Opinião

A caça às absolvições pelo quesito genérico no Tribunal do Júri

Autores

  • Ana Raisa Cambraia

    é defensora pública do Estado do Ceará ex-integrante do Grupo de Atuação da Estratégica da Defensoria Pública (Gaets) com atuação perante os Tribunais Superiores e mestranda em Direito e Públicas Políticas.

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  • Flávio Wandeck

    é defensor público do Estado de Minas Gerais lotado no Núcleo de Tribunais Superiores da DPMG em Brasília e mestre em Direitos Humanos pela Northwestern University (EUA).

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9 de fevereiro de 2022, 7h11

Desde a reforma do Código de Processo Penal promovida pela Lei nº 11.689, de 2008, o terceiro quesito no Tribunal do Júri ("o jurado absolve o acusado?") tornou-se genérico, de modo que a absolvição dele decorrente não mais se vincula a uma razão específica, como anteriormente ocorria.

Nada obstante, reiteradas vezes a acusação permanece se valendo da previsão contida no artigo 593, III, "d", do Código de Processo Penal para recorrer de absolvições proferidas pelo Conselho de Sentença com base nesse quesito, alegando ser o julgamento absolutório manifestamente contrário à prova dos autos.

Essa incongruência chegou ao Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a repercussão geral da matéria e irá julgar o Tema 1.087, assim delimitado: "Possibilidade de Tribunal de 2º grau, diante da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri, determinar a realização de novo júri em julgamento de recurso interposto contra absolvição assentada no quesito genérico, ante suposta contrariedade à prova dos autos".

Após algumas decisões recentes em ambas as turmas do Supremo Tribunal Federal acolhendo a tese da impossibilidade de recurso contra a decisão absolutória proferida com base no quesito genérico (vide HC 178.777, HC 200.520 e HC 208.091, entre outros), verificou-se uma crescente argumentação, especialmente por parte de membros do Ministério Público, no sentido de que os Tribunais Justiça somente cassariam absolvições absolutamente infundadas [1] do conselho de sentença, tais como aquelas em que a defesa alega teses absurdas ou não mais aceitas pela jurisprudência, como, por exemplo, a malfadada legítima defesa da honra, e que a impossibilidade de cassação dessas decisões representaria um enorme impacto no sistema de Justiça, que se veria impossibilitado de rever o mérito dessas decisões.

Essas alegações, contudo, nunca vieram acompanhadas de qualquer estudo ou demonstrativo que as comprovasse, tratando-se somente de uma argumentação retórica baseada nas concepções daquele que a alega ou no máximo na própria experiência prática do operador do Direito responsável por sustentá-la.

Diante da inexistência de dados concretos sobre a revisão de sentenças dos Tribunais do Júri pelos tribunais de segundo grau, o Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias Públicas Estaduais e Distrital nos Tribunais Superiores (Gaets) decidiu empreender uma pesquisa nacional visando a aclarar com dados estatísticos a quantidade de casos e os fundamentos que têm levado tribunais de segundo grau a cassar decisões absolutórias do conselho de sentença com base no quesito absolutório genérico.

Para tanto, delimitou-se um período determinado de tempo, no caso 12 meses, suficiente para uma amostragem significativa de decisões, em ano recente (2019) e pré-pandemia, de forma a se evitar qualquer alegação de distorção nos resultados, seja pelo decorrer do tempo em que proferidas as decisões, seja por quaisquer eventuais efeitos da pandemia sobre o funcionamento dos tribunais. Por fim, estabeleceu-se uma metodologia para pesquisa junto aos sistemas informatizados de jurisprudência dos Tribunais de Justiça.

Foram analisadas mais de 55 mil decisões nos 27 Tribunais de Justiça do país, relativas aos julgamentos neles ocorridos durante todo o ano de 2019. Com os critérios estabelecidos, foram encontrados 248 julgados que cassaram decisões absolutórias do Tribunal do Júri lastreadas no quesito genérico (artigo 483, III, do CPP), por considerá-las manifestamente contrárias à prova dos autos (artigo 593, III, "d", do CPP).

Considerando a vasta quantidade de plenários do júri que ocorrem anualmente no país [2], o resultado encontrado consiste em uma quantidade de cassações de baixíssimo impacto. Assim sendo, a primeira conclusão que podemos obter da pesquisa é que, caso o Tema 1.087 venha a ser fixado pela impossibilidade de tribunal de segundo grau, diante da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri, determinar a realização de novo júri em julgamento de recurso interposto contra absolvição assentada no quesito genérico, em razão de suposta contrariedade à prova dos autos; o sistema de Justiça brasileiro não sofrerá qualquer abalo significativo ou reviravolta, nem haverá transtornos na segurança jurídica dos júris realizados pelo país.

Considerada a média de julgamentos realizados anualmente no país, as 248 decisões cassadas representam menos de 4% dos plenários anualmente realizados.

No que se refere ao aspecto qualitativo, diferentemente do que sustentado por muito operadores do Direito, especialmente aqueles ligados à acusação, os resultados demonstram que uma parte significativa das decisões absolutórias genéricas do conselho de sentença ocorrem em processos cuja tese sustentada pela defesa em suas alegações foi absolutamente legal e amparada na legislação, tal como a legítima defesa, as descriminantes putativas, a inexigibilidade de conduta diversa, a coação irresistível e a inimputabilidade.

Como exemplo, destacamos que 76 das 248 absolvições revertidas tiveram como tese trazida pela defesa a legítima defesa prevista no artigo 23, II do Código Penal, o que representa quase um terço de todas as decisões revertidas.

Tida como um dos principais motivos para não se admitir a impossibilidade de recurso contra a decisão absolutória proferida com base no quesito genérico, a deplorável legítima defesa da honra apareceu em somente um único caso dentre as 248 anulações encontradas, resultado que não corresponde sequer a 1% das decisões absolutórias cassadas (mas a apenas 0,4%).

Nesse sentido, cabe destacar que no ano de 2019, período da pesquisa realizada, o Supremo Tribunal Federal ainda não havia decidido pela inconstitucionalidade da tese da legítima defesa da honra, o que se deu somente em 2021, por intermédio da ADPF 779. Desse modo, eventuais absolvições proferidas pelo conselho de sentença cujo fundamento de defesa tivesse sido a referida tese somente poderiam ser eventualmente anuladas à época com base no recurso previsto no artigo 593, III, "d", do CPP.

Mesmo assim, conforme demonstrado na pesquisa, somente um único caso entre 248 decisões de cassação adveio da referida tese, a qual, após a decisão na ADPF 779, não mais ensejará eventual cassação por contrariedade à prova dos autos, mas, sim, anulação na forma do artigo 593, III, "a", do CPP.

Portanto, a segunda conclusão a que chegamos é que a possibilidade de o Ministério Público buscar a cassação de absolvições proferidas no quesito absolutório genérico com base no artigo 593, III, "d", do CPP não está na verdade salvaguardando a inocorrência de teses ilegítimas (ou até mesmo ilegais, como decidido em relação à legitima defesa da honra), mas, sim, servindo de instrumento para que decisões soberanas do conselho de sentença sejam cassadas, decisões estas cujos fundamentos apresentados pela defesa são, em sua grande maioria, juridicamente válidos e admissíveis.

No terceiro achado, identificou-se que são de elevada incidência teses que sequer podem ser confrontadas com as provas dos autos em caso de absolvição no quesito genérico: a clemência (sete decisões) e teses defensivas que não levam à absolvição no quesito genérico (como negativa de autoria e desclassificação, por exemplo). Nessas hipóteses, os jurados podem ter tomado qualquer aspecto como embasamento, que não os próprios autos.

Nesse sentido, reafirma-se que a decisão dos jurados no quesito genérico é desprendida da prova dos autos e das teses defensivas. O jurado pode, por exemplo, proferir uma decisão empática, pode se convencer intimamente por motivos extra ou metajurídicos, por fundamentos supralegais, por aspectos extraprocessuais, por razões de clemência ou de equidade, por questões humanitárias, entre várias outras que a convicção humana possa alcançar.

A decisão absolutória genérica pode decorrer, inclusive, do perdão social pelo fato praticado [3]. Além disso, diante da liberdade no decidir do conselho de sentença, nada impede que cada um dos sete jurados profira seu voto por uma razão diferente. Assim, o julgamento final é uma aglutinação de fatores diversos que conduzem ao resultado absolutório genérico [4].

Integra a razão de existir do júri o fato de que a vontade popular tenha a possibilidade de se expressar através do sentimento pessoal do jurado sobre a justiça ou injustiça da suposta conduta do acusado [5]. Em um simples "sim" ao questionamento genérico, efetiva-se o sistema da íntima convicção e os princípios constitucionais da plenitude de defesa, da soberania dos vereditos e do sigilo da votação.

Esse poder decisório do jurado toca na essência do Tribunal do Júri e concretiza a sua legitimidade democrática ao possibilitar que o juiz leigo, integrante da sociedade, impeça a incidência da força punitiva do Estado com base em um soberano, livre e íntimo convencimento, albergado pelo sigilo constitucional. Reafirma-se, assim, o princípio da soberania popular [6], previsto no artigo 1º, parágrafo único, da Constituição Federal, eis que no conselho de sentença habita o povo soberano, que exerce diretamente o poder jurisdicional.

Dessa feita, a terceira conclusão reforça o entendimento de que a apelação contra absolvição no quesito genérico por contrariedade à prova dos autos é incompatível com a soberania dos veredictos e com o sistema da íntima convicção dos jurados, elementos norteadores do Tribunal do Júri.

Ao nosso sentir, portanto, os resultados apresentados demonstram que, para além de concretizar o respeito ao princípio constitucional da soberania dos veredictos, a vedação ao recurso ministerial contra a decisão absolutória do conselho de sentença com base no quesito genérico (artigo 483, III do CPP) pouco ou nada impactará na prática o sistema de justiça, dada a pequena quantidade de decisões absolutórias cassadas pelos Tribunais de Justiça relativamente ao número de plenários do Tribunal do Júri anualmente realizados no país, bem como pela ínfima, para não dizer praticamente inexistente, quantidade de decisões absolutórias cassadas por fundamentos inválidos ou não mais aceitos pela jurisprudência, tal como a legítima defesa da honra.

Esperamos, assim, que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Tema 1.087 da repercussão geral, sensível não somente aos argumentos teóricos que envolvem a matéria, bem como ciente das repercussões práticas dela advindas, ora delineadas na pequisa que apresentamos, mantenha sua jurisprudência dominante no sentido da impossibilidade de recurso da acusação contra a decisão absolutória do conselho de sentença proferida com base no quesito genérico (artigo 483, III do CPP).

 


[1] Por todos, vide COSTA, Diego Erthal Alves da. A Clemencia no Tribunal do Júri no Brasil. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro nº 71, jan./mar. 2019, disponível em https://www.mprj.mp.br/documents/20184/1287128/Diogo_Erthal_Alves_da_Costa.pdf, consulta em 02.01.2022.

[2] De acordo com o Diagnóstico das Ações Penais de Competência do Tribunal do Júri 2019, do CNJ, entre os anos de 2015 e 2018, foram realizadas no país cerca de 28.984 sessões de júri. A média nacional anual, portanto, foi de 7.246 julgamentos em plenário do júri. (BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Diagnóstico das Ações Penais de Competência do Tribunal do Júri, Brasília: CNJ, 2019, p. 8).

Ademais, apenas em novembro do ano de 2019, foram realizados 3.775 julgamentos de crimes dolosos contra a vida. (BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Relatório Estatístico: Mês Nacional do Júri 2019, Brasília: CNJ, 2019, p. 8).

[3] EL TASSE, Adel; GOMES, Luiz Flávio. Processo penal IV: júri. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 161.

[4] JARDIM, Eliete Costa Silva. Tribunal do júri. Absolvição fundada no quesito genérico: ausência de vinculação à prova dos autos e irrecorribilidade. Revista EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, nº 67, jan.-fev. 2015, p. 23. Disponível em: <https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista67/revista67_13.pdf>. Acesso em: 8 ago. 2020.

[5] PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2020, p. 914.

[6] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 126.

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