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Lara e Novaes: Proteção de dados, a chancela constitucional

14 de fevereiro de 2022, 16h09

Por Sthefani Lara, Miguel Novaes

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Com o avanço tecnológico e em um cenário de massificação de coleta e tratamento de dados, o acesso aos dados pessoais se tornou um dos principais ativos do século 21, se tornando cada vez mais relevantes, inclusive, para tomada de decisões e avaliação de estratégias adotadas pelo mercado.

Diante desse cenário, acompanhamos o surgimento de diversas regulamentações com o objetivo de ampliar a proteção de dados pessoais e a privacidade dos indivíduos online.

As regulamentações surgiram diante dos inevitáveis questionamentos sobre qual a destinação dos dados pessoais fornecidos pelos cidadãos e, em especial, qual o nível de proteção assegurada aos dados armazenados.

No Brasil, as discussões relativas à proteção de dados se intensificaram com a publicação do Marco Civil da Internet, em 2014, e da Lei 13.709/2018, conhecida como a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).

Inspirada no Regulamento Geral de Proteção de Dados (GPDR), da União Europeia, a LGPD assume o importante papel de disciplinar o tratamento de dados pessoais, fixando regras mínimas sobre como instituições públicas e privadas coletam, armazenam e disponibilizam as informações fornecidas pelos usuários.

Por outro lado, a LGPD trouxe à tona relevante debate sobre a necessidade de se respeitar a liberdade dos cidadãos, permitindo que estes ativamente decidam sobre como suas informações pessoais serão utilizadas.

Quando falamos em proteção de dados, nós não temos um rol taxativo do que será protegido, visto que o rápido desenvolvimento tecnológico poderia, em um curto período, tornar as hipóteses hoje existentes obsoletas.

De toda forma, entende-se que quando falamos de dados pessoais estamos tratando de informações que identificam ou podem identificar um usuário e suas atividades, incluindo, por exemplo, nome, dados cadastrais, tipo sanguíneo, informações biométricas, atividades nas redes sociais, posts, histórico de compra e de pesquisa, entre outros dados que podem identificar um cidadão e a sua interação com o mundo digital.

É certo que se estamos a tratar de tema muito pouco imaginado na década de 80 pelos constituintes originários de nossa Carta Política, sendo que os direitos à proteção da intimidade e da vida privada tinham, à época, outros valores e significados. Coube, portanto, ao poder constituinte reformador constitucionalizar o direito à proteção de dados, ante a importância e sensibilidade e tais dados a todos os cidadãos. 

Assim, com o objetivo de reconhecer e chancelar a liberdade do cidadão no âmbito digital, o Congresso promulgou a Emenda Constitucional 115, que incluiu a proteção de dados pessoais entre os direitos e garantias fundamentais.

O texto tem origem na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 17/2019 e altera o artigo 5º, o artigo 21 e o artigo 22 da Constituição Federal para incluir a proteção de dados pessoais entre os direitos fundamentais do cidadão e fixar a competência da União para organizar e fiscalizar a proteção e o tratamento de dados pessoais, bem como para legislar sobre a matéria.

A positivação do direito à proteção de dados na Constituição Federal reforça o compromisso do país em colocar a proteção de dados pessoais de seus cidadãos como uma prioridade. Da mesma forma, sinaliza para a comunidade internacional que o Brasil aderiu aos padrões internacionais de adequação.

Vale destacar que, antes da promulgação da EC 115, o Supremo Tribunal Federal, no uso da hermenêutica constitucional, já entendia a discussão sobre proteção de dados como matéria de primeira importância.

Como relevante exemplo, cita-se a decisão liminar concedida pela ministra Rosa Weber nas ADIs nºs 6.387, 6.388, 6.389 e 6.390, que suspendeu a eficácia da Medida Provisória nº 954/2020, com o objetivo de impedir o compartilhamento indiscriminado de dados pessoais custodiados por empresas de telecomunicações com o poder público.

Em decisão inédita, a Corte Suprema reconheceu a proteção de dados como um direito fundamental, firmando o entendimento de que "o cenário de urgência decorrente da crise sanitária deflagrada pela pandemia global da Covid-19 e a necessidade de formulação de políticas públicas que demandam dados específicos para o desenho dos diversos quadros de enfrentamento não podem ser invocadas como pretextos para justificar investidas visando ao enfraquecimento de direitos e atropelo de garantias fundamentais consagradas na Constituição".

Ou seja, ainda antes da promulgação da EC 115, o STF já reconhecia que, diante da mudança de conjuntura sociocultural, o direito à proteção de dados assumiu relevância material e cultural suficiente para ser alçado ao âmbito constitucional.

Dessa maneira, superando-se o paradigma da resolução de situações que envolviam o tema da proteção de dados a partir do parâmetro hermenêutico constitucional baseado no direito à proteção da intimidade e da vida privada, a EC 115 dá autonomia e especialidade à matéria, instituindo nova cláusula pétrea no Direito brasileiro, tornando-a irrevogável e de aplicação imediata, nos termos do §1º do artigo 5º da Constituição da República. 

Logo, o que se alterou entre a decisão proferida pela STF e a promulgação da EC 115 foi a positivação expressa do Direito. Ou seja, deixou de ser protegido apenas pelo caráter constitucional básico e passou a ser conferida a chamada fundamentalidade formal, conforme expõe Alexy (199,p. 73) "(…) essencialmente direitos do homem transformados em direito positivo; estes direitos são elementos essenciais da ordem jurídica nacional respectiva, são direitos que determinada sociedade escolheu por bem inseri-los em seu direito positivo, sendo resguardados pela Constituição".

O reconhecimento formal de um direito não opera exclusivamente no âmbito jurídico, mas tem pretensões psicológicas, visto que representam uma escolha soberana do povo de quais valores são mais caros para a sociedade e, consequentemente, dignos de uma proteção normativa privilegiada [1] [2].

Ao elevar a proteção da dados como um direito formalmente previsto na Constituição Federal, atribui-se a ele inequívoca relevância no âmbito da sociedade brasileira, o que se confirma ao observarmos a centralidade que o acesso à meios digitais alcançou nacionalmente.

E mais, também o coloca como parâmetro de controle de constitucionalidade, a significar que toda e qualquer ação, seja ela legislativa ou administrativa, pública ou privada, que venha a violar o direito à proteção de dados configurará inconstitucional, podendo ser tornada nula de pleno direito.

A pandemia da Covid-19 causou uma revolução na forma como as pessoas interagem com os meios digitais ao redor do mundo [3]. Diante do isolamento social, as pessoas se viram obrigadas a aderir aos meios eletrônicos, de modo que setores como educação, saúde, Justiça, mercado financeiro e consumo foram empurrados para uma nova realidade digital.  

Assim, tratar sobre proteção de dados não é algo abstrato, mas é, de fato, lidar com informações que podem influenciar diretamente a vida da população, por exemplo, uma informação indevidamente processada, pode levar um cidadão a ser descartado de uma oferta de emprego, pode conceder acesso a contas bancárias de terceiros, pode implicar na manipulação de ofertas de consumo apresentadas para cada pessoa, entre diversos outros cenários.

Dessa forma, a chancela da proteção de dados como um direito fundamental vem assegurar que, diante de um acelerado e irreversível acesso ao mundo digital, a população brasileira não se veja obrigada a renunciar à proteção de seus dados pessoais e à sua privacidade para conseguir conviver em uma sociedade conectada ao mundo digital. 

 


[1] Do ponto de vista dogmático, as últimas décadas assistiram a um movimento decisivo, que foi o reconhecimento e a consolidação da força normativa da Constituição. No constitucionalismo europeu  e na maior parte do mundo, que vivia sob sua influência  prevalecia o entendimento de que as normas constitucionais não seriam propriamente normas jurídicas, que comportassem tutela judicial quando descumpridas, mas sim diretivas políticas endereçadas sobretudo ao legislador. A superação dessa perspectiva ganhou impulso no segundo pós-guerra, com a perda de prestígio do positivismo jurídico e da própria lei e com a ascensão dos princípios constitucionais concebidos como uma reserva de justiça na relação entre o poder político e os indivíduos, especialmente as minorias. (BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 108).

[2] "Eles [os direitos fundamentais] correspondem aos valores mais básicos e mais importantes, escolhidos pelo povo (poder constituinte), que seriam dignos de uma proteção normativa privilegiada" (MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2009, p. 237).