Existe espaço para a Defensoria Pública na reforma da Lei de Improbidade?
15 de fevereiro de 2022, 8h00
Com o advento da Lei nº 14.230/2021, houve significativa modificação do regime de tutela da moralidade administrativa. A reforma alterou substancialmente o conteúdo da Lei nº 8.429/92, trazendo impactos ao próprio microssistema da tutela coletiva. Nesta breve reflexão, pretende-se instalar o debate a respeito da (in)subsistência da legitimidade da Defensoria Pública para o ajuizamento de ações de improbidade administrativa.
Antes, porém, é necessário um breve panorama do posicionamento teórico em torno do tema, especialmente as teorias institucionais a respeito da atuação da Defensoria Pública na defesa da moralidade administrativa.
Certo que a máquina estatal não está sujeita a falhas, sendo muito comum que a utilização indevida da estrutura pública possa causar danos à sociedade, em nítido desrespeito ao artigo 37, caput, da Constituição Federal, o legislador entendeu por definir um regime sancionador, na forma do §4º do citado dispositivo constitucional.
Em sua redação original, a leitura do artigo 17 da Lei nº 8.429/1992 estabelecia a legitimidade da ação de improbidade ao Ministério Público e a pessoa jurídica interessada.
Entretanto, para a doutrina institucional da Defensoria Pública, esse rol sempre foi encarado em caráter meramente enunciativo [1], de modo a permitir a ampliação da legitimação com a inclusão da defesa de dos vulneráveis que pudessem ser atingidos pelos atos de improbidade e seus reflexos.
Essencialmente, a ação de improbidade administrativa sempre foi encarada como uma ação coletiva [2], pois nela havia a tutela transindividual por lidar com o patrimônio e os interesses públicos, fazendo parte, portanto, e de forma até então pacífica, do microssistema da tutela coletiva.
Quando a Defensoria Pública dispôs de legitimação para a tutela coletiva, com fundamento do artigo 5º, II, da Lei da Ação Civil Pública; artigo 4º, VII, da Lei Complementar nº 80/1994; e no próprio artigo 134 da Constituição Federal, a interpretação do microssistema de tutela coletiva permitiu extrair a legitimidade para a ação de improbidade, conforme opinião comungada por Alexandre de Moraes Saldanha [3], Erik Palácio Boson [4], Felipe Kirchner e Patricia Kettermann [5].
O artigo 4º, VII, da LC nº 80/1994, ao se utilizar da expressão "todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos", permitiria também a conclusão positiva pela legitimidade para a ação de improbidade [6].
No plano jurisprudencial dos tribunais superiores o tema não foi objeto de reflexão. Apesar disso, havia um precedente que, apesar de não versar diretamente sobre a ação de improbidade trouxe importantes contribuições para a legitimidade da Defensoria Pública no ajuizamento de ação coletiva, cuja causa de pedir discutia questão reflexa sobre a improbidade administrativa (TJ-RS — 1ª Câmara Cíve l — Agravo de Instrumento nº 70.034.602.201 — relator desembargador Carlos Roberto Lofego Caníbal).
Agora, após a reforma operada pela Lei nº 14.230/2021, faz-se necessário repensar a subsistência dessa legitimação da Defensoria Pública, tendo em vista duas grandes rupturas impostas pela lei ao regime de improbidade administrativa.
A primeira delas foi a reforma no artigo 17 da Lei nº 8.429/92, em que a legitimação para agir resta agora concentrada, exclusivamente, nas mãos do Ministério Público [7]. O legislador optou por suprimir a legitimidade das pessoas jurídicas e, ao mesmo tempo, não incluir outro legitimado, a exemplo da Defensoria Pública.
Teria sido um silêncio eloquente do legislador em não desejar que a legitimidade fosse espalhada para outros atores? Cremos que, em uma primeira leitura, a resposta seja positiva, em razão do novo perfil (punitivo não penal) que o legislador pretende atribuir à ação de improbidade.
Apesar de já termos externado preocupação em iniciativas legislativas que concentrem poderes nas mãos de um único legitimado, especialmente o Ministério Público, a realidade é que o propósito do legislador é o de manter coerência com os demais dispositivos legais por ele modificados que instituem nova natureza ao procedimento de improbidade.
Ao disciplinar o regramento da ação de improbidade como uma demanda de cunho punitivo, dedicada ao sancionamento de gestores da coisa pública, pretende o legislador conferir o tratamento de viés sancionatório, mas com a incidência de normas civis.
Essa coerência se extrai da leitura do caput do artigo 17 e do seu §16, que determinam a aplicação das disposições do Código de Processo Civil (em detrimento das normas do microssistema de tutela coletiva) e permitem a conversão da ação de improbidade em ação civil pública.
A opção do legislador parece ser a de afastar a relação normativa entre o microssistema da tutela coletiva e ação de improbidade, concentrando a legitimação extraordinária do Ministério Público ao papel punitivo-sancionador. Tanto é assim que a ação de improbidade pode ser convertida em ação coletiva, o que significa, ao menos do ponto de vista legislativo, dizer que ela não é ação coletiva.
Acresça-se, ainda, o artigo 17-D quando contribui com importante paradigma nessa linha de pensamento, ao enunciar que a "ação por improbidade administrativa é repressiva, de caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal previstas nesta lei, e não constitui ação civil".
O mesmo dispositivo disciplina que a ação não pode ser ajuizada para o "controle de legalidade de políticas públicas e para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos", cuja pretensão deve ser veiculada por meio de ação civil pública, também na tutela de danos ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, a qualquer outro interesse difuso ou coletivo, à ordem econômica, à ordem urbanística, à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos e ao patrimônio público e social.
No plano doutrinário importante debate vem sendo tratado pelos autores da tutela coletiva, sem que haja um consenso claro sobre a saída da ação de improbidade do microssistema. De um lado, Hermes Zaneti Jr. encara que a reforma legislativa não desnatura a qualidade coletiva da ação de improbidade, continuando ela a fazer parte do microssistema, ainda que o legislador lhe atribua uma natureza "cível-sacionatória" [8].
De outro vértice, Fredie Didier Jr. adere à compreensão de que a ação de improbidade administrativa se reveste de um perfil punitivo não penal [9], desvinculando-a do microssistema da tutela coletiva, com sua consequente inserção nos "processos punitivos".
A prevalecer o segundo entendimento, proposto por Didier, o alicerce interpretativo da legitimidade da Defensoria Pública para a ação de improbidade restará integralmente corrompido, pelas seguintes razões:
1) A afirmação legislativa da legitimação de agir concentrada no Ministério Público;
2) A desnaturação da ação de improbidade administrativa como ação integrante do microssistema da tutela coletiva;
3) A atribuição do perfil "punitivo não penal" à ação de improbidade e a ausência de correlação com o rol de funções institucionais da Defensoria Pública previsto no artigo 4º da Lei Complementar nº 80/94.
Por fim, importante observar que algumas ações diretas de inconstitucionalidade (7042 e 7043) foram ajuizadas contra os dispositivos da reforma da Lei de Improbidade Administrativa, o que pode ressignificar as reinterpretações propostas, notadamente se criados elos de conexão com o processo coletivo, em virtude da supressão dos dispositivos.
[1] "Noutras palavras, sendo a Lei de improbidade administrativa uma norma de matéria substancial (e não uma lei de ritos), as regras processuais que se aplicam à Ação de Improbidade são as normas procedimentais estabelecidas pela Lei da Ação Civil Pública", integradas pelo Código de Defesa do Consumidor. (BOSON, Erick Palácio. A Defensoria Pública e a Tutela Jurisdicional da Moralidade Administrativa, Salvador: JusPodivm, 2016, pág. 88).
[2] "Vem se firmando o entendimento de que a ação judicial cabível para apurar a punir os atos de improbidade tem a natureza de ação civil pública, sendo-lhe cabível, no que não contrariar disposições específicas da lei de improbidade, a Lei nº 7.347, de 24-7-85.” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 19ª edição, São Paulo: Atlas, 2006, pág. 789).
[3] SALDANHA, Alexandre de Moraes. Da Legitimidade Ativa da Defensoria Pública para a Propositura de Demandas pela Prática de Atos de Improbidade Administrativa. Disponível em: <file:///C:/Users/Defensor/Downloads/6032-16342-1-SM.pdf>. Acesso em: 22-06-2015.
[4] BOSON, Erik Palácio. "A defensoria pública e a tutela jurisdicional da moralidade administrativa". Salvador: Juspodium, 2016.
[5] KIRCHNER, Felipe; KETTERMANN, Patrícia. A legitimidade da Defensoria Pública para o manejo de ação civil pública por ato de improbidade administrativa. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 102, nº 929, p. 361-415, mar. 2013.
[6] Carlos Eduardo Rios já sustentava esta legitimidade, mediante o seguinte argumento:
"A promoção dos direitos humanos e a defesa dos direitos coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados e aos grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado só existe e pode ser levada a efeito quando possível o controle dos atos da administração pelo povo, através da Defensoria Pública, quando tais atos sejam violadores das regras de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência que devem nortear o agente público. Assim, mesmo que tardiamente, deve a Defensoria Pública zelar pela observância dos deveres de probidade administrativa naquilo que diga respeito a suas atribuições e funções institucionais e que, de alguma forma, possa tutelar grupo de cidadãos hipossuficientes e grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado, também credores da moralidade administrativa em toda a sua máxima amplitude". (RIOS, Carlos Eduardo. Legitimidade Ativa da Defensoria Pública para a Ação de Improbidade Administrativa no Microssistema de Tutela Coletiva. Disponível em: <http://www.anadep.org.br/wtk/pagina/materia?id=7610>. Acesso em: 10-01-2015).
[7] A ação para a aplicação das sanções de que trata esta Lei será proposta pelo Ministério Público e seguirá o procedimento comum previsto na Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), salvo o disposto nesta Lei.
[8] DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil. 16. Ed. Salvador: Juspodivm, 2022, P. 26.
[9] DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil. 16. Ed. Salvador: Juspodivm, 2022, P. 30-31.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!