Opinião

Marco Legal dos Criptos: o que muda para o Direito Penal

Autor

  • Thaís Coutinho

    é advogada especialista em Direito Penal e Compliance pelo Instituto de Direito Penal Económico da Universidade de Coimbra e em Compliance Governança Corporativa e Supervisão Pública pela Universidade de Lisboa e certificada em Financial Crimes e Investigações Corporativas pela KPMG.

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22 de dezembro de 2022, 7h09

Encerrada a tramitação na Câmara dos Deputados do PL 4.401/2021 que trata de um dos temas mais notáveis da atualidade e que visa a regulamentação dos criptoativos e das operações com eles realizadas em plataformas eletrônicas de negociação através de corretoras, conhecidas como exchanges. O projeto inicial sofreu alterações na votação pelo Senado, tendo sua aprovação final pela Câmara de Deputados em 1º de dezembro de 2022 e sanção pelo presidente da República nesta quarta-feira (21/12). Publicada hoje no Diário Oficial da União, a regulamentação entra em vigor em 180 dias.

É verdade que a regulamentação dos criptoativos vem despertando cada vez mais o interesse de diversos entes públicos em vários países. No entanto, essa normatização também tem se mostrado um desafio, tendo em vista a interdisciplinaridade que o tema alcança e a divergência mundial que ainda paira sobre o entendimento acerca da conceituação jurídico-econômica do objeto.

Os criptoativos surgiram no final da década de 2000 sob a premissa básica da desconfiança e da diminuição da dependência, postulados em princípios de transparência, privacidade e descentralização, intuindo se diferenciar dos ativos tradicionais que necessitam de instituições financeiras como intermediárias para as transações e que, por não estarem protegidos por tecnologia criptográfica, apresentam um risco adicional.

Segundo especialistas, os criptoativos podem ser entendidos como um gênero que possui algumas espécies ou tipos, sendo as criptomoedas (payment tokens ou coin tokens) apenas um deles, constantemente utilizadas como forma virtual para pagamento de transações que podem ocorrer entre qualquer lugar do mundo, por um sistema eletrônico baseado em prova criptográfica e arquitetura "peer to peer".

Os security tokens e os utility tokens são outras espécies de criptoativos. Os security tokens observam algumas semelhanças com os tipos de valores mobiliários regulados pela CVM e, dependendo do ativo, podem estar sujeitos às normas dos órgãos reguladores. De maneira menos complexa, pode-se entender que os security tokens são como uma forma de investimento utilizado para arrecadar valores dos investidores que, em contrapartida, podem receber taxas geradas por juros, parte do lucro sobre a seguridade ou dividendos. Desse modo, tem-se um tipo de seguridade criptográfica que garante ao proprietário ser ou ter parte do ativo negociável sem a necessidade de possuir o objeto.

Os utility tokens não são ativos de especulação, mas garantem ao proprietário o acesso a experiências e benefícios a serem auferidos no futuro e, portanto, não sofrem interferência da CVM ou nenhum outro órgão equivalente de regulação de valores mobiliários e ativos financeiros no mundo. Um bom exemplo são os fan tokens que vem sendo cada vez mais utilizados por times de futebol, como o Flamengo, Barcelona, PSG, Corinthians e a própria CBF (BFT), e garantem, por exemplo, o direito de votar em enquetes e ter acesso a outras utilidades exclusivas.

A natureza dos ativos virtuais e a inexistência de uma legislação específica acerca do tema têm corroborado com os impactos na percepção de insegurança deste ambiente negocial e da idoneidade dos sujeitos envolvidos, tendo em vista os crescentes golpes observados com os criptoativos que envolvem pirâmides financeiras, estratégias de convencimento para roubo de ativos e o anúncio de criptoativos falsos. Podendo gerar até mesmo problemas de governança corporativa no caso de security tokens que garantem direito a voto ou à participação societária.

 Desse modo, o que se observa é que os golpes têm envolvido tanto estratégias de ataques mais sofisticados, que consiste na permissão para alcançar as chaves de acesso a carteiras digitais, quanto estratégias de engenharia social nas quais falsos assessores financeiros anunciam investimentos com a promessa de lucros estratosféricos e irreais. Casos famosos de pirâmides financeiras como o "Rainha Cripto" e o "Faraó dos Bitcoins", que lesionaram milhares de investidores, têm afetado a reputação do setor. Somado a isto tem as características que se apresentam como obstáculos para a recuperação dos criptoativos, como a dificuldade da definição do titular e do rastreamento, a insuficiência de aparato tecnológico dos órgãos públicos e as barreiras internacionais. 

A dificuldade na definição do titular do criptoativo está relacionada com os princípios basilares de privacidade e independência no sentido de que, mesmo que ocorra a complexa análise de todos os elos da blockchain e o mapeamento de trânsito do ativo, as chaves não necessariamente possuem dados identificadores do titular, que pode ser pessoa física ou jurídica. Ainda que a tecnologia blockchain tenha a premissa de transparência de informações registradas na rede, a extraterritorialidade dos participantes envolvidos aumenta a complexidade estrutural e os obstáculos legais.

Em 2017 o mercado computou expressivos golpes relacionados a ICOs (Initial Coin Offering), o que despertou o olhar da CVM para emitir alerta ao público sobre os riscos que esse investimento pode oferecer. As ICOs oferecem aos investidores novos criptoativos que foram emitidos e podem ser utilizados como moedas virtuais para acessar uma plataforma blockchain ou para aplicações descentralizadas. Diferentemente das STOs (Security Token Offering) que, quando considerado como valor mobiliário, se sujeita ao escrutínio da CVM, na hipótese do criptoativo ser uma coin ou um utility token, a competência da autarquia reguladora não necessariamente alcança a regulamentação da oferta.

O que tem se aferido na prática é a  insuficiência de alcance do arcabouço regulatório da CVM e demais entidades regulatórias e um sem número de exchanges que operam numa lacuna tão somente com transações de criptomoedas, ficando à margem da regulação da autarquia. Isto favorece, inclusive, o aumento de casos nos quais a corretora é levada à falência ou à recuperação judicial, como por exemplo o caso da FTX, que entrou com pedido de falência devendo mais de três bilhões de dólares aos credores; e do Grupo Bitcoin Banco, que está em recuperação judicial e deve cerca de meio bilhão de reais a quase 7.000 investidores, segundo lista da EXM  empresa responsável pela recuperação.

Fato é que ainda que os princípios da livre iniciativa e da legalidade que lastreiam a Constituição compreendam a atuação dos criptoativos no país e sustentem a sua utilização mesmo sem a existência de uma regulamentação normativa específica, a presença de casos nos quais a veiculação de criptoativos está relacionada com questões como lavagem de dinheiro, financiamento ao terrorismo, ocultação de valores e estelionato desencadeou uma motivação de ordem penal que inflamou ainda mais o debate sobre a necessidade de um marco legal dos ativos virtuais. Isto, sem dúvida, vem despertando a atenção dos investidores para a questão da segurança jurídica e para os impactos que a nova legislação pode causar.

Nesse sentido, o PL 4.401/2021 prevê a definição do âmbito de abrangência da lei pela conceituação de "ativo virtual" (Artigo 3). No entanto, em avaliação técnica, a Associação Nacional dos Procuradores da República indica que a prescrição trazida pela redação do texto não engloba todas as características e funções dos criptoativos, de modo que o rol, apesar de excludente, na forma como é apresentado faz com que subsista o impasse sobre os pontos de milhagens oferecidos por empresas de cartão de crédito. Nesse sentido, a ANPR recomenda que a redação do conceito trazida pela IN 1.888/2019 da Receita Federal é mais adequada do que a apresentada pela Câmara, assim como o vocábulo "criptoativos" para compor o texto legal, e não "ativos virtuais", como se vê.

O plenário do IAB rejeitou o PL 4.401/21 por considerar a necessidade de alterações na proposta. A Comissão de Direito Digital do Instituto dos Advogados Brasileiros também criticou, em parecer, o tratamento dos criptoativos como "ativos virtuais" na redação do projeto, fundamentado na possibilidade de confusão no que tange a delimitação de competência dos órgãos reguladores, apontando como outro erro a atribuição ao Poder Executivo da determinação de quais serão os ativos financeiros regulados.

Acerca da definição de exchange (artigo 5 do PL), a ANPR também se manifesta em favor da predileção do conceito cunhado na IN 1.888/2019 da Receita Federal, por entender que a redação como consta no Projeto de Lei pode trazer dúvida quanto a aplicação da regra nas hipóteses em que a corretora atue em nome próprio, além de inexistir no texto atual previsão de sanção legal às exchanges que atuarem sem autorização da autoridade competente, como ocorre hoje com as instituições financeiras.

Na seara criminal, o PL 4.401/2021 prevê a alteração do Código Penal através da adição de nova tipificação referente às fraudes utilizando ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros. Além disso propõe também alterações na Lei 7.492/86, que trata dos crimes contra o sistema financeiro nacional, e na Lei 9.613/98, que dispõe sobre os crimes de lavagem de dinheiro e ocultação de bens, de modo a majorar a pena nas hipóteses em que estes crimes sejam cometidos com a utilização de "ativos virtuais" ou quando o crime de lavagem de dinheiro for cometido de maneira reiterada.

Ao passo que reconhece a necessidade de atualização da legislação a fim de acompanhar os avanços tecnológicos, a Comissão de Direito Penal do IAB teceu fortes críticas a essa alteração que prevê o recrudescimento da pena, principalmente por se dar sob a alegação fantasiosa de que isso ensejaria o aumento da segurança jurídica perquirida, tampouco sendo uma medida eficaz para enfrentar o problema das pirâmides financeiras.

Ademais, a modificação do Código Penal para a inserção de fraude em prestação de serviços de ativos virtuais, valores mobiliários ou qualquer outro ativo financeiro como sendo uma hipótese do crime de estelionato (segundo proposta de inclusão do Artigo 171-A) é um erro materialmente grosseiro, tendo em vista que, quando trata do estelionato, o Código Penal tutela em primeiro lugar o bem jurídico individual, qual seja, o patrimônio da vítima e, mediatamente, a sua boa-fé.

Já o bem jurídico tutelado pela nova norma incriminadora proposta pelo Congresso Nacional é o patrimônio da coletividade, considerada a vitimização difusa que alcança a economia popular, a ordem econômica e o Sistema Financeiro Nacional. Ocorre que, se tratando do patrimônio da coletividade, já existe tratamento na legislação extravagante, como no próprio caso da Lei 7.492/86, que tutela bem jurídico supraindividual.

À vista disso, no que diz respeito ao tema, entende a doutrina que quando a conduta criminosa é dirigida a um número indeterminado de pessoas, apoiando-se na especulação ou processos fraudulentos que pressupõem atuação ilusória do agente sobre o negócio jurídico e utiliza da boa-fé ou ignorância das vítimas, caracteriza o delito de exploração fraudulenta da credulidade pública, que inclusive é disciplinado como contravenção penal pelo Decreto Lei 3.688/41.

Em consonância a este entendimento técnico, a ANPR sinaliza ainda que, ao repetir os elementares do crime de estelionato, o novo tipo penal proposto pelo PL 4.401/21 se caracteriza como crime material, exigindo, para a sua tipificação, a existência de dano econômico e de vítima determinada ou determinável. Isso restringe os casos a serem contemplados por esta proposta de norma penal, não atingindo eficazmente o interesse público e social, principalmente se tratando de criptoativos, considerando as características já mencionadas deste objeto.

Portanto, haja vista o bem jurídico tutelado nessa discussão e as finalidades que motivam a regulamentação do tema, a abordagem correta seria um tipo que trata de crime formal e crime de perigo, dispensando assim a necessidade de identificação da vítima e a observância de prejuízo alheio, bem como a comprovação de vantagem obtida pelo autor. A pertinência dessa adequação técnica é evidente principalmente quando analisados os casos nos quais a gestão fraudulenta ou temerária não necessariamente implica um prejuízo ao investidor, de modo que é possível a gestão ilícita trazer lucro ou ao menos não acarretar prejuízo ao investidor, ao mesmo tempo que causa lesão ao  Sistema Financeiro Nacional.

Além disso, a Associação Nacional de Procuradores da República alerta para a lacuna que a redação do tipo penal proposto apresenta para os casos em que o fraudador não possui a propriedade do ativo ou quando sequer esses criptoativos existem no mercado, não passando de invenção do agente, hipóteses as quais o texto legal não abrangeria, tendo em vista a impossibilidade jurídica do objeto. Citando, inclusive, como sendo tecnicamente preferível a redação do artigo 17  do PL 3825/2019 (prejudicado), por propor a inserção da norma incriminadora na legislação extravagante condizente e por apresentar uma tipificação que não padece dos equívocos da então analisada. 

Com a atual efetivação do marco legal, há de se observar as implicações práticas da nova realidade que regulamenta o setor.   Sem dúvida, o surgimento de um novo produto aliado à desinformação da maior parte da população sobre o funcionamento dos ativos tornam o ambiente mais suscetível a golpes, assim como comumente se observa em mercados emergentes. Isso não significa que o setor de criptoativos seja necessariamente mais inseguro, mas é de se louvar a intenção de regulamentação da matéria, afastando o atrativo da informalidade e diminuindo a manipulação informacional. Ainda que, como se pode concluir pelas análises tecidas, o assunto careça de amadurecimento nas discussões e de diversas adequações técnicas antes de se ter uma legislação específica em vigor.

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Bibliografia
https://br.investing.com/news/cryptocurrency-news/o-que-sao-utility-tokens-entenda-954995. Acesso em 14/12/2022

COELHO, Gustavo Flausino; SILVA, Fernando Mendes Naegele. Recuperação de criptoativos mantidos no Brasil e no exterior. In: BACAL, Eduardo Braga; HARTMANN, Guilherme Kronemberg; RODRIGUES, Roberto de Aragão Ribeiro. Recuperação de ativos no Brasil e no exterior. 1ª ed. Rio de Janeiro, RJ: GZ, 2022.

NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: a peer- to-peer electronic cash system.  Disponível em: https://bitcoin.org/bitcoin.pdf. Acesso em: 14/12/2022.

Projeto de Lei nº 4.401 de 2021. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/151264. Acesso em: 14/12/2022.

SOUZA, Artur de Brito Gueiros; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Direito Penal: volume único. 2ª ed. São Paulo, SP: Atlas, 2020.

ULRICH, Fernando. Bitcoin: a moeda na era digital. São Paulo, SP: Mises Brasil, 2014.

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  • é advogada, especialista em Direito Penal e Compliance pelo Instituto de Direito Penal Económico da Universidade de Coimbra e em Compliance, Governança Corporativa e Supervisão Pública pela Universidade de Lisboa e certificada em Financial Crimes e Investigações Corporativas pela KPMG.

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