Opinião

A inconstitucionalidade com fundamentos no princípio da igualdade

Autor

  • Bernardo Gonçalves Fernandes

    é pós-doutor em Direito pela Universidade de Coimbra mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal Municipal de Minas Gerais (UFMG) e presidente da Comissão de Direito Constitucional e Estudos Constitucionais da OAB-MG.

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18 de fevereiro de 2022, 13h43

A promulgação da Lei nº 14.195/2021, que supostamente possuía o objetivo de melhorar o ambiente de negócios do país (pelo menos de acordo com a exposição original de motivos da MP nº 1040/2021), abarcou em seu texto final, por meio da introdução do nefasto artigo 53 (ao apagar das luzes!), infame mudança no artigo 44 da Lei nº 4.886/1965.

Essa inexplicável e abrupta alteração normativa estabeleceu regra de preferência em relação aos créditos originados de relação com representantes comerciais (pessoa física ou jurídica), equiparando-os à mesma natureza dos créditos trabalhistas, e foi mais além, criando regra de extraconcursalidade de vigência imediata e, pasmem, retroativa!

O leque de inconstitucionalidades é vasto.

Envolve inconstitucionalidade material, por afronta ao princípio da igualdade (isonomia) e ao princípio da segurança jurídica (no que tange ao aspecto de irretroatividade legal), e inconstitucionalidade formal, no que diz respeito ao que intitulamos hodiernamente de contrabando legislativo.

Equiparar o credor trabalhista, em que há prevalência do caráter alimentar das verbas a receber, com o credor representante comercial, pessoa jurídica, é, com certeza, um absurdo e corrompe o nobre propósito da criação do benefício aos credores pessoa física e indo na contramão de consolidado entendimento jurisprudencial (aqui basta ver o posicionamento do STF no RE n° 606.003-Repercussão Geral-Tema 550).

A questão, em termos constitucionais, com base na eficácia horizontal dos direitos fundamentais (em que sabidamente se aplicam os direitos fundamentais nas relações privadas), é a seguinte: por que o representante comercial pessoa jurídica, do ponto de vista material, seria um credor mais importante do que o empregado da devedora, que presta os serviços em cumprimento dos requisitos da hierarquia, habitualidade, exclusividade, subordinação e possui um crédito contra a devedora (recuperanda).

Outro ponto marcante da malfada norma é o atinente à segurança jurídica, no que diz respeito ao artigo 5º, XXXVI da Constituição de 1988, que afirma que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

O legislador não ficou satisfeito com a equiparação entre o representante comercial e os demais credores trabalhistas das pessoas físicas. Na lógica de que desgraça pouca é bobagem, foi normatizada uma hipótese da recuperação extrajudicial para o representante comercial! Isso mesmo: o leitor não está lendo errado!

O que o parágrafo único do artigo 44 da Lei nº 4688/65 (alterada pelo artigo 53 da Lei nº 14.195/2021) fez foi criar um privilégio injustificável para o crédito do representante comercial (pasme-se: ainda que pessoa jurídica), afastando, somente para ele, essa competência do juízo da recuperação judicial.

Mas não é só isso! Por fim, a Lei nº 14.195/2021, no artigo 58, V, prevê que o artigo 53, que altera a Lei nº 4.886/65, entrará em vigor na data de sua publicação, sem, contudo, ressalvar sua eficácia aos casos em que já foi deferido o pedido de recuperação judicial e que já há homologação do plano, atos jurídicos perfeitos a serem inexoravelmente observados, conforme o artigo 5º, XXXVI, da Constituição de 1988.

Isto é, o dispositivo reputado inconstitucional prevê que, mesmo na hipótese de o crédito do representante comercial existir na data do pedido de recuperação judicial, esse crédito (diferentemente do credor trabalhista!) não se submeterá aos efeitos do processo recuperacional, se o trânsito em julgado da sentença que o reconheceu for posterior ao referido pedido de recuperação judicial.

Em síntese, o novel dispositivo legal, no caput, iguala o representante comercial aos credores trabalhistas, mas, no parágrafo único, excepciona-os da regra do artigo 49 da Lei nº 11.101/2005 para conferir-lhes tratamento preferencial evidentemente inconstitucional. Isso gera a inadmissível situação em que um representante comercial, que teve um crédito inadimplido, vai receber antes de um trabalhador, que não teve seu salário pago, ainda que ambos os fatos geradores tenham ocorrido na mesma data.

A título de exemplo, de aplicação concreta dessas disposições arbitrárias e com graves consequências, cita-se recente decisão envolvendo uma das maiores recuperações judicias da história, a da Oi SA, concessionária do setor de telecomunicações, que acabou afetada pela impertinente e bizarra alteração legislativa. Aliás, nada melhor que um caso concreto para exemplificar e fundamentar o absurdo.

Pois bem, em decorrência da alteração legislativa ora em análise, a recuperanda viu-se em face de credor representante comercial pessoa jurídica, requerendo o bloqueio de bens em total desrespeito ao plano de recuperação judicial já em vigor, que abarcava o crédito em referência. O grande problema não é um pedido ter sido simplesmente formulado, afinal, bem diz o dito popular que papel aceita tudo, mas, sim, o fato de um pedido fulcrado em legislação absolutamente inconstitucional ter sido, pasme-se, deferido. Consequentemente, a empresa se encontra sob o risco iminente de penhora absolutamente indevida de montante que chega aos nove dígitos (mais de R$ 200 milhões!). E, assim, assistimos a mais uma jabuticaba nascida no solo brasileiro.

O caso revela o quão nefastas podem ser as consequências da previsão normativa ora em exame, que expõe empresas em recuperação judicial, cuja retomada da saúde financeira importa não apenas a seus acionistas e colaboradores, mas a toda a sociedade brasileira, sobretudo em tempos tão difíceis em que todas medidas que garantem a manutenção de empregos e o bom andamento da economia são tão necessários.

É importante destacar, ainda, que o novo artigo 44 não apenas ignora as inovações trazidas pela Lei nº 14.112/2020 (que criou a hipótese da recuperação extrajudicial), mas também contradiz a própria lógica do procedimento de recuperação judicial, uma vez que o recuperando pode se ver diante de créditos considerados extrafalimentares, mas que já existiam à época do pedido de recuperação.

Isto é, credor cujo crédito teve fato gerador prévio ao pedido de recuperação, conseguiu, mediante a aplicação da nova redação do artigo 44 da nº 4.886/1965, desconsiderar os arranjos montados quando da aprovação do plano de recuperação (aprovado em momento prévio a entrada em vigor da norma), pulando à frente do resto dos credores em manobra altamente controversa.

Não bastasse a inconstitucionalidade material por clara violação ao princípio da isonomia (igualdade material) e da segurança jurídica nos termos do artigo 5, XXXVI (na lógica do cabal descumprimento do ato jurídico perfeito) da Constituição de 1988, abundam evidências de que a nova redação do referido artigo é, em verdade, contrabando legislativo, conforme definição estabelecida quando das discussões prolatadas no bojo da ADI 5.127-DF em 2015.

O contrabando legislativo ocorre quando o Parlamento afronta os preceitos democráticos e o devido processo legislativo na medida em que desvirtua conteúdo de projeto de lei (ou de MP), inserindo matéria estranha (sem pertinência temática) ao projeto original.

Ou seja, é agregada uma emenda (jocosamente intitulada de jabuti) a projeto de lei ou mesmo a medida provisória (que foi o caso da MP nº 1.040/2021), que não guarda pertinência temática com o PLO ou com a MP. Portanto, também teríamos uma insofismável inconstitucionalidade formal no novo artigo 44 da Lei nº 4.688/65.

O cômico é que primeiro foi alterado o escopo da MP com uma emenda ao artigo 1º para posteriormente acrescentar o artigo 53 (que foi convertido na ora debatida Lei nº 14.195/2021). Na lógica popular: onde passa um boi passa uma boiada. De início uma emenda muda, de forma abrupta, o escopo da MP nº 1.140/2021, e, por fim, surge uma nova emenda que se tornou a norma bizarra, que ora questionamos. Ora, se assim for, não há mais segurança alguma no processo legislativo.

Vejamos: um projeto de lei sobre o tema educação pode ter o escopo alterado (ampliado indevidamente) para construção civil e empreendimentos, e assim, no meio de normas sobre educação infantil ou superior, aparecer uma norma para a construção de um shopping no anexo atrás do Congresso Nacional. Tal como o contrabando tradicional (do Direito Penal), o contrabando legislativo se sofistica! Esperamos que o STF esteja atento a isso.

E aqui, sempre é bom lembrar, de acordo com a jurisprudência do STF a conversão de MP em lei não convalida vício existente na MP (seja o vício qual for).

A evidente inadequação na produção da emenda agregada à MP nº 1.040/2021 revela, ainda, uma estranha pressa e uma ausência de diálogo (necessário no jogo democrático do Parlamento) que é muito comum nos casos de contrabando legislativo. Algo que aparece de repente, que passa despercebido, que fica na penumbra (de forma sub-reptícia) e sem pertinência temática com a proposição original, aparece no texto legal final.

A MP nº 1.040/2021 (que foi convertida na Lei nº 14.195/2021), vale destacar, buscava como um de seus principais objetivos a melhora da segurança jurídica do ordenamento pátrio. Ora, nada mais contraditório que a presença do novo artigo 44 e seu parágrafo único em uma MP (e posteriormente na lei) cujo propósito era a segurança jurídica.

Aliás, aqui mais um questionamento: por que a emenda à MP ora em análise não foi incluída no projeto da nova Lei de Falências? Qual a finalidade de fugir-se dos amplos debates e diálogos travados no âmbito da tramitação do projeto de Lei de Falências (esse, sim, que deveria tratar do tema!)?

Pode-se afirmar que a proposta do artigo 44 não sobreviveria a um escrutínio maior que o da tramitação intempestiva da MP nº 1.040/2021, tornando-se lei como o ladrão de noite, à semelhança do dia do Senhor. Em bom português: a emenda é produto de um sorrateiro contrabando legislativo.

Constatada, portanto, a inconstitucionalidade formal, na forma do contrabando legislativo que ocasionou a emenda, e a inconstitucionalidade material, devido à ausência de fundamento constitucional que permita a violação da igualdade entre os credores in casu, (artigo 5 da CR/88), bem como a violação flagrante à segurança jurídica (artigo 5, XXXVI da CR/88), impossível alijar-se do despropósito do artigo 53 da Lei nº 14.195/2021.

A balbúrdia gerada pela nova redação do artigo 44 da Lei nº 4.688/65 já é alvo de questionamento na ADI 7.054. Espera-se que o Judiciário corrija a contrariedade à Constituição causada pela atuação do Poder Legislativo. A ver como essa nova jabuticaba será enfrentada.

Autores

  • é pós-doutor em Direito pela Universidade de Coimbra, mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professor associado de Direito Constitucional da UFMG, professor adjunto de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e presidente da Comissão de Direito Constitucional e Estudos Constitucionais da OAB-MG.

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