Opinião

Dilema das indenizações no término dos contratos do setor de saneamento

Autor

  • Caio Freitas

    é advogado da Saneamento de Goiás S/A (Saneago) com atuação especializada em Direito Regulatório e das Concessões especialista em Direito Civil e Processo Civil e em Direito Ambiental e aluno do MBA em Saneamento do IDP.

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13 de dezembro de 2022, 7h09

A Lei nº 14.026/20 continua sendo amplamente debatida no meio jurídico, especialmente no âmbito dos tribunais. Conhecida como o "novo" Marco Legal do Saneamento Básico, ela promoveu profundas alterações na Lei nº 11.445/07, que estabelece as diretrizes nacionais para o setor.

As mudanças se deram em três eixos principais: (1) uniformização da regulação do setor, concentrando na Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) a competência para publicar normas de referência, a serem seguidas pelos entes reguladores infranacionais; (2) regionalização, incentivando a formação de grupos de municípios para organização e prestação do serviço, a fim de promover ganho de escala e atrair potenciais interessados; e (3) extinção das prestações do serviço por contratos de programa pelas companhias estaduais de saneamento, obrigando os municípios a celebrar unicamente contratos de concessão com os prestadores, precedidos de licitação na modalidade concorrência.

No entanto, muitos pontos da lei ainda causam dúvidas nos profissionais do Direito que precisam lidar com o seu conteúdo e nos próprios players do mercado, dada a complexidade do tema e o grande impacto social, econômico e financeiro que uma ou outra interpretação pode gerar.

Uma das discussões mais relevantes que vem sendo travada no contexto do "novo" marco regulatório é: com o encerramento dos contratos de concessão e/ou de programa firmado pelos municípios com as companhias estaduais de saneamento, como ficam as indenizações devidas aos prestadores pelos bens reversíveis afetados ao serviço e pelos investimentos não amortizados? Ela deve ser feita previamente à transferência do serviço?

A discussão é relevantíssima, pois coloca de um lado os atuais prestadores, compostos majoritariamente pelas empresas estatais de saneamento, e os operadores privados, em conjunto com os municípios, que não desejam assumir esse ônus.

Um olhar mais atento ao Direito revelará, contudo, que tais indenizações, além de devidas, deverão ser pagas previamente à transferência dos atuais prestadores.

A começar pela Constituição, ela preconiza que a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição (artigo 5º, inciso XXIV).

A desapropriação, portanto, é prévia e em dinheiro, exceto algumas poucas hipóteses em que a Lei Maior desobriga o pagamento, como no caso de propriedades urbanas e rurais nas quais ocorra o plantio de plantas psicotrópicas ou exploração de trabalho escravo (artigo 243). A desapropriação dos bens do concessionário em favor do Poder Concedente segue a regra, não se enquadrando nas hipóteses constitucionais de não indenização.

Marçal Justen Filho explica [1] que a reversão dos bens afetados ao serviço ao Poder Concedente, no término da concessão, é uma modalidade de desapropriação, que exige, portanto, a prévia e justa indenização em dinheiro ao concessionário.

O ordenamento jurídico, no entanto, nos dá mais elementos para reforçar essa conclusão.

A Lei Federal nº 8.987/95, editada pela União no exercício de sua competência privativa para legislar sobre normas gerais sobre contratos administrativos (artigo 22, inciso XXVII), trata da prestação de serviços públicos sob regime de concessão e permissão.

Essa lei prevê, em seu artigo 36, que a reversão dos bens ao Poder Concedente, no termo do contrato, ocorrerá com a indenização das parcelas dos investimentos vinculados a bens reversíveis, ainda não amortizados ou depreciados, que tenham sido realizados para garantir a continuidade e atualidade do serviço concedido.

Uma análise do dispositivo acima, conjugada com o artigo 35, § 4º, da mesma lei, revela que esse pagamento também deverá ser prévio, pois o poder concedente deve se antecipar ao término do contrato para proceder aos levantamentos e avaliações necessários à determinação dos montantes da indenização que será devida ao concessionário.

Por óbvio, somente haverá necessidade de adoção de tais providências antes do encerramento contratual para que, no advento do termo, seja feita a liquidação da indenização eventualmente devida ao prestador.

A previsão no § 2º do artigo 35, ao mencionar que, na extinção da concessão, haverá a imediata assunção do serviço pelo poder concedente, não afasta essa conclusão, mas a reforça. Isso porque o dispositivo determina que, com a assunção do serviço, se proceda aos levantamentos, avaliações e liquidações necessários. Por liquidação, entende-se o "ato ou efeito de liquidar", "operação que tem por fim o acerto de contas; pagamento; resgate; liquidação de dívida" [2].

Tendo o poder concedente adotado as providências preliminares a que alude o § 4º do artigo 35, quando a extinção se consumar ocorrerá o pagamento da indenização eventualmente apurada, de acordo com o § 2º. O pagamento se efetivará, portanto, antes da assunção do serviço.

No entanto, em se tratando de saneamento básico, não se pode perder de vista que há legislação setorial específica, qual seja, a Lei nº 11.445/07, recém-reformada pela já citada Lei nº 14.026/20.

Embora tenha inserido regras que favoreçam a maior participação do setor privado na prestação dos serviços de saneamento, o legislador, de forma prudente, inseriu norma de transição para proteger os ativos dos atuais prestadores de expropriações indevidas.

O artigo 42, § 5º, da Lei nº 11.445/07, com a redação conferida pela Lei nº 14.026/20, dispôs que a transferência de serviços de um prestador para outro será condicionada, em qualquer hipótese, à indenização dos investimentos vinculados a bens reversíveis ainda não amortizados ou depreciados, nos termos da Lei nº 8.987/95, facultado ao titular atribuir ao prestador que assumirá o serviço a responsabilidade por seu pagamento.

Enfatizo o termo "em qualquer hipótese", que inova sobre o assunto em relação à Lei nº 8.987/95.

A Lei nº 8.987/95 traz seis hipóteses de extinção dos contratos de concessão: a) encerramento de prazo; b) encampação; c) caducidade; d) rescisão; e) anulação; e f) falência ou extinção da empresa concessionária. A encampação e a caducidade se constituem hipóteses de encerramento prematuro do contrato, a primeira por interesse público, a segunda por culpa do contratado. Por isso mesmo, a lei dispensou o pagamento de indenização prévia no caso de caducidade (artigo 38, § 4º), mas o exigiu para os casos de encampação (artigo 37).

Para as demais hipóteses de extinção, a Lei nº 8.987/95 não disciplinou de forma expressa o momento do pagamento dessa indenização, gerando infindáveis debates sobre o tema. No tocante ao advento do termo contratual, como já citado, entendo que o pagamento deverá ser prévio, na análise conjugada do artigo 35, §§ 2º e 4º, e 36.

Contudo, a Lei nº 14.026/20 fixou uma regra específica para o saneamento básico: em qualquer hipótese de extinção do contrato — todas as seis hipóteses da Lei nº 8.987/95 — a transferência da operação depende de prévio pagamento da indenização referente aos investimentos ainda não amortizados. Seja por vencimento de prazo, seja por encampação, ou até mesmo por caducidade, a regra incide de maneira uniforme.

Para o saneamento não há exceção: só há retomada com pagamento de indenização, independentemente do motivo que dê amparo à transferência do serviço.

Essa regra visa garantir que a transição entre os modelos de prestação se dê de forma tranquila, obrigando os titulares a promoverem os pagamentos devidos aos atuais prestadores antes de se alterar o concessionário. Por outro lado, protege o patrimônio dessas companhias, que se constitui também patrimônio público, considerando serem elas em sua maioria controladas pelos estados da federação.

Como já alertaram os professores Floriano de Azevedo Marques Neto, Egon Bockmann Moreira e outros [3]:

Contratos de concessão de serviço público não envolvem desembolso de verbas públicas (ao contrário do que se passa nas empreitadas de obras), mas investimentos privados de longo prazo. O edital de licitação convoca investidores a fazerem aportes significativos de recursos privados em obras e serviços públicos, geralmente nos primeiros anos de contrato. Em contrapartida, a lei garante que tais investimentos sejam remunerados ao longo do contrato.

Num cenário deste tipo, a segurança jurídica é peça-chave: se os investidores tiverem dúvidas quanto ao cumprimento dos seus contratos e à possibilidade de terem os seus investimentos remunerados ao longo do tempo, eles evitarão participar das licitações. Ou cobrarão preço mais elevado. Isso acarreta o sacrifício do "bem comum", traduzido em mais investimentos, melhores serviços e na prestação adequada de serviços de interesse coletivo.

Oportuno relembrar que se aplica o regime jurídico das concessões aos contratos de programa firmados pelas companhias estaduais com os municípios, à luz do artigo 13, § 1º, da Lei nº 11.107/2005 (Lei dos Consórcios Públicos).

As companhias estaduais de saneamento, embora empresas estatais, se submetem ao mesmo regime jurídico concessório aplicável aos prestadores privados. Os seus investimentos devem ser tão protegidos quanto os feitos pelo setor privado, sob pena de ofensa à isonomia.

E aqui cabe um adendo: as tais indenizações advém do volume de investimentos feitos por essas companhias em operações muitas vezes deficitárias (cuja receita não é suficiente sequer para pagar o custo operacional), sustentadas pelo subsídio cruzado, no qual as receitas de municípios maiores e mais lucrativos eram direcionadas para investimentos em municípios menores e sem capacidade de gerar lucro, mediante a cobrança de uma tarifa uniforme para todos. Esse regime de prestação tinha previsão expressa na Lei nº 11.445/07 antes do advento da Lei nº 14.026/20.

Com o encerramento dos prazos dos contratos vigentes nessas localidades, a apuração econômico-financeira aponta, obviamente, para um considerável volume de investimentos não amortizados, pois a receita gerada por aquele contrato não cobre nem mesmo o custo de manutenção do sistema, quiçá investimentos em expansão de rede, melhoria tecnológica, construção de estações de tratamento de água e esgoto, etc.

O STF já enfrentou temática semelhante ao julgar a ADI nº 1.746/SP, rechaçando dispositivo da Constituição do Estado de São Paulo que diluía no tempo o pagamento de indenização à Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) nos casos de encerramento de seus contratos sem amortização dos investimentos realizados e dos bens revertidos, contrariando a necessidade de se promover referidos ressarcimentos previamente.

Destaco, por fim, a parte final do mencionado § 5º do artigo 42 da Lei nº 11.445/07, alterado pela Lei nº 14.026/20. O dever de pagar a indenização pode, caso o município assim decida, ser transferido para o prestador que assumirá o serviço. Trata-se de possibilidade trazida pela lei que reforça o direito de os atuais prestadores serem remunerados pelos investimentos que não puderam recuperar via tarifa, além de desonerar os municípios desse ônus e facilitar a transição de operações.

Ao se admitir a transferência desse encargo ao novo prestador, o legislador agiu bem, pois considerou o cenário fiscal crítico dos municípios, que dificilmente teriam condições de arcar com esses custos. Por outro lado, os atuais prestadores escapam do pagamento via regime de precatórios pelos municípios, o que, na prática, significaria calote certo, ante o procedimento extremamente dificultoso para o recebimento de créditos perante a fazenda pública e o já citado cenário de crise fiscal.

No entanto, vislumbra-se que, na prática, alguns municípios não estão inserindo essa obrigação em seus editais de licitação, recusando-se a fazê-lo mesmo quando interpelados pelos atuais prestadores ou por órgãos de controle. Essa atitude, além de indicar clara intenção de calote, atrairá para os entes municipais os ônus dessa má escolha administrativa, pois onerará ainda mais o já combalido orçamento municipal da maioria dos municípios brasileiros.

Por fim, sobre o assunto, destaco que se encontra em período de colheita de contribuições perante a Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA) a Consulta Pública nº 008/2022 [4], que trata da minuta da norma de referência de indenização de ativos para os segmentos de água e esgoto.

Em flagrante contrariedade à Constituição e às Leis 8.987/95 e 11.445/07, a minuta prevê, em seu artigo 16, que os investimentos feitos nos contratos de prestação de serviços de saneamento serão considerados integralmente amortizados ou depreciados até o término do prazo contratual, e por isso não serão objeto de indenização. A minuta cria uma presunção absoluta de que, ao término do prazo, os investimentos estarão todos amortizados, o que viola a legislação que rege a matéria.

Seria razoável a fixação de uma presunção relativa de amortização, com atribuição ao prestador do ônus de demonstrar o contrário. Da forma como proposta, a minuta padece de evidente inconstitucionalidade/ilegalidade e, se aprovada nesses termos, será certamente alvo de questionamentos judiciais.

A mesma linha de raciocínio se aplica ao artigo 20 da minuta, que retira do montante indenizatório os investimentos feitos pelos prestadores após o vencimento do prazo contratual. As Leis 8.987/95 e 11.445/07 tratam com clareza do assunto, deixando evidente o direito de os prestadores serem indenizados pelos investimentos não amortizados, sem exceção. A controvérsia gira em torno do momento que deve ocorrer tal pagamento, mas o direito ao pagamento em si é inconteste na lei.

Assim, é digno de preocupação uma minuta de norma de referência, ato administrativo infralegal, estabelecer regra destoante da lei em sentido estrito, extrapolando a olhos vistos o poder regulamentar, o que, reforço, poderá ser questionado judicialmente caso seja mantido na redação final do texto aprovado.

A Lei nº 14.026/20, ante o seu pouco tempo de vigência, ainda não foi submetida ao crivo do Superior Tribunal de Justiça, em especial quanto ao ponto ora discutido. Espera-se que o STJ pacifique as interpretações que destoem do aqui exposto, em nome da segurança jurídica e pelo respeito à coisa pública.

Portanto, não restam dúvidas de que, no setor de saneamento básico pós "novo" marco legal, a transferência do prestador de serviços depende, obrigatoriamente, do pagamento de indenização pelos investimentos feitos pelos atuais prestadores e que não foram amortizados ao longo do contrato, independentemente do modo de encerramento do vínculo contratual. Trata-se de respeito à segurança jurídica, à coisa pública e à boa-fé nos negócios, públicos ou privados.

Autores

  • é advogado da Saneamento de Goiás S/A (Saneago) e especialista em Direito Regulatório e das Concessões, em Direito Civil e Processo Civil e em Direito Ambiental.

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