Opinião

Sobre a intervenção nos municípios localizados em território federal

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  • é doutorando em Direito Público na Universidade de Coimbra (Portugal) mestre em Direito Constitucional pela Universidad de Castilla-La Mancha (Espanha) e membro da International Association of Constitutional Law (IACL) e do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC).

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11 de fevereiro de 2022, 12h06

A Carta Magna em vigor erigiu várias novidades no Direito Constitucional brasileiro, uma das quais refere-se ao instituto da intervenção. Isso porque o artigo 35 da Constituição Federal contém dispositivo que prevê a intervenção da União em município, desde que a municipalidade esteja localizada em território federal. Atualmente, essa previsão resta inaplicável, haja vista a inexistência de território federal com a promulgação da Constituição de 1988, que transformou os territórios federais de Roraima e do Amapá em estados-membros, ao passo que foi extinto o território federal de Fernando de Noronha, cuja área foi reincorporada ao estado de Pernambuco (artigos 14 e 15, ADCT). Todavia, permanece a importância do estudo em razão da possibilidade de criação de novos territórios federais, nos termos do artigo 18, §2º, da Constituição da República.

De fato, a intervenção da União em município situado em território federal é uma exceção, haja vista ser pacífico na doutrina e no texto constitucional que a União intervém somente nos estados-membros, e estes nos seus municípios. Consoante a tradição do federalismo, a União não intervém nos municípios, pois estes “organismos não contactam diretamente com a União. O poder de intervenção sobre os municípios pertence aos estados” [1].

Naturalmente, a intervenção se dá numa relação direta entre dois entes que se conectam de forma imediata, isto é, sem ultrapassar a esfera de outra unidade que intermedeia os entes federados. No caso dos municípios, estes se ligam diretamente aos estados-membros, pois aqueles integram o território destes. Assim, a União somente pode intervir nos estados-membros ou no DF, ressalvada a hipótese de município localizado em território federal, vez que esse município integra unidade territorial da União, jungindo-lhe.

Com efeito, a intervenção federal em município localizado em território federal constitui uma intervenção anômala, porquanto afasta a regra geral de um ente federado intervir diretamente em outra unidade em decorrência do grau de divisão política e localização geográfica, isto é, do maior para o menor nível de integração geopolítico: da União para os estados-membros e destes para os municípios. Essa hipótese incomum se justifica pelo fato de que ocorre tão só nos municípios localizados em território federal, ou seja, em municípios integrantes de área sob o domínio geográfico e político da União. A medida afigura-se adequada, até porque o aludido município não se vincula a estado-membro, mas somente conecta-se à União, cabendo a esta promover o ato interventivo.

As causas deflagradoras de intervenção ocorrem quando deixar de ser paga, sem motivo de força maior, por dois anos consecutivos, a dívida fundada; não forem prestadas contas devidas, na forma da lei; não tiver sido aplicado o mínimo exigido da receita municipal na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde; e, por fim, quando o Tribunal de Justiça der provimento a representação para assegurar a observância de princípios indicados na Constituição, ou para prover a execução de lei, de ordem ou de decisão judicial (artigo 35, I, II, III, e IV da CF de 1988). Como se vê, as hipóteses interventivas são as mesmas que autorizam a intervenção estadual nos municípios, de modo que, nesse caso, a União federal assume o papel de estado-membro, substituindo-o.

A respeito desse tema, é pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal [2]: “Impossibilidade de decretação de intervenção federal em município localizado em estado-membro  Os municípios situados no âmbito dos estados-membros não se expõem à possibilidade constitucional de sofrerem intervenção decretada pela União federal, eis que, relativamente a esses entes municipais, a única pessoa política ativamente legitimada a neles intervir é o estado-membro. Magistério da doutrina. Por isso mesmo, no sistema constitucional brasileiro, falece legitimidade ativa à União federal para intervir em quaisquer municípios, ressalvados, unicamente, os municípios ‘localizados em território federal…’ (CF, art. 35, caput)” (STF IF 590 — Tribunal Pleno.  QO/CE — relator ministro Celso de Mello. Julgamento: 17/9/1998. Publicação: 9/10/1998).

Intervenção municipal-territorial
Denomina-se intervenção municipal-territorial a modalidade interventiva decretada pela União em município localizado em território federal quando a referida municipalidade: 1) deixar de pagar, sem motivo de força maior, por dois anos consecutivos, a dívida fundada; 2) não forem prestadas contas devidas, na forma da lei; 3) não tiver sido aplicado o mínimo exigido da receita municipal na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde; 4) o Tribunal de Justiça der provimento a representação para assegurar a observância de princípios indicados na Constituição, ou para prover a execução de lei, de ordem ou de decisão judicial (artigo 35, parte final, CF/1988). Essa modalidade é genérica, pois abarca as quatro hipóteses constitucionais de interferência da União nas municipalidades situadas em território federal (artigo 35, incisos I, II, III e IV, CF/1988).

Com efeito, a Constituição de 1988 não disciplina expressamente os pressupostos formais da intervenção federal nos municípios localizados em território federal. Em que pese a ausência de disciplinamento procedimental dessa intervenção anômala, aplica-se à União o mesmo regramento da intervenção estadual nos municípios, com as necessárias adaptações. Por conseguinte, caberá ao presidente da República expedir o decreto interventivo com base nas restritas hipóteses constantes do artigo 35, I, II, III e IV, da CF/1988.

Após o presidente da República decretar a intervenção federal em município situado em território federal, caberá ao Congresso Nacional apreciar a medida quando: 1) deixar de ser paga, sem motivo de força maior, por dois anos consecutivos, a dívida fundada; 2) não forem prestadas contas devidas, na forma da lei; e 3) não tiver sido aplicado o mínimo exigido da receita municipal na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde (artigo 35, I, II e III, c/c artigo 36, §1º, da CF de 1988). Assente-se que, quando a intervenção se basear em provimento do Tribunal de Justiça para assegurar a observância de princípios indicados na Constituição ou para prover a execução de lei, de ordem ou de decisão judicial, não haverá avaliação política da medida pelo Poder Legislativo, porquanto a Constituição dispensou a apreciação pelo Congresso Nacional (artigo 35, IV, c/c artigo 36, §3º, CF de 1988).

Representação interventiva municipal-territorial
No que alude ao Poder Judiciário competente, é escassa a doutrina que trata sobre o tema. Sem embargo, essa corrente entende que compete ao Tribunal de Justiça do Distrito Dederal e Territórios julgar a representação interventiva em face de município localizado em território federal, exsurgindo a figura da representação interventiva municipal-territorial. Tal hipótese consiste na modalidade de intervenção decretada pela União em município localizado em território federal com a finalidade específica de assegurar a observância de princípios indicados na Constituição ou para prover a execução de lei, de ordem ou de decisão judicial (artigo 35, IV, CF/1988). O processamento se dá por meio de representação do procurador-geral de Justiça do DF perante o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Como efeito, essa modalidade interventiva é peculiar, pois abarca somente uma hipótese constitucional de interferência da União nas municipalidades situadas em território federal, consistente no inciso IV do artigo 35 da CF/1988.

Impende salientar que a Constituição da República não atribuiu ao STF julgar esse feito, pois lhe incumbe apreciar a intervenção quando se tratar de representação na hipótese do artigo 34, VII (para assegurar os princípios constitucionais sensíveis), e no caso de recusa à execução de lei federal, ambas as hipóteses apenas em face dos estados-membros ou do DF, nos termos do artigo 36, III, da CF/1988. Além disso, a competência do STF submete-se ao regime de direito estrito, isto é, o conjunto de atribuições não pode ser estendido por normas infraconstitucionais ou intepretações ampliativas fora do rol taxativo constante na Constituição federal de 1988 (STF, Pet. nº 1.738 AgR, relator ministro Celso de Mello, j. 1/9/1999). Outrossim, a Constituição da República é expressa ao prever que a União não intervirá nos municípios localizados em território federal, exceto quando: “O Tribunal de Justiça der provimento a representação para assegurar a observância de princípios indicados na Constituição Estadual, ou para prover a execução de lei, de ordem ou de decisão judicial” (artigo 35, IV, CF/1988). Consectariamente, incumbe ao Tribunal de Justiça, no caso o do Distrito Federal e Territórios (TJ-DFT), processar a intervenção contra município situado em território federal.

Registre-se também que intervenção da União em município localizado em território federal implica a atuação de ente federal em território federal, aplicando-se, por conseguinte, as disposições relativas à “intervenção federal nos territórios”, já que a municipalidade está situada em território federal, atingindo-o. Assim, em que pese a competência jurisdicional de tal instituto não constar expressamente na Constituição da República, é previsto na legislação infraconstitucional, a exemplo do artigo 8º, inciso XIV, da Lei nº 11.697 de 2008, que dispõe sobre a organização judiciária do Distrito Federal e dos territórios, conforme mandamento constitucional constante no artigo 21, XIII, da CF de 1988:

Constituição Federal de 1988
“Artigo 21  Compete à União:
(…)

XIII  organizar e manter o Poder Judiciário, o Ministério Público do Distrito federal e dos territórios e a Defensoria Pública dos territórios”.

Lei nº 11.697 de 2008
“Artigo 2º — Compõem a Justiça do Distrito federal e dos territórios:
I
o Tribunal de Justiça;
(…)
Artigo 8º 
Compete ao Tribunal de Justiça:
XIV — promover o pedido de Intervenção federal no Distrito federal ou nos territórios, de ofício ou mediante provocação”.

Assim, a ação deve ser proposta pelo procurador-geral de Justiça do DF, chefe do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, com o escopo de assegurar a observância dos princípios constitucionais sensíveis indicados na Constituição ou para prover a execução de lei, ordem ou decisão judicial, de modo a garantir que o referido município respeite os valores e normas do estado brasileiro. Relativamente ao processamento da ação, compete ao presidente do Tribunal do TJ-DFT, ao receber o pedido de intervenção federal: 1) mandar arquivá-lo se for manifestamente infundado, decisão contra a qual caberá agravo regimental; 2) adotar as providências oficiais que lhe parecerem adequadas para remover, administrativamente, a causa do pedido. Se esse objetivo não for alcançado, distribuirá os autos a um desembargador relator, prosseguindo-se nos demais termos da Lei 8.038/90 (artigo 8º, XIV, da Lei nº 11.697 de 2008, c/c artigo 158 da LC nº 75/1993 e artigo 223, RITJDFT).

Nessa esteira, por se tratar de intervenção promovida por órgão federal, a União será a pessoa jurídica responsável por eventuais reparações cíveis decorrentes da intervenção em município situado em território federal, cabendo ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios processar e julgar as referidas ações, por se tratar de um órgão da União [3] (artigo 21, XIII, CF/1988).

 


[1] RIBEIRO, Fávila. A Intervenção federal nos estados. Fortaleza: Editora Jurídica, 1960, p.  50.

[2] STF. Supremo Tribunal federal. Tribunal Pleno. IF 590 QO / CE — Ceará. Relator ministro Celso de Mello. Julgamento: 17/09/1998. Publicação: 09/10/1998. Acesso em 9-12-2020. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur110510/false.

[3] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 33ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 652.

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