Questão de Gênero

A prática de topless configura crime?

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11 de fevereiro de 2022, 8h00

No último domingo de janeiro, duas mulheres foram detidas e encaminhadas a delegacia de polícia por estarem tomando sol sem a parte de cima do biquíni, com os seios desnudos, isto é, fazendo topless, prática não muito comum entre nós, mas bastante recorrente em praias do Mediterrâneo. Mas topless é crime? Neste artigo vamos discutir esse tema.

Spacca
O topless não é conduta prevista especificamente em nenhum tipo penal, mas é recorrente que seja subsumido ao crime do artigo 233 do CP, o ato obsceno, que é inserido no capítulo dos crimes do ultraje público ao pudor. Tal tipo penal visa a proteger a moralidade coletiva. Foi criado (lá nos anos 1940…) com o intuito de evitar práticas que causem indignação, que sejam vexatórias para quem observa. O tipo é assim redigido:

Ato obsceno
"Artigo 233  Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público:
Pena  detenção, de três meses a um ano, ou multa".

A mera leitura do dispositivo já indica um problema: o que constitui ato obsceno? A lei não define. Segundo a doutrina, obsceno é o ato que fere o pudor, possui conotação sexual e viola os valores e a cultura da sociedade. Estamos evidentemente diante de um termo vago, impreciso, cuja definição, no caso concreto, depende de juízo de valor de quem o interpreta, da sociedade, da época, da evolução cultural.

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É importante aqui termos em mente que vivemos em uma sociedade ainda patriarcal, marcada pela desigualdade de gênero e que sexualiza e objetifica o corpo da mulher. Os seios femininos à mostra são problemáticos quando se prestam ao lazer dela (como no caso do topless) ou são desnudados como forma de protesto. Mamas que amamentam até recebem alguma reprovação social, mas seios expostos para a satisfação da lascívia masculina em circunstâncias como o Carnaval são plenamente aceitáveis, até mesmo fomentados pela indústria do entretenimento, demonstrando o quão cultural é o juízo de valor a ser adotado no caso da tipificação do artigo 233 do CP.

Ocorre que o Direito Penal é regido, entre outros, pelo princípio da taxatividade, que exige que a lei seja clara e precisa, de forma que todos possam compreender seu conteúdo. O artigo 233 do CP é um tipo que não respeita a taxatividade, na medida em que contém conceito vago e impreciso. Trata-se de um tipo penal extremamente aberto, ou seja, incompleto, que demanda uma interpretação e um juízo de valor do aplicador da lei para definir seu alcance.

Além disso, causa espécie o fato de que a mesma conduta pode ou não ser entendida como típica a depender do juízo feito pelo intérprete e a depender da pessoa que pratica a conduta, ou melhor, a depender do gênero da pessoa que a pratica. Sim, a depender do gênero, ou já se teve conhecimento de algum homem que tenha sido conduzido a delegacia de polícia por estar apenas de sunga ou apenas de bermuda na praia, com a parte superior do corpo descoberta?

Ora, como uma conduta pode ser entendida como típica quando praticada por uma mulher e atípica quando praticada por um homem se o gênero não é elementar desse tipo? Como pode ser admitido que o juízo de valor do julgador, que por vezes é repleto de falsa moralidade, possa determinar que uma mulher em via pública com os seios desnudos configura crime e que um homem na mesma situação não pratica qualquer fato típico?

Fato é que, em razão da excessiva sexualização do corpo feminino, questões semelhantes são tratadas de maneira diferente quando falamos de homens e mulheres. Homens podem andar livremente sem camisa, seja na praia, piscina ou na via pública sem que seja incomodado. No momento em que uma mulher pretende adotar o mesmo comportamento, é duramente criticada e sua conduta tende a ser reprimida.

O tipo é, pois, inconstitucional! Vale registrar que o Supremo Tribunal Federal já se manifestou pela existência de questão constitucional e pela repercussão geral da matéria quando da análise do RE1093553/RS [1]. Até que haja declaração, pela Corte Suprema, da inconstitucionalidade de referido dispositivo, continuaremos com essa incerteza e com um tipo penal que fere o princípio da taxatividade.

A questão é de extrema importância na atuação dos delegados e das delegadas de polícia.

A autoridade policial não é uma figura autômata meramente ratificadora de conduções supostamente flagranciais. Carreira jurídica e de Estado que é, cabe a ela não propriamente o poder, mas, sim, o dever de atuar como intérprete da norma penal, de dizer o Direito em primeiro lugar no caso concreto. Se, ao analisar os fatos e formar seu convencimento jurídico, entender que o ato praticado não pode ser enquadrado como ato obsceno, cumpre à autoridade policial não autuar em flagrante a conduzida e determinar sua imediata soltura.

O juízo de valor do delegado e da delegada de polícia, nesse caso, não fica limitado ao conceito de ato obsceno, mas também inclui eventual entendimento pela inconstitucionalidade do dispositivo por ferir a taxatividade da lei penal. Aliás, sendo a autoridade policial a primeira garantidora dos direitos constitucionais, cabe a ela evitar que uma patente discriminação de gênero seja perpetuada ao se pretender criminalizar a conduta de uma mulher que resolve agir como um homem sempre agiu e que nunca foi por isso repreendido.

Precisamos rever a ideia de que somente a mulher virgem, pura e casta merece respeito e que qualquer exposição de seu corpo é um convite ao estupro ou um atentado ao pudor da sociedade.

 


[1] "RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 233 DO CP. PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL. QUESTÃO JURÍDICA QUE TRANSCENDE O INTERESSE SUBJETIVO DA CAUSA. MANIFESTAÇÃO PELA EXISTÊNCIA DE QUESTÃO CONSTITUCIONAL E PELA REPERCUSSÃO GERAL DA MATÉRIA.(STF — RE: 1093553 RS, relator: LUIZ FUX, Data de Julgamento: 29/03/2018, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 06/04/2018)".

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