Opinião

A prisão, o Estado e o sistema de produção

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3 de fevereiro de 2022, 9h12

Marx abria o "A Ideologia Alemã" dando-nos o pressuposto mais elementar para a análise da realidade concreta material: "As ideias dominantes são as ideias da classe dominante". Da segunda metade do século 19 para cá, a crítica permanece atual.

Em termos políticos, a influência do sistema de produção capitalista também determina o curso do Estado burguês, que representa uma expressão essencial das relações de produção específicas do capitalismo. O Estado que fundamenta a sua realidade material pelo sistema de produção capitalista é um Estado que atende aos interesses da classe dominante. O poder político desse estado atua diretamente na manutenção das relações de opressão de uma classe para a outra.

O direito do Estado burguês assume papel decisivo na dinâmica da exploração, pois é o responsável por atribuir legitimidade, ainda que meramente jurídica, às relações de classe, imanetinzando essas relações na medida em que reproduz os valores e interesses da classe dominante.

Alessandro Baratta afirma que o Direito Penal produzido nessas condições tende a dirigir o processo de criminalização principalmente para as formas de desvio típicas das classes subalternas. O Direito Penal de uma sociedade capitalista é sempre fragmentário, nunca igualitário, pois tende a privilegiar os interesses da classe dominante excluindo-a dos processos de criminalização, direcionando a sua seletividade para a parcela da sociedade que é mais materialmente vulnerável, visando a estabelecer, assim, controle.

Ainda no século 19, Lacassagne afirmou que "cada sociedade tem o criminoso que merece".  Hoje, Howard Becker afirma, ao colocar em crise o paradigma etiológico, que "cada sociedade tem o criminoso que quer". A evolução histórica da criminologia comprova que o critério determinante à lógica de atribuição do status de criminoso não é fruto do atavismo, nem do desvio social; é, em verdade, fruto do interesse de classe.

Surge, sob esse paradigma, a criminologia crítica, cujo principal objetivo é desconstruir os pilares sob os quais a lógica da criminalização dominante se assenta. Fornecendo critérios materiais para a análise macrossociológica da realidade, a criminologia crítica se propõe a demonstrar como o programa oficial do Direito Penal é falso e encobre a sua função real e oculta, que é a de reproduzir as desigualdades sociais e manter de forma eficiente o status quo social.

Em toda a história do Direito Penal, a prisão nunca conseguiu cumprir as finalidades de reeducação do apenado. O fracasso do Direito Penal histórico, tanto no plano normativo quanto no plano dogmático, nos leva a questionar qual seria, de fato, o seu objetivo.

Visando a apresentar uma resposta satisfatória para a pergunta, Rusche e Kirchheimer elaboraram um estudo sob a perspectiva marxista sobre o vínculo existente entre o mercado de trabalho, o sistema produtivo e a prisão tal como conhecemos atualmente. A conclusão do estudo demonstra que a prisão como pena surgiu no sistema capitalista para suprir as necessidades de mercado.

Conta a professora Ryanna Pala Veras que a compreensão do fenômeno prisional só é possível se considerarmos o binômio capital/trabalho assalariado. O gigantesco número de camponeses que migraram para as cidades durante a revolução industrial, junto à não absorção de toda essa mão de obra, fizeram surgir uma massa de mendigos e "vadios", que ficaram à mercê das próprias necessidades e vulnerabilidades artificialmente criadas.

A prisão se torna uma instituição auxiliar à fábrica, assim como a família, a escola, a igreja e os quartéis. O papel da prisão, assim como das instituições em geral, era o preparo e o adestramento humano para o trabalho, que em regra era fornecido em condições sub-humanas.

A prisão tornou-se um instrumento de vigilância e controle, socialmente útil e servil para a dinâmica do capital, de modo que a fábrica era a estrutura de produção; o cárcere a estrutura de controle: enquanto o indivíduo está na fábrica, é vigiado pelo empregador; fora da fábrica, é vigiado pelas instituições de controle: família, igreja, escola e, principalmente, prisão.

Assim, afirma Foucault que se tal é a situação da prisão, ao aparentemente "fracassar", não erra o seu objetivo; ao contrário, ela atinge na medida em que exclui do plano social a classe indesejada para o capital, direcionando-a para as prisões, que passam a exercer a função de depósito de corpos humanos indesejados para o sistema de produção.

O sistema de vigilância e controle exercido pelo Estado burguês, pela fábrica e pela prisão visa a exercer controle especificamente sobre as classes inferiores, marginalizadas socialmente.  O cárcere assume, assim, a função de tornar dócil e obediente aquela parcela marginalizada, atribuindo-lhe utilidade de mercado, para poder transformá-lo em mercadoria socialmente apta a atender os interesses de classe.

Lola Aniyar afirma que a grande miséria da criminologia é ter sido sempre a criminologia da miséria. O fracasso do Direito Penal é o máximo sucesso da dinâmica do capital — e isso é mais do que suficiente para compreendermos a frase do Radbruch: "Não queremos um Direito Penal melhor, queremos algo melhor que o Direito Penal".

 

Referências bibliográficas
MARX, Karl. A Ideologia Alemã;

VERAS, Ryanna Pala. Nova Criminologia e os Crimes do Colarinho Branco;

BARATTA, Alessandro. Criminologia Critica e Critica do Direito Penal: Introdução à Sociologia do Direito Penal;

RUSCHE, Georg. KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social;

FOUCAULT, Michael. Microfísica do Poder;

RADBRUCH, Gustav. Historia de la Criminalidad. Ensayo de una Criminología Histórica.

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