Opinião

O Habeas Corpus e o MP nos tribunais superiores: dupla face institucional?

Autores

  • Eugênio Pacelli de Oliveira

    é advogado doutor em Direito pela UFMG ex-Procurador-Regional da República no Distrito Federal e relator-geral da Comissão de Anteprojeto do Novo Código de Processo Penal instituída pelo Senado da República.

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  • Domingos Barroso da Costa

    é defensor público no Rio Grande do Sul com atribuição de atuação junto aos tribunais superiores e mestre e doutorando em Psicologia pela PUC-Minas.

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14 de fevereiro de 2022, 15h01

O desenho institucional do Ministério Público na Constituição da República consagrou dois níveis de divisão, a partir de diferentes fundamentos, a saber: 1) o fracionamento orgânico, segundo a distribuição de competência jurisdicional por matéria (Ministério Público dos estados, Federal, Eleitoral, Militar e do Trabalho); e 2) a simetria da atuação, segundo o grau de jurisdição.

Assim foi que, por escolha constitucional, coube à Procuradoria-Geral da República, órgão do Ministério Público Federal, a presentação da instituição no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal. Razões de divisão territorial podem ajudar a explicar: o Ministério Público dos Estados atua perante o Poder Judiciário estadual. Naturalmente, com legitimidade e capacidade recursal para, naquela instância, fazer subir suas pretensões, via recurso especial e recurso extraordinário.

No plano de organicidade, portanto, não restam dúvidas quanto à definição de capacidade postulatória e de ofício junto aos tribunais superiores ter sido reservada de modo explícito ao Ministério Público Federal. Escolha constitucional, repita-se.

Em tempos não tão distantes, porém, a Suprema Corte veio a reconhecer a possibilidade de intervenção dos Ministérios Públicos dos estados junto àquele tribunal, ao fundamento, compreensível, de que, sendo ele parte legitimada ao recurso, deveria ser-lhe franqueada a sustentação de suas razões na corte. E isso a despeito de lá se encontrar o assento da Procuradoria-Geral da República, com voz e escrita sobre a matéria.

No entanto, mais recentemente ainda, e em sede de repercussão geral (RE 985.392/RS  Tema 946), deu-se um passo adiante, permitindo-se a livre atuação do Ministério Público dos estados nos tribunais superiores, inclusive em Habeas Corpus, em que ele não ocupa a posição de parte processual. Mesmo por lá já oficiando a Procuradoria-Geral da República.

Ao que tudo está a indicar, parte-se de premissa teoricamente insustentável e, na prática, reveladora de seu fracasso: não há e nem pode haver dupla função do MP! Tampouco de dupla presentação. Não se pode admitir a ideia de um MP exclusivamente parte, ao lado  lado a lado mesmo!  de outro que, então, cumpriria a função de custos legis. Não se sabe a fonte normativa que autorizaria essa estranha distinção. A se ler, com olhos de ver  lupa, se necessário , ao Ministério Público se reserva a relevante função de zelar pela ordem jurídica, com autonomia e independência funcionais.

Não há outra leitura possível, data vênia. No processo penal, o Ministério Público não é obrigado a acusar; o Ministério Público não é obrigado a postular a condenação; o Ministério Público pode  e, às vezes, deve  recorrer em favor do acusado. Nesse processo de natureza penal condenatória, o Ministério Público pode e deve arquivar inquéritos, pode e deve requerer a absolvição de quem ele vê como inocente, ou por outra razão qualquer. E assim ocorre com ele atuando como parte processual. E nem por isso estará desobrigado de sua função constitucional de defender a ordem jurídica, que inclui defender o inocente.

É artificial e infundada a separação a órgãos diferentes entre funções acusatórias e de atuação custos legis. O Ministério Público não é parte no sentido de compromisso processual com a tese acusatória. Não é obrigado a recorrer de decisões absolutórias. Sua atuação há de ser orientada, em todos os níveis do processo e em quaisquer órgãos de jurisdição, pelo dever de zelar pela ordem jurídica. O que inclui, repita-se, a defesa do inocente. Em uma definição clara: ele é sempre custos legis!

Por isso, independentemente da conclusão sobre a capacidade postulatória do Ministério Público dos estados nos tribunais superiores, emerge outra, insuperável: não pode haver dupla manifestação do Ministério Público nesses processos. A unidade institucional o exige; a indivisibilidade o impõe. Se ele é recorrente  recurso especial e recurso extraordinário  vá que se admita a sua intervenção diretamente no tribunal para a defesa de sua tese, ainda que questionável a sua capacidade postulatória, segundo os termos da Constituição da República. Mas aí não se poderá agregar a ela a intervenção da PGR.

Em relação ao Habeas Corpus, então, ação constitucional de salvaguarda dos interesses processuais defensivos, a tese é ainda mais injustificada. O fato é que esse entendimento já vai se consolidando, sem acréscimos ou ponderações de especificidades. E é justamente no Habeas Corpus, quando o MP não for parte, que maiores e melhores razões militam em favor da exigência de que a intervenção custos legis seja única e sem superposição.

Mais do que isso, não sendo os Ministérios Públicos estaduais partes processuais no Habeas Corpus, nada há que justifique sua capacidade postulatória junto aos tribunais superiores, ainda quando não se possa deixar de reconhecer seu interesse jurídico, já que do Habeas Corpus poderá resultar o encerramento da persecução penal. Se a questão discutida se limitar ao debate sobre competência jurisdicional, então, rigorosamente nenhuma seria a justificativa, havendo de prevalecer a unidade institucional (inexiste superioridade material entre membros do MP).

No entanto, esse interesse não pode ser qualificado como de parte, posto que parte ele não é (a menos que seja o impetrante). Mas não só: lá, nos tribunais superiores, já há órgão do Ministério Público zelando pela defesa da ordem jurídica, o que inclui a intervenção no Habeas Corpus, com capacidade e legitimidade recursal, como ninguém negou até hoje. A bem da verdade e se formos usar de rigor técnico, sequer se pode afirmar que o Habeas Corpus estabelece verdadeira relação processual. Há apenas a tutela da liberdade, de interesse coletivo, difuso e público, provocado por uma única parte.

Nesse passo, convém repisar: o Habeas Corpus é uma ação autônoma de impugnação com status de garantia constitucional [1] para a defesa da liberdade de locomoção (CF, artigo 5º, LXVIIII). Trata-se, portanto, de ação exclusivamente destinada à ampla e célere defesa da liberdade de locomoção, inserida em uma Constituição que, em termos penais e processuais penais, se sustenta em princípios liberais, dos quais se infere a liberdade como regra e sua privação como exceção.

Aliás, quanto à natureza defensiva e máxima amplitude do instrumento, destacamos que, considerada a dignidade atribuída ao direito fundamental à liberdade num Estado de Direito, é conferida a qualquer do povo a legitimidade para impetração do Habeas Corpus (CPP, artigo 654). E, não por outra razão, ao próprio Ministério Público.

No âmbito do Habeas Corpus, portanto, ausente o seu processamento em contraditório, porque, a rigor, se trata de parte única, há de ressaltar também a ausência da dialética da oposição, que nas ações comuns e nos recursos se estabelece entre partes. Há, no Habeas Corpus, apenas a iniciativa em defesa da liberdade de locomoção (impetração) em favor de determinado sujeito (paciente) diante de ato reputado abusivo ou ilegal em regra praticado por alguma autoridade pública (dita coatora), à qual caberá, se requisitadas, tão somente a apresentação de informações ao órgão jurisdicional ao qual compete a revisão de seu ato (CPP, artigo 662). Frise-se que a concessão da ordem dispensa essas informações em casos nos quais evidenciado de plano o abuso ou ilegalidade no constrangimento imposto à liberdade de locomoção de alguém.

Não obstante a natureza da ação e as limitações bem postas ao seu rito, certo é que os Ministérios Públicos estaduais vêm atuando como se partes fossem nos Habeas Corpus que tramitam no STJ [2], apresentando petições mal disfarçadas de pareceres e inclusive interpondo agravos regimentais, depois de improvidos idênticos recursos interpostos pelo Ministério Público Federal[3]  ao qual cabe atuar nesses procedimentos na condição de custos legis, jamais como parte (no que reportamos à conclusão que encerra a primeira parte do texto, no sentido de que o Ministério Público é sempre custos legis).

Chega-se, então, à real aporia deflagrada por essa ordem de compreensão: se a justificativa para a intervenção dos Ministérios Públicos dos estados nos Habeas Corpus é a tutela de seus interesses persecutórios já em curso, parece já previamente demarcada a sua posição, antes de sua manifestação. Nesse passo, melhor seria deixar o exercício custos legis em mãos daquele que tem assento efetivo na corte.

Isso sem falar no risco de certa patologia institucional, que resultaria da divergência entre os membros dos Ministérios Públicos dos estados e o Ministério Público Federal atuante no tribunal. No ritmo que andam as coisas, assiste-se a verdadeira esquizofrenia funcional, em prejuízo do compromisso de coerência e que se opera desvinculada das disciplinas legais e constitucionais, seja em relação ao processo penal e seus ritos, seja em relação à própria gênese institucional.

Mutatis mutandis, admitir a intervenção parcial dos Ministérios Públicos dos estados nos Habeas Corpus que tramitam perante os tribunais superiores equivaleria a admitir idêntica intervenção de promotores de Justiça naqueles que tramitam perante os tribunais estaduais [4]. Não se tem notícia de semelhante investida.

Do que se tem visto na prática, a dupla atuação ministerial termina por abrir espaço para a dupla acusação, que é o que invariavelmente ocorre, desnaturando a ação constitucional enquanto instrumento de defesa exclusiva da liberdade — contrariando não só a natureza do Habeas Corpus como o próprio sistema de proteção à liberdade em que se insere.

E, muito mais que isso, arrostando em definitivo a exigência de paridade de armas, cuja reversão, por hipótese, implicaria nova manifestação defensiva, em inevitável tumulto processual.

Eis, enfim, bom exemplo de que nem sempre a hermenêutica criativa supera a literalidade do texto constitucional.

 


[1] Já observável na Constituição de 1891.

[2] Dentre inúmeros outros: HC 560215/RS, HC 671220/RS, HC 634804/RS, HC 692638/RS, HC 596603/SP, HC 598051/SP e HC 693040/MG.

[3] Como exemplo, citam-se os HCs 703960/RS e 708736/RS.

[4] Imagine-se o promotor de justiça interpondo agravo regimental contra decisão monocrática de Tribunal de Justiça em relação à qual não se insurgiu o procurador de justiça com atribuições para atuar no caso.

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