigo 66, da Lei 8.383/91 e os artigos 73 e 74, da Lei 9.430/96). Com efeito, nesta hipótese, contrariamente ao que veda a lei de execução fiscal – o executado não admite a existência de débito ou tampouco a procedência da cobrança. Ao contrário, demonstra que, valendo-se da prerrogativa legal, liquidou previamente a obrigação tributária também pré-existente".

Relembre-se que é função primordial do Poder Judiciário a resolução de conflitos entre cidadãos, entidades e Estado, tal como decidir sobre a validade do argumento utilizado por uma administração tributária para indeferir a compensação declarada pelo contribuinte. Situação absolutamente diversa, e que não se encontra dentro das funções do Judiciário, é aquela em que inexiste litígio entre as partes, mas apenas a intenção de se utilizar da Justiça para acomodar obrigações entre credores e devedores recíprocos, o que justifica a redação dada ao artigo 16, §3º, da LEF.

É necessário reconhecer, ainda, que o Código de Processo Civil, em seu artigo 917, permite ao devedor alegar a inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação (inciso I), assim como qualquer outra matéria que lhe seria lícito deduzir como defesa em processo de conhecimento (inciso VI), não havendo qualquer incompatibilidade desse dispositivo com a previsão contida no artigo 16, §3º, da LEF, dado que o seu conteúdo veda a utilização do Poder Judiciário como intermediador do encontro de contas entre as partes.

Mas ainda que, no limite, fosse reconhecida a vedação de toda e qualquer alegação de compensação como matéria de defesa em embargos à execução fiscal, haveria evidente conflito entre a LEF e norma contida no CPC. Nesse particular, embora pudesse se alegar a prevalência da LEF, em atenção ao disposto nos artigos 1º da LEF e 771 do CPC, o contexto histórico-normativo e a coerência do sistema normativo não permitiriam tal conclusão. 

Afinal, a LEF foi decretada em 1980, tendo por suporte a Constituição de 1967, promulgada sem a devida atenção aos direitos e garantias fundamentais, especialmente o acesso à Justiça. Para tais situações, o STJ tem interpretado o ordenamento jurídico de forma unitária, aplicando a teoria do diálogo das fontes para reconhecer a prevalência de dispositivos do CPC quando conflitarem com a LEF, uma vez que "normas gerais mais benéficas supervenientes preferem à norma especial (…), a fim de preservar a coerência do sistema normativo" [5], principalmente quando tornarem mais célere e eficaz o processo como técnica de composição de lides [6].

O que se conclui, do acima exposto, é que o entendimento distorcido sobre o alcance do termo "compensação efetuada", previsto no Tema Repetitivo 294, vem trazendo grandes incertezas para empresas e profissionais do direito. Isso não deveria ocorrer, afinal, o precedente vinculante firmado em 2009 não deixa qualquer margem de dúvida sobre a possibilidade de trazer a compensação transmitida (id est, homologada, não homologada ou pendente de homologação) como uma matéria de defesa em sede de embargos à execução fiscal.

Mitigar essa possibilidade, como vem sendo feito em alguns precedentes do STJ, acaba por violar a sistemática de compensações (Lei 9.430/96), o REsp Repetitivo 1.008.343/SP e traz uma série de problemas de ordem prática envolvidos na coexistência de duas ações autônomas com mesmo objeto, o que fragiliza a coerência do sistema normativo e agrava a morosidade e a onerosidade do sistema judiciário como um todo.

 


[1] Vide, por exemplo, EREsp 1.795.347/RJ, pendente de julgamento de Embargos de Declaração opostos em 02/12/2021; e EARESP 1.238.111/RJ, pendente de julgamento de Agravo Interno interposto em 26/01/2022.

[2] "A compensação efetuada pelo contribuinte, antes do ajuizamento do feito executivo, pode figurar como fundamento de defesa dos embargos à execução fiscal, a fim de ilidir a presunção de liquidez e certeza da CDA, máxime quando, à época da compensação, restaram atendidos os requisitos da existência de crédito tributário compensável, da configuração do indébito tributário, e da existência de lei específica autorizativa da citada modalidade extintiva do crédito tributário".

[3] "Vale lembrar que, no âmbito federal, durante longo tempo simplesmente não havia permissão para a compensação, até que, de 10.12.1991 a 27.12.1996, a Lei nº 8.383/91, veio autorizar a compensação de créditos e débitos relacionados a 'tributos da mesma espécie'".  De 27.12.1996 a 30.12.2002, a possibilidade de compensação foi ampliada, permitindo o encontro de contas entre tributos federais de diferentes espécies, mas condicionando sempre à prévia autorização por parte da administração fazendária.  E, finalmente, em 3012.2002, com a alteração do artigo 74, da Lei nº 9.430/96, pela Lei nº 10.637/2002, a compensação passou a poder ser feita pelo sujeito passivo por sua conta e risco, ficando sujeita à posterior homologação ou não pela autoridade fiscal federal. (BRAZUNA, José Luis Ribeiro. Direito Tributário Aplicado. São Paulo: Almedina, 2020, p. 216).

[4] Nesse sentido, confira-se a redação do artigo 116, inciso II, e o artigo 117, inciso II, do CTN:

"Artigo 116 –  Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos: (…)
II – tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que esteja definitivamente constituída, nos termos de direito aplicável. (…)
Artigo 117 – Para os efeitos do inciso II do artigo anterior e salvo disposição de lei em contrário, os atos ou negócios jurídicos condicionais reputam-se perfeitos e acabados: (…)
II – sendo resolutória a condição, desde o momento da prática do ato ou da celebração do negócio".

[5] STJ, AgRg no REsp 1.196.537-MG, 1ª Turma, relator ministro Luiz Fux, j. 3.2.2011

[6] STJ, REsp 1.024.128-PR, relator ministro Herman Benjamin, j. 13.5.2008.

Autores

  • é advogado do escritório Brazuna, Ruschmann e Soriano Sociedade de Advogados (Bratax) e especialista em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!