Opinião

Decisão do pleno do tribunal do Cade e a tutela da evidência

Autor

  • Thadeu Augimeri de Goes Lima

    é pós-doutorado em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp) doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Ciência Jurídica pela Uenp e promotor de Justiça de Entrância Final do Ministério Público do Estado do Paraná.

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23 de dezembro de 2022, 15h19

A recente Lei 14.470, de 16 de novembro de 2022, promoveu algumas modificações na chamada Lei de Defesa da Concorrência (Lei 12.529/2011): introduziu os §§1º a 4º no já existente artigo 47 e inseriu dois novos artigos, de números 46-A e 47-A, no corpo da LDC. Interessa-nos, neste pequeno texto, analisar pontualmente esse novel artigo 47-A.

O dispositivo tem a seguinte redação: "Artigo 47-A. A decisão do Plenário do Tribunal referida no artigo 93 desta Lei é apta a fundamentar a concessão de tutela da evidência, permitindo ao juiz decidir liminarmente nas ações previstas no artigo 47 desta Lei".

O remetido artigo 93 da LDC preconiza que a "decisão do Plenário do Tribunal, cominando multa ou impondo obrigação de fazer ou não fazer, constitui título executivo extrajudicial". Trata-se aqui de decisão colegiada do Pleno do Tribunal Administrativo de Defesa Econômica, órgão do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), proferida no julgamento definitivo de processo administrativo de sua competência e que conclua pela incidência de penalidade de cunho pecuniário ou determine um facere ou um non facere a agente (s) econômico (s) — notadamente decisum que reconheça a prática de infração da ordem econômica e aplique aos seus identificados responsáveis as pertinentes sanções e medidas administrativas, na forma do artigo 79 da LDC , a qual ostenta a eficácia de título executivo extrajudicial para a obtenção da satisfação das providências alvitradas.

Ao seu turno, o remetido artigo 47 da LDC estabelece no seu caput que os "prejudicados, por si ou pelos legitimados referidos no artigo 82 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, poderão ingressar em juízo para, em defesa de seus interesses individuais ou individuais homogêneos, obter a cessação de práticas que constituam infração da ordem econômica, bem como o recebimento de indenização por perdas e danos sofridos, independentemente do inquérito ou processo administrativo, que não será suspenso em virtude do ajuizamento de ação". Cuida-se aqui de demandas individuais ou coletivas voltadas à cessação ou à remoção de ilícitos econômicos ou de suas consequências e/ou à reparação de danos, que podem ser propostas pelas pessoas naturais ou jurídicas individualmente lesadas ou pelos legitimados coletivos arrolados no artigo 82 do Código de Defesa do Consumidor, quais sejam, o Ministério Público, a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal, as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos pelo diploma consumerista, e as associações legalmente constituídas desde pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos pelo CDC, dispensada a autorização assemblear, quando se verifiquem interesses individuais homogêneos atingidos pela infração.

Para melhor contextualização, cabe destacar que a ordem econômica consiste em um bem jurídico supraindividual, precisamente difuso, que se beneficia do que denominamos pluritutela jurídica, isto é, de uma multiplicidade de disposições normativas, de instrumentos e de instituições atuantes nas esferas de responsabilização penal, civil e administrativa, cujo eixo teleológico comum reside na função de garantir a sua preservação em face de ameaças e de buscar a sua reparação diante de lesões consumadas [1].

Com efeito, observe-se que algumas condutas atentatórias à ordem econômica, in casu o abuso do poder econômico e as práticas cartelistas com escopos anticoncorrenciais, são tipificadas como crimes no artigo 4º da Lei 8.137/1990, sujeitando os seus autores e partícipes a sanções penais, aplicáveis na esfera criminal após o devido processo penal.

De outro lado, na esfera civil, e conforme o já citado artigo 47, caput, da LDC, os pessoalmente prejudicados por infração da ordem econômica e os entes exponenciais legitimados à propositura de ações coletivas indicados no artigo 82 do CDC, quanto aos interesses individuais homogêneos que lhes toquem defender, podem ingressar em juízo para obter a cessação ou a remoção do ilícito econômico ou de suas consequências e/ou a reparação dos danos por ele causados, o que, aliás, guarda perfeita consonância com as regras gerais do artigo 5º, inciso XXXV, da CF/1988, dos artigos 186, 187 e 927 do Código Civil, do artigo 497, parágrafo único, do Código de Processo Civil e dos artigos 81 e seguintes do CDC.

Finalmente, na esfera administrativa, incumbem precipuamente ao Cade a prevenção e a repressão das infrações contra a ordem econômica, cujas definições estão contempladas no artigo 36 e cujos preceitos sancionadores se encontram nos artigos 37 e seguintes, todos da Lei de Defesa da Concorrência.

Nos termos dos artigos 3º e 4º da LDC, o Cade é entidade judicante  de natureza administrativa, frise-se  com "jurisdição" (sic)  melhor seria a enunciação legal dizer atribuição ou abrangência de atuação  em todo o território nacional, formatada como autarquia federal, vinculada ao Ministério da Justiça, com sede e foro no Distrito Federal e competências previstas na aludida lei, e compõe, ao lado da Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC).

Outrossim, na linha do artigo 5º da LDC, o Cade é constituído internamente pelos seguintes órgãos: o Tribunal Administrativo de Defesa Econômica, a Superintendência-Geral e o Departamento de Estudos Econômicos.

O Tribunal Administrativo de Defesa Econômica é o órgão especificamente judicante do Cade e tem como membros um presidente e seis Conselheiros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta anos de idade, de notório saber jurídico ou econômico e reputação ilibada, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovados pelo Senado Federal, tal qual dispõe o artigo 6º da LDC. As competências do seu Plenário estão registradas no artigo 9º do diploma legal, das quais destacamos as de decidir sobre a ocorrência de infração da ordem econômica e aplicar aos respectivos responsáveis as pertinentes sanções e medidas administrativas (incisos II e III), ordenar providências que conduzam à cessação de infração da ordem econômica, dentro do prazo que determinar (inciso IV), aprovar os termos do compromisso de cessação de prática e do acordo em controle de concentrações, determinando à Superintendência-Geral que fiscalize seu cumprimento (inciso V), e apreciar processos administrativos de atos de concentração econômica, fixando, quando entender conveniente e oportuno, acordos em controle de atos de concentração (inciso X).

À Superintendência-Geral, grosso modo, incumbem atribuições pré-processuais e processuais, de naturezas preventiva, fiscalizatória, investigatória, postulatória, instrutória, impugnativa, executiva e orientativa, nos moldes do rol do artigo 13 da LDC.

O Departamento de Estudos Econômicos, por sua vez, é dirigido por um Economista-Chefe  nomeado, conjuntamente, pelo Superintendente-Geral e pelo Presidente do Tribunal, dentre brasileiros de ilibada reputação e notório conhecimento econômico, ex vi do artigo 18, caput, da LDC , a quem incumbirá elaborar estudos e pareceres econômicos, de ofício ou por solicitação do Plenário, do Presidente ou de Conselheiro-Relator do Tribunal ou do Superintendente-Geral, zelando pelo rigor e atualização técnica e científica das decisões do Cade.

Via de regra, as instituições e esferas de responsabilização penal, civil e administrativa que atuam na pluritutela jurídica de bens jurídicos supraindividuais, incluída a ordem econômica, operam de maneira independente umas das outras. Isso está até expresso no artigo 35 da LDC, ao estatuir que a "repressão das infrações da ordem econômica não exclui a punição de outros ilícitos previstos em lei". Contudo, a própria legislação costuma prever hipóteses de repercussão ou influência de uma esfera de responsabilização sobre outra, de modo que é mais acertado afirmar que a independência entre elas é relativa ou mitigada, ou seja, aberta a temperamentos.

Na Lei de Defesa da Concorrência mesma, vejam-se, a propósito, o artigo 87, que disciplina efeitos penais substanciais e processuais penais do acordo de leniência celebrado no âmbito do Cade, e o ora estudado artigo 47-A, que passou a permitir que o juiz cível, liminarmente, ou seja, logo no início do trâmite de ação civil individual ou coletiva ajuizada com fundamento no artigo 47, inaudita altera pars, conceda a tutela da evidência com base apenas em decisão do Pleno do Tribunal Administrativo de Defesa Econômica do CADE que aplique multa ou imponha obrigação de fazer ou não fazer a agente (s) econômico (s), dotada de força executiva extrajudicial quanto a ditas providências.

Como é sabido, a tutela da evidência, na sistemática do vigente CPC, consiste em uma espécie do gênero tutela provisória que dispensa, para a sua concessão, a demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo, conforme o artigo 311, caput, do diploma. Trata-se, na lição de Bruno Vinícius da Rós Bodart, de uma técnica de distribuição dos ônus decorrentes do tempo do processo caracterizada pela concessão imediata da tutela jurisdicional alicerçada no alto grau de verossimilhança das alegações do autor, a revelar improvável o sucesso do demandado em fase processual mais avançada [2].

Pois bem, somando-se às hipóteses de cabimento da tutela da evidência já previstas nos quatro incisos do artigo 311 do CPC  abuso do direito de defesa ou propósito protelatório da parte (inciso I); comprovação documental das alegações de fato e existência de tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante em favor da pretensão do autor (inciso II); pedido reipersecutório fundado em prova documental adequada do contrato de depósito, caso em que será decretada a ordem de entrega do objeto custodiado (inciso III); ou petição inicial instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do demandante, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável (inciso IV) , tem-se agora no ordenamento jurídico pátrio uma nova hipótese do seu cabimento, justamente a do artigo 47-A da LDC.

Rumando ao encerramento, fazemos cinco apontamentos finais sobre o dispositivo em questão.

Primeiramente, e até como já visto, ele é aplicável tanto nas ações individuais quanto nas ações coletivas voltadas à cessação ou à remoção de ilícitos econômicos ou de suas consequências e/ou à reparação de danos por eles causados, que podem ser propostas, respectivamente, pelas pessoas naturais ou jurídicas individualmente lesadas e pelos legitimados coletivos arrolados no artigo 82 do CDC, aqui quando se trate da defesa de interesses individuais homogêneos que guardem pertinência com as suas funções e finalidades institucionais.

Em segundo lugar, a decisão colegiada do Pleno do Tribunal Administrativo de Defesa Econômica do Cade proferida no julgamento definitivo de processo administrativo de sua competência e que aplique multa ou imponha obrigação de fazer ou não fazer é o título jurídico necessário e suficiente à concessão da tutela da evidência naquelas demandas, vale dizer, por si só autoriza o magistrado a outorgar a espécie de tutela provisória em comento, dispensando qualquer outra exigência.

Em terceiro lugar, por inteligência do artigo 47-A, c/c os artigos 31 a 34, todos da Lei de Defesa da Concorrência, para a aplicação da regra em tela há que se observar uma correlação subjetiva entre o representado destinatário da multa ou da obrigação de fazer ou não fazer na decisão colegiada do Pleno do Tribunal do Cade e o réu na ação individual ou coletiva ajuizada com fulcro no artigo 47 da LDC. Isso não significa que precise existir identidade entre um e outro, mas somente que ao demandado em juízo deve ser legalmente cominada a responsabilidade (solidária ou subsidiária) pela infração da ordem econômica, ainda que não tenha figurado formalmente como representado no antecedente processo administrativo perante o Cade. Em suma, para a concessão da tutela da evidência em exame, o réu na ação individual ou coletiva deve ser considerado responsável pela infração da ordem econômica, nos termos dos supracitados artigos 31 a 34.

Em quarto lugar, o artigo 47-A da LDC contempla mais uma hipótese em que se permite ao juiz conceder a tutela da evidência liminarmente, inaudita altera pars, o que antes só tinha cabimento nas hipóteses do artigo 311, incisos II e III, do CPC, ex vi do parágrafo único deste dispositivo.

Por derradeiro, como tutela provisória que é, a tutela da evidência concedida com fundamento no artigo 47-A da LDC pode ser revogada no curso do processo, desde que sobrevenha algum elemento apto a infirmar o título que a embasa — v.g., uma sentença desconstitutiva da decisão colegiada do Pleno do Tribunal Administrativo de Defesa Econômica do Cade, proferida em razão da procedência do pedido deduzido em ação anulatória ajuizada por algum representado no processo administrativo.

 


[1] V. LIMA, Thadeu Augimeri de Goes. Persecução penal e interesses supraindividuais: diálogos com o processo coletivo. Belo Horizonte; São Paulo: D’Plácido, 2020. p. 59.

[2] BODART, Bruno Vinícius da Rós. Tutela de evidência: teoria da cognição, análise econômica do direito processual e comentários ao novo CPC. 2. ed. em e-book baseada na 2. ed. impressa. São Paulo: Revista dos Tribunais; Thomson Reuters Brasil, 2015. nº 4.1.

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  • é pós-doutorado em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp), doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Ciência Jurídica pela Uenp e promotor de Justiça de Entrância Final do Ministério Público do Estado do Paraná.

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