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Consultor Jurídico

Marzagão e Bechara: Natureza das alienações feitas na RJ

23 de dezembro de 2022, 6h19

Por Newton Coca Bastos Marzagão, Guilherme Fonte Bechara

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A Lei 11.101/2005, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, foi recentemente alterada pela Lei 14.112/2020, que vem sendo rotineiramente chamada de "reforma".

Dentre os diversos objetivos da reforma, o legislador procurou criar incentivos à alienação de ativos no âmbito dos processos de recuperação judicial, mediante a concessão de proteções adicionais a investidores interessados na aquisição de bens diretamente ou na forma de unidades produtivas isoladas, ou mesmo mediante a venda integral da devedora, conforme agora admitido pela novel legislação.

Desde o advento da Lei nº 11.101/2005, sempre se prezou, corretamente, pelo benefício da não sucessão na aquisição de unidades produtivas isoladas. Na forma do artigo 60, parágrafo único, da Lei de Recuperações e Falências, na hipótese de alienação de uma unidade produtiva isolada por meio de uma das modalidades de processo competitivo previstas no artigo 142[1], "o objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor de qualquer natureza, incluídas, mas não exclusivamente, as de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção, tributária e trabalhista, observado o disposto no § 1º do art. 141 desta Lei".

Recentemente, a reforma expandiu o escopo de tal proteção, seja na própria redação do parágrafo único do artigo 60 — ao deixar claro que as obrigações de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal e anticorrupção igualmente não seriam passíveis de sucessão, mas também previu a possibilidade de aplicação da regra da não sucessão em qualquer venda de bens, desde que a venda seja realizada mediante uma das modalidades previstas no sobredito artigo 142, conforme previsto no artigo 66, parágrafo 3º, incluído pela reforma[2].

No entanto, não raro duas outras questões levantavam certos anseios nos interessados na aquisição de bens e direitos em processos de insolvência, tanto em recuperações judiciais como em falências.

A primeira, em relação aos possíveis efeitos de decisões judiciais posteriores que eventualmente digam respeito à aquisição ou mesmo ao plano de recuperação judicial ou a outros aspectos da recuperação judicial.

A título de exemplo: após a homologação do plano de recuperação judicial, o juízo de primeira instância determina as providências para o início do processo de venda de determina unidade produtiva isolada. Em paralelo, certo credor insatisfeito interpõe agravo de instrumento contra a decisão homologatória do plano e pleiteia a nulidade integral do plano de recuperação ou mesmo a nulidade específica da cláusula relativa à alienação da unidade produtiva isolada. O processo competitivo, então, ocorre na pendência de decisão da instância superior sobre o recurso do credor insatisfeito, gerando incerteza quanto à situação jurídica do investidor, notadamente se o preço de aquisição já tiver sido desembolsado — e, portanto, a compra e venda se aperfeiçoado — à época de eventual decisão da instância superior sobre a nulidade do plano de recuperação judicial ou suas previsões sobre referida alienação.

A segunda questão diz respeito a eventuais riscos de a aquisição representar eventual fraude contra credores ou fraude à execução em relação a credores não sujeitos à recuperação judicial, principalmente, no segundo caso, o Fisco. Isso porque, muito embora o Código Tributário Nacional seja claro ao dispor sobre a inexistência de sucessão na venda de unidades produtivas isoladas, nada diz sobre proteções contra a fraude à execução.

A reforma procurou endereçar as duas questões tanto por meio de inclusões específicas na própria Lei de Recuperações e Falências —  a seguir indicadas —, como, também, por ressaltar específica e expressamente a natureza judicial de todas as formas de alienação de bens realizadas ao abrigo de tal legislação, nos termos do seu artigo 142, § 8º[3].

Sobre o primeiro aspecto, salutar a inclusão do artigo 66-A que determina que "a alienação de bens ou a garantia outorgada pelo devedor a adquirente ou a financiador de boa-fé, desde que realizada mediante autorização judicial expressa ou prevista em plano de recuperação judicial ou extrajudicial aprovado, não poderá ser anulada ou tornada ineficaz após a consumação do negócio jurídico com o recebimento dos recursos correspondentes pelo devedor".

Previsão similar também foi incluída para proteção dos financiadores interessados na concessão de mútuos pós-concursais destinados ao financiamento do devedor e do grupo devedor durante a recuperação judicial, nos termos do novel artigo 69-B da Lei de Recuperações e Falências, introduzido pela reforma[4].

Referidas proteções são relevantes e traçam paralelo com a finalidade pretendida às arrematações judiciais, as quais, após a assinatura do auto de arrematação, são consideradas perfeitas, irrevogáveis e irretratáveis, ainda que posteriormente julgados procedentes os embargos do executado ou eventual ação de anulação da arrematação, conforme previsto no artigo 903 do Código de Processo Civil[5].

Da mesma forma, o esclarecimento quanto à natureza de venda judicial é de extrema relevância. Isso porque a venda judicial é exatamente baseada na premissa de que se trata de um ato estatal, no qual o Estado-juiz determina e autoriza a transferência de um bem — ou conjunto de bens — de uma pessoa (no caso, o devedor) a outra pessoa — ou seja, o comprador.

Portanto, a voluntariedade inerente às relações contratuais — e que é fonte de escrutínio em determinadas circunstâncias envolvendo os temas da fraude contra credores e fraude à execução — é substituída pelo caráter originário da aquisição feita em ambiente judicial sob a chancela do magistrado.

Como a alienação judicial é ato processual, decorrente da atividade estatal, não haveria um simples ato de disposição voluntária sem supervisão, capaz de gerar fraude à  execução, conforme entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça[6] e que ressoa em julgado de outros tribunais brasileiros[7].

Apesar de tais aspectos, é importante ressaltar que a Reforma igualmente procurou tutelar o direito dos credores não sujeitos ao procedimento recuperacional — e possivelmente aqueles afetados pela retirada do bem do patrimônio do devedor mediante a transação realizada (a despeito de qualquer juízo de valor sobre a justiça/proporcionalidade da troca patrimonial decorrente do preço de aquisição).

Isso porque é permitido ao magistrado decretar a falência quando verificado o esvaziamento patrimonial que implique liquidação substancial da empresa em prejuízo dos credores não sujeitos, preservando-se, contudo, os atos de alienação de bens tidos como caracterizadores da liquidação substancial da empresa, mas tão somente o bloqueio do respectivo preço para impedir sua utilização pelo devedor, conforme artigo 73, VI, §§2 e 3º da Lei 11.101/2005[8].

As proteções acima indicadas — tanto aos investidores como aos credores — são de extrema relevância, notadamente porque, no âmbito dos processos de recuperação judicial, é possível — e desejável — a realização das mais variadas operações de investimentos, tais como a compra de bens e imóveis isolados, a aquisição de participações societárias, ou de grupo de bens, estabelecimentos ou unidades de negócios, até mesmo a aquisição de bens móveis incorpóreos tais como créditos e direitos. E, por se tratar de atos de disposição patrimonial de uma empresa em dificuldade, geralmente com endividamento sujeito e não sujeito à recuperação judicial, inspiram discussões e preocupações sobre a situação jurídica do devedor, de tais credores do próprio bem a ser alienado.

Portanto, é louvável e necessária a criação de mecanismos que balanceiem os diversos e legítimos interesses envolvidos em tais circunstâncias, visto que, somente com tal balanço é que será possível efetivamente fomentar o mercado de compra e venda de ativos em ambientes de insolvência e, consequentemente, viabilizar a injeção dos tão necessários recursos para o soerguimento empresarial dos devedores em recuperação, ou a concreta recuperação de créditos em ambiente falimentar.


[1] Art. 142. A alienação de bens dar-se-á por uma das seguintes modalidades:
I – leilão eletrônico, presencial ou híbrido;
II – (revogado);
III – (revogado);
IV – processo competitivo organizado promovido por agente especializado e de reputação ilibada, cujo procedimento deverá ser detalhado em relatório anexo ao plano de realização do ativo ou ao plano de recuperação judicial, conforme o caso;
V – qualquer outra modalidade, desde que aprovada nos termos desta Lei.
§ 1º (Revogado).
§ 2º (Revogado).
§ 2º-A. A alienação de que trata o caput deste artigo:
I – dar-se-á independentemente de a conjuntura do mercado no momento da venda ser favorável ou desfavorável, dado o caráter forçado da venda;
II – independerá da consolidação do quadro-geral de credores;
III – poderá contar com serviços de terceiros como consultores, corretores e leiloeiros;
IV – deverá ocorrer no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contado da data da lavratura do auto de arrecadação, no caso de falência;
V – não estará sujeita à aplicação do conceito de preço vil.
§ 3º Ao leilão eletrônico, presencial ou híbrido aplicam-se, no que couber, as regras da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil)
§ 3º-A. A alienação por leilão eletrônico, presencial ou híbrido dar-se-á:
I – em primeira chamada, no mínimo pelo valor de avaliação do bem;
II – em segunda chamada, dentro de 15 (quinze) dias, contados da primeira chamada, por no mínimo 50% (cinquenta por cento) do valor de avaliação; e
III – em terceira chamada, dentro de 15 (quinze) dias, contados da segunda chamada, por qualquer preço.
§ 3º-B. A alienação prevista nos incisos IV e V do caput deste artigo, conforme disposições específicas desta Lei, observará o seguinte
I – será aprovada pela assembleia-geral de credores;
II – decorrerá de disposição de plano de recuperação judicial aprovado; ou
III – deverá ser aprovada pelo juiz, considerada a manifestação do administrador judicial e do Comitê de Credores, se existente.
§ 4º (Revogado).
§ 5º (Revogado).
§ 6º (Revogado).
§ 7º Em qualquer modalidade de alienação, o Ministério Público e as Fazendas Públicas serão intimados por meio eletrônico, nos termos da legislação vigente e respeitadas as respectivas prerrogativas funcionais, sob pena de nulidade.
§ 8º Todas as formas de alienação de bens realizadas de acordo com esta Lei serão consideradas, para todos os fins e efeitos, alienações judiciais.

[2] Art. 66. Após a distribuição do pedido de recuperação judicial, o devedor não poderá alienar ou onerar bens ou direitos de seu ativo não circulante, inclusive para os fins previstos no art. 67 desta Lei, salvo mediante autorização do juiz, depois de ouvido o Comitê de Credores, se houver, com exceção daqueles previamente autorizados no plano de recuperação judicial.

§ 3º Desde que a alienação seja realizada com observância do disposto no § 1º do art. 141 e no art. 142 desta Lei, o objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do adquirente nas obrigações do devedor, incluídas, mas não exclusivamente, as de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção, tributária e trabalhista.

[3]Vide nota de rodapé nº 1.

[4] Art. 69-B. A modificação em grau de recurso da decisão autorizativa da contratação do financiamento não pode alterar sua natureza extraconcursal, nos termos do art. 84 desta Lei, nem as garantias outorgadas pelo devedor em favor do financiador de boa-fé, caso o desembolso dos recursos já tenha sido efetivado.

[5] Art. 903. Qualquer que seja a modalidade de leilão, assinado o auto pelo juiz, pelo arrematante e pelo leiloeiro, a arrematação será considerada perfeita, acabada e irretratável, ainda que venham a ser julgados procedentes os embargos do executado ou a ação autônoma de que trata o § 4º deste artigo, assegurada a possibilidade de reparação pelos prejuízos sofridos.

[6] EMBARGOS DE TERCEIRO. ADJUDICAÇÃO EM HASTA PÚBLICA. FRAUDE À EXECUÇÃO FISCAL NÃO CONFIGURADA. A Primeira Seção do STJ, no julgamento do REsp 1.141.990/PR, de Relatoria do Min. Luiz Fux, submetido ao rito dos recursos repetitivos, nos termos do art. 543-C do CPC e da Resolução 8/STJ, consolidou entendimento segundo o qual não se aplica à execução fiscal a Súmula 375/STJ: ‘O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente’. Esse entendimento não se aplica aos casos em que a alienação do imóvel ocorreu em hasta pública, pois a adjudicação em hasta pública extingue o ônus do imóvel arrematado, que passa ao arrematante livre e desembaraçado de qualquer responsabilidade, sendo, portanto, considerada aquisição originária. Agravo regimental improvido.” (AgRg no AgRg no AREsp 301.959/RN, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 04/02/2014, DJe 10/02/2014)

[7]AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO AGRAVADA QUE TORNOU SEM EFEITO PENHORA REALIZADA EM IMÓVEL ADJUDICADO EM HASTA PÚBLICA EM FAVOR DE TERCEIRO. A PRIMEIRA SEÇÃO DO STJ, NO JULGAMENTO DO RESP 1.141.990/PR, DE RELATORIA DO MIN. LUIZ FUX, SUBMETIDO AO RITO DOS RECURSOS REPETITIVOS, NOS TERMOS DO ART. 543-C DO CPC/73 E DA RESOLUÇÃO 8/STJ, CONSOLIDOU ENTENDIMENTO SEGUNDO O QUAL NÃO SE APLICA À EXECUÇÃO FISCAL A SÚMULA 375/STJ: "O RECONHECIMENTO DA FRAUDE À EXECUÇÃO DEPENDE DO REGISTRO DA PENHORA DO BEM ALIENADO OU DA PROVA DE MÁ-FÉ DO TERCEIRO ADQUIRENTE". ASSIM, A MÁ-FÉ DO TERCEIRO ADQUIRENTE OU MESMO A PROVA DO CONLUIO NÃO É NECESSÁRIA PARA CARACTERIZAÇÃO DA FRAUDE À EXECUÇÃO. ESSE ENTENDIMENTO, ENTRETANTO, NÃO SE APLICA AOS CASOS EM QUE A ALIENAÇÃO DO IMÓVEL OCORREU EM HASTA PÚBLICA. A EXPROPRIAÇÃO LEVADA A EFEITO SOB A TUTELA JURISDICIONAL, NO CURSO DE PROCESSO JUDICIAL, POSSUI CARÁTER OFICIAL, NÃO HAVENDO QUE SE COGITAR DA OCORRÊNCIA DE FRAUDE, NOS TERMOS DO QUE DISPÕEM OS ARTS. 593 DO CPC E 185 DO CTN, PORQUANTO SE TRATA DE ATO DE SOBERANIA ESTATAL. NA HIPÓTESE DE ARREMATAÇÃO OU ADJUDICAÇÃO JUDICIAL, A VONTADE DO DEVEDOR É IRRELEVANTE, O QUE OBSTA A CARACTERIZAÇÃO DA FRAUDE. FRAUDE À EXECUÇÃO FISCAL NÃO CONFIGURADA. DESPROVIMENTO DO RECURSO.” (RIO DE JANEIRO, Tribunal de Justiça de. Agravo de Instrumento nº 0071496-94.2017.8.19.0000. Desa. Relatora: Mônica Feldman de Mattos. Julgado em 22 de maio de 2018).

[8] Art. 73. O juiz decretará a falência durante o processo de recuperação judicial:
VI – quando identificado o esvaziamento patrimonial da devedora que implique liquidação substancial da empresa, em prejuízo de credores não sujeitos à recuperação judicial, inclusive as Fazendas Públicas.
§ 2º A hipótese prevista no inciso VI do caput deste artigo não implicará a invalidade ou a ineficácia dos atos, e o juiz determinará o bloqueio do produto de eventuais alienações e a devolução ao devedor dos valores já distribuídos, os quais ficarão à disposição do juízo.
§ 3º Considera-se substancial a liquidação quando não forem reservados bens, direitos ou projeção de fluxo de caixa futuro suficientes à manutenção da atividade econômica para fins de cumprimento de suas obrigações, facultada a realização de perícia específica para essa finalidade.