A prática de topless configura crime?
11 de fevereiro de 2022, 8h00
No último domingo de janeiro, duas mulheres foram detidas e encaminhadas a delegacia de polícia por estarem tomando sol sem a parte de cima do biquíni, com os seios desnudos, isto é, fazendo topless, prática não muito comum entre nós, mas bastante recorrente em praias do Mediterrâneo. Mas topless é crime? Neste artigo vamos discutir esse tema.
Ato obsceno
"Artigo 233 — Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público:
Pena — detenção, de três meses a um ano, ou multa".
A mera leitura do dispositivo já indica um problema: o que constitui ato obsceno? A lei não define. Segundo a doutrina, obsceno é o ato que fere o pudor, possui conotação sexual e viola os valores e a cultura da sociedade. Estamos evidentemente diante de um termo vago, impreciso, cuja definição, no caso concreto, depende de juízo de valor de quem o interpreta, da sociedade, da época, da evolução cultural.
Ocorre que o Direito Penal é regido, entre outros, pelo princípio da taxatividade, que exige que a lei seja clara e precisa, de forma que todos possam compreender seu conteúdo. O artigo 233 do CP é um tipo que não respeita a taxatividade, na medida em que contém conceito vago e impreciso. Trata-se de um tipo penal extremamente aberto, ou seja, incompleto, que demanda uma interpretação e um juízo de valor do aplicador da lei para definir seu alcance.
Além disso, causa espécie o fato de que a mesma conduta pode ou não ser entendida como típica a depender do juízo feito pelo intérprete e a depender da pessoa que pratica a conduta, ou melhor, a depender do gênero da pessoa que a pratica. Sim, a depender do gênero, ou já se teve conhecimento de algum homem que tenha sido conduzido a delegacia de polícia por estar apenas de sunga ou apenas de bermuda na praia, com a parte superior do corpo descoberta?
Ora, como uma conduta pode ser entendida como típica quando praticada por uma mulher e atípica quando praticada por um homem se o gênero não é elementar desse tipo? Como pode ser admitido que o juízo de valor do julgador, que por vezes é repleto de falsa moralidade, possa determinar que uma mulher em via pública com os seios desnudos configura crime e que um homem na mesma situação não pratica qualquer fato típico?
Fato é que, em razão da excessiva sexualização do corpo feminino, questões semelhantes são tratadas de maneira diferente quando falamos de homens e mulheres. Homens podem andar livremente sem camisa, seja na praia, piscina ou na via pública sem que seja incomodado. No momento em que uma mulher pretende adotar o mesmo comportamento, é duramente criticada e sua conduta tende a ser reprimida.
O tipo é, pois, inconstitucional! Vale registrar que o Supremo Tribunal Federal já se manifestou pela existência de questão constitucional e pela repercussão geral da matéria quando da análise do RE1093553/RS [1]. Até que haja declaração, pela Corte Suprema, da inconstitucionalidade de referido dispositivo, continuaremos com essa incerteza e com um tipo penal que fere o princípio da taxatividade.
A questão é de extrema importância na atuação dos delegados e das delegadas de polícia.
A autoridade policial não é uma figura autômata meramente ratificadora de conduções supostamente flagranciais. Carreira jurídica e de Estado que é, cabe a ela não propriamente o poder, mas, sim, o dever de atuar como intérprete da norma penal, de dizer o Direito em primeiro lugar no caso concreto. Se, ao analisar os fatos e formar seu convencimento jurídico, entender que o ato praticado não pode ser enquadrado como ato obsceno, cumpre à autoridade policial não autuar em flagrante a conduzida e determinar sua imediata soltura.
O juízo de valor do delegado e da delegada de polícia, nesse caso, não fica limitado ao conceito de ato obsceno, mas também inclui eventual entendimento pela inconstitucionalidade do dispositivo por ferir a taxatividade da lei penal. Aliás, sendo a autoridade policial a primeira garantidora dos direitos constitucionais, cabe a ela evitar que uma patente discriminação de gênero seja perpetuada ao se pretender criminalizar a conduta de uma mulher que resolve agir como um homem sempre agiu e que nunca foi por isso repreendido.
Precisamos rever a ideia de que somente a mulher virgem, pura e casta merece respeito e que qualquer exposição de seu corpo é um convite ao estupro ou um atentado ao pudor da sociedade.
[1] "RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 233 DO CP. PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL. QUESTÃO JURÍDICA QUE TRANSCENDE O INTERESSE SUBJETIVO DA CAUSA. MANIFESTAÇÃO PELA EXISTÊNCIA DE QUESTÃO CONSTITUCIONAL E PELA REPERCUSSÃO GERAL DA MATÉRIA.(STF — RE: 1093553 RS, relator: LUIZ FUX, Data de Julgamento: 29/03/2018, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 06/04/2018)".
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