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Pode-se muito, mas não se pode tudo: transação não é parcelamento

25 de dezembro de 2022, 8h00

Por Esdras Boccato

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Demorou. Demorou muito. Demorou tanto que poucos acreditavam que um dia veriam a transação instituída pelo governo federal. A transação tributária no âmbito da União foi regulamentada pela Medida Provisória nº 899/2019, posteriormente convertida na Lei nº 13.988/2020, e após mais de 50 anos de vigência do artigo 171, Código Tributário Nacional (CTN) trouxe consigo a oxigenação necessária para superação do histórico estado de conflito entre devedores e a Fazenda Nacional.

A permissão para equacionamento do passivo fiscal mediante acordo de vontade entre as partes envolvidas inovou, e muito, as alternativas que quase sempre se apresentaram como fatalistas a quem se visse na contingência da via crucies de uma execução fiscal. Com a inserção da negociabilidade entre a Fazenda Pública Federal e os devedores, o que antes ficava restrito às lógicas do pague em cinco dias sob pena de penhora de bens (artigo 8º, LEF) e do localize o devedor e seus bens em até cinco anos, sob pena de ver extinto o crédito (artigo 40, § 4º, LEF) ganhou a companhia do sentemos à mesa para negociar uma solução adequada a ambos, um tanto inusitada na relação contribuinte–Fisco.

Objetivando atender ao princípio da eficiência administrativa (artigo 37, caput, CF/88), inicialmente a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional editou a Portaria PGFN nº 9.917/2020 — posteriormente revogada pela Portaria PGFN nº 6.757/2022, em vigor até o momento — norteando-se, ao mesmo tempo, por viabilizar a transação tributária ao maior número de devedores interessados a se valer de seus possíveis estímulos ao encerramento do conflito e pagamento, bem como por alocar racionalmente os recursos humanos disponíveis às negociações pretensamente mais complexas e sensíveis ao Tesouro Nacional.

Por conta desta opção de gestão, a regulamentação da transação foi estruturada sob o alicerce de dois modelos distintos de pactuação: (i) o por adesão a uma proposta com parâmetros pré-definidos pela Fazenda Nacional, enquanto credora, e (ii) o por negociação propriamente dita, seja por iniciativa fazendária ou dos devedores com passivo fiscal superior a R$ 15 milhões (artigo 4º, § 1º, Portaria PGFN nº 9.917/2020) — atualmente diminuído para R$ 10 milhões (artigo 46, inciso I, Portaria PGFN nº 6.757/2022). Nessa iniciativa embrionária, reservou-se aos grandes devedores, e somente a eles, a possibilidade de realização de tratativas individualizadas para que se alcance o acordo necessário à celebração da transação; aos demais devedores foi estabelecida a presunção do consenso mediante adesão aos termos do edital com os parâmetros aos quais a Fazenda Nacional está vinculada caso venha a existir o aceite do contribuinte.

Como era de esperar, desde então, muitos devedores têm procurado os canais de acesso da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) no intuito de resolver suas pendências através da celebração de alguma das modalidades de transação tributária disponíveis. Vários deles têm obtido sucesso, seja porque cumprem os requisitos previamente parametrizados pela PGFN para a pactuação da transação por adesão, seja porque demonstraram a imprescindibilidade dos estímulos positivos ao pagamento para o potencial equacionamento do seu passivo fiscal. Outros, porém, demonstram uma incompreensão quanto ao que seja a transação tributária e, consequentemente, não têm tido êxito na celebração desses acordos.

Não são poucos os devedores que se apresentam à mesa de negociação acreditando que podem obter todas vantagens permitidas em lei em seu grau máximo, por reputarem tratar-se de um direito subjetivo, oponível à Administração Tributária em típica atividade administrativa vinculada. De todas as dificuldades até aqui encontradas nessa nova forma de relacionamento contribuinte–Fisco, esta parece ser o nó górdio a ser superado.

Existem razões práticas e teóricas que explicam essa incompreensão quanto ao que seja a transação tributária e sua função institucional. Vejamos.

Antes da transação ser criada por lei, a única exceção ao fatalismo da expropriação judicial de bens e da prescrição intercorrente eram os parcelamentos. A via alternativa até então existente era uma só: aderir a uma modalidade de parcelamento e pagar prestações mensais em número suficiente para saldar a dívida. Concebidos como benefícios fiscais disponíveis a todo e qualquer contribuinte, esses parcelamentos estruturavam-se no binômio vontade–adequação: bastava que o contribuinte manifestasse a vontade de aderir a eles, submetendo-se aos requisitos previstos na lei para ingresso, permanência e liquidação.

Nesse momento, à Administração Tributária descabia qualquer juízo de conveniência ou oportunidade, pois, por presunção, tal juízo havia sido realizado politicamente no âmbito do processo legislativo com a edição da lei concessiva do parcelamento. Mas não só, por serem concedidos mediante ato administrativo plenamente vinculado, a litigiosidade subjacente a esses parcelamentos circunscrevia-se a alguma margem interpretativa dada pela legislação tributária quanto às causas de rescisão, quase sempre na dicotomia direito subjetivo do contribuinte (artigo 155-A, CTN) versus autotutela da Administração Pública (artigo 155, CTN c/c artigo 53, Lei nº. 9.784/1999).

A transação subverte esta lógica. De fato, ela retira o equacionamento do passivo fiscal da inexorabilidade da execução forçada excepcionada pelo direito subjetivo a parcelamentos, alçando-o à possibilidade negocial, em que os critérios de conveniência e oportunidade assumem papel central na resolução do conflito (artigo 1º, § 1º, Lei nº 13.988/2020).

Mesmo que sempre voltada ao atendimento do interesse público, a discricionariedade do ato administrativo formalizador da transação transforma-se em uma inerência, reduzindo a vinculatividade apenas e tão-somente aos limites legais previstos para a concessão dos incentivos de pagamento a quem estiver disposto a transacionar com a Fazenda Nacional (artigo 11, § 2º, Lei nº 13.988/2020).

Assim, a capacidade de pagamento individualizada tornou-se o critério de referência para as negociações subjacentes à celebração da transação (artigo 14, parágrafo único, Lei nº 13.988/2020), de maneira que todo e qualquer acordo para solução do passivo fiscal depende das condições econômico-financeiras e patrimoniais apuradas, presumida ou concretamente, para cada devedor interessado em transacionar.

Em se tratando de transação tributária, a lei não cria direitos subjetivos aos contribuintes. Da lei que a institui decorre apenas a possibilidade de devedor e Fazenda Nacional encontrarem uma solução mediada e mediata para a satisfação dos créditos tributários em aberto.

Mesmo que seja possível negociar o oferecimento de prazos e formas de pagamento (artigo 11, inciso II, Lei nº 13.988/2020), transação não é parcelamento, pois na lei que a prevê não estão estabelecidos os requisitos objetivos para que este ou aquele contribuinte a obtenha.

Tal como os tratados-quadro no direito internacional público, a lei instituidora da transação tributária não cria direitos e deveres de per si, conferindo à Administração Tributária fazê-lo, geral (por adesão, com parâmetros definidos em edital), ou individualmente. Não há direito subjetivo a uma transação que atenda os interesses do devedor. Há apenas uma possibilidade, que só será consumada se a proposta também atender o interesse público parametrizado em atos normativos e confirmado pelas condições materiais do devedor interessado. Nada além disto.

Afinal, com a transação, pode-se muito, mas não se pode tudo.