Opinião

PL 3.401/08: duro golpe na luta contra a inadimplência

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11 de dezembro de 2022, 7h07

O Projeto de Lei 3.401/08, aprovado pela Câmara e que segue agora para sanção presidencial, representa evidente anacronismo com o ordenamento atual. Desconsidera a elevada taxa de congestionamento dos processos de execução e a grande dificuldade de recuperação de crédito, assim como os novos instrumentos societários e o avanço tecnológico que permitem uma constante inovação na identificação dos atos abusivos e fraudulentos entre os devedores que se utilizam do véu da personalidade jurídica como forma de blindagem patrimonial.

De acordo com o relatório Justiça em números de 2022, produzido pelo Conselho Nacional de Justiça, tanto o processo de execução fiscal, quanto o não fiscal, representam altíssimas taxas de congestionamento. Respectivamente, 89,7% e 87,9%. Dentre as razões apontadas quanto ao congestionamento da recuperação de crédito fiscal, e que pode se estender à execução privada, está o fato de que "(…) o processo judicial acaba por repetir etapas e providências de localização do devedor ou patrimônio capaz de satisfazer o crédito tributário já adotadas, sem sucesso" [1]. Limitar o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, e permitir que devedores que se beneficiam de eventual ato abusivo, valendo-se de procedimentos burocratizantes previstos no analisado PLC para que não sejam responsabilizados, só irá agravar o problema da morosidade judicial já muito estruturado.

O PLC sequer se justifica por algum debate evolutivo. Ao contrário, representa discussão caduca, já que, desde o seu surgimento, em 2008, não sofreu qualquer alteração, quando, de lá para cá, outras legislações amplamente discutidas e mais recentes foram promulgadas com a finalidade de tornar a desconsideração da personalidade jurídica um instituto mais eficaz e seguro para as partes envolvidas. Um bom exemplo se enxerga das disposições constantes dos artigos 133 a 137 do Código de Processo Civil de 2015, e da alteração ao artigo 50 do Código Civil (CC) promovido pela Lei nº 13.874/2019, a chamada Lei da Liberdade Econômica. Esta, aliás, teve por finalidade viabilizar o livre exercício da atividade econômica e a livre iniciativa, isto é, garantir a autonomia do particular para empreender em ambiente que lhe propicie o máximo de segurança e transparência. Disso já se percebe a necessidade de mecanismos adequados que coíbam atos fraudulentos e, consequentemente, da famigerada blindagem patrimonial. A explicação é um tanto quanto óbvia: se se dificulta a recuperação de crédito pela ocultação patrimonial de devedores, a taxa de juros tende a ser majorada como uma compensação pelo risco da atividade para a concedente de crédito.

O processo de execução, diferentemente do de conhecimento, "em que a finalidade é o acertamento do direito, que pode favorecer autor ou réu, indistintamente, na execução há apenas uma finalidade: a satisfação do credor" [2]. Ato contínuo, a desconsideração da personalidade jurídica, em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, é medida natural para o resultado do processo de execução e pode ser aplicada de plano. O novo projeto de lei, porém, é um golpe certeiro contra a finalidade do processo de execução — satisfazer um direito já reconhecido.

Isso no que toca a questão material, haja vista que, sob a ótica processual, o projeto possui caráter meramente protelatório e desnecessário. Analisemos a redação da lei. Em primeiro, o artigo 2º: "A parte que postular a desconsideração da personalidade jurídica ou a responsabilidade pessoal de membros, de instituidores, de sócios ou de administradores por obrigações da pessoa jurídica indicará, necessária e objetivamente, em requerimento específico, quais os atos por eles praticados que ensejariam a respectiva responsabilização, na forma da lei específica, o mesmo devendo fazer o Ministério Público nos casos em que lhe couber intervir no processo".

A afirmação é óbvia. Não pode um magistrado entender pela desconsideração da personalidade jurídica se o abuso, caracterizado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial, não foi evidenciado no requerimento da parte credora. Os atos praticados em questão, que ensejariam a responsabilização pela via da desconsideração, devem constar, necessariamente, de forma objetiva para que o juiz profira sentença baseada em argumentos factíveis a tanto.

A própria terminologia utilizada na lei — necessária e objetivamente —, é subjetiva. Afinal, cada magistrado pode interpretar de forma diversa o que vem a ser eventual caráter objetivo que a parte deve respeitar quando enumerar os atos abusivos praticados por determinado membro, instituidor, sócio ou administrador. E assim deve ser. O juiz é quem poderá, a partir do seu convencimento, decidir pela desconsideração ou não, a depender dos fatos e argumentos trazidos por ambas as partes. Nesse sentido, não é sinalizado avanço na aprovação do dispositivo legal em comento.

A redação é ainda problemática pelo fato de que, por vezes, a fraude não é possível de ser comprovada ato a ato. Por vezes, a abusividade é tal encobertada a ponto das relações comerciais se mostrarem formalmente perfeitas. Não é por outra razão que, tratando-se de reparação cível, a métrica da prova adotada no mundo sai da esfera da não a prova cabal, mas da preponderância de evidência. Exigir que vítima distribua o pedido de desconsideração da personalidade jurídica — sob pena de indeferimento liminar da petição —, já com a prova cabal do errado cometido, exigindo a comprovação do ato abusivo de forma específica, é o mitigar em larga escala a eficácia da Desconsideração da Personalidade Jurídica.

Disso já se percebe a inconstitucionalidade do PLC. Por força do artigo 5º, XXXV, a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Assim, mesmo que não haja prova cabal e objetiva do ato abusivo, se constatada a ilegalidade durante o curso do incidente, a exemplo da produção de prova pericial, momento em que, por vezes, é que se poderá abrir a caixa preta da fraude, a desconsideração deverá ser decretada.

O artigo 3º do PLC, que determina que o juiz estabelecerá o contraditório antes de decidir pela desconsideração, assegurando o prévio exercício da ampla defesa, detém caráter desnecessário e repetitivo. Não apenas é direito constitucionalmente posto, mas o contraditório já é reconhecido nos processos de desconsideração de personalidade jurídica de forma específica. Em verdade, não se decide sobre a desconsideração da personalidade jurídica senão após a citação do sócio ou da pessoa jurídica, assim como após a produção de provas, caso as partes entendam pela sua necessidade. Trata-se dispositivo já consolidado no artigo 135 do CPC/15.

A redação é, de forma desnecessária, repetida no artigo 3º, caput, e no §2º, do novo projeto de lei. Em mesmo sentido caminha o artigo 4º. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica, por força do artigo 133, CPC/15, e do artigo 50, CC, será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público (MP), e não de ofício do juiz. Esse só poderá decretar a desconsideração mediante requerimento. Assim, quando o artigo 4º do PLC postula que "O juiz não poderá decretar de ofício a desconsideração da personalidade jurídica", entendemos que a afirmação já é decorrente de interpretação de lei vigente.

O artigo 5º do projeto de lei, de forma diversa, entra em clara contradição com disposições materiais e processuais civis. É inviável que o juiz somente possa decretar a desconsideração da personalidade jurídica ouvido o Ministério Público, em toda e qualquer situação tal qual posto no novo projeto. Tanto pelo artigo 133, CPC/15, quanto pelo artigo 50, CC, a atuação do MP é restrita apenas a quando lhe couber intervir no processo.

Em verdade, a sua finalidade contraria a própria função do Ministério Público. Mesmo que pela cláusula residual do artigo 129, IX, CF, seja permitido ao MP exercer outras funções que lhe forem conferidas, essas não podem ser incompatíveis com a sua finalidade de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis [3]. O MP não deve ser obrigado a atuar em causas que não representem os valores que lhe são concebidos constitucionalmente — v.g., quando é demonstrado mero interesse patrimonial disponível de particular, sem tangenciar eventual fragilidade quanto à interesses sociais e individuais indisponíveis.

Ao se exigir a atuação do MP, cuja atividade é altamente comprometida pela carga gigantesca de competências já a si reservadas em proveito da coletividade e não de mero interesse particular, o PLC vai de encontro com o objetivo da Lei de Liberdade Econômica, ao invés de evitar maior desgaste para os particulares com burocracias e intervencionismo que só retardariam ainda mais o procedimento. Logo, uma vez que é demonstrado interesse eminentemente patrimonial e disponível de particular, a atuação do MP deve ser dispensável.

Além de trazer nova função ao MP, que inclusive pode desviar da sua finalidade constitucional, também ocasionará em um maior congestionamento dos processos de execução. Isso gera prejuízo não apenas aos credores, mas à própria atuação e estrutura jurisdicional. O advogado e professor João Miguel Medina faz interessante paralelo: "o artigo 178, parágrafo único, do Código de Processo Civil de 2015, fazendo coro a antiga jurisprudência, dispõe que nem mesmo a participação da Fazenda Pública no processo, por si só, faz com que se apresente interesse público a exigir a intervenção do Ministério Público. Mas, se sancionado o projeto de lei, o Ministério Público obrigatoriamente deverá intervir no incidente de desconsideração da personalidade jurídica, apesar da evidente ausência de interesse público ou social nesse caso" [4].

Ainda quanto ao caput, a segunda parte do enunciado é também contrária ao avanço da jurisprudência sobre a desconsideração da personalidade jurídica. Como antes apontado, o projeto parece desperceber o avanço tecnológico e a constante inovação dos atos societários. O ministro Massami Uyeda, ao acompanhar voto da então relatora ministra Nancy Andrighi, ainda no ano de 2011, discorreu:

"Se olharmos a história da criação desse instituto, que vem do Direito norte-americano do século 19, ali, para poder caracterizar, vamos dizer, o disregard, era uma manobra simplória, mas a evolução da interpretação dos institutos chegou à necessidade de coibir essas manobras que, na verdade, acobertam intenções manifestamente […] e prejudiciais aos credores. E, aqui, estamos vendo, em época de tecnologia, de transferência de valores, de dados, em tempo real, a caracterização da constituição de empresas aparentemente autônomas, mas que, na raiz, no fundo, acabam tendo a participação das mesmas pessoas físicas que estão se alterando, no sentido de dizer que não têm essa participação, que são meras operações normais. Então, é uma grande oportunidade de analisarmos este caso, será até mesmo um paradigma, um leading case, porque é muito complexo, mas mostra o mecanismo em que se engendram essas operações. O véu com que se pretendia dar a aparência de legalidade para não se caracterizar a desconsideração foi afastada, e o cerne dessa teoria do disgread é exatamente afastar o véu de uma aparente normalidade" [5].

Mais de dez anos após esse entendimento ser posto, de forma magistral e visionária, temos o PLC 69/14 sendo aprovado na Câmara, representando claro retrocesso. Isso porque, ao postular que é vedada a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica por interpretação extensiva, desconsideramos eventuais mudanças tecnológicas que hão de ocorrer — com maior velocidade em relação aos avanços legislativos.

A própria possibilidade de haver desconsideração da personalidade jurídica entre empresas coligadas seria vedada. Que dirá quanto aos negócios firmados através de smart contracts, com uso de tecnologia blockchain e registrados através da tokenização. Pelo voto da relatora, proferido há mais de dez anos, já era possível constatar a necessidade de uma interpretação extensiva do instituto da desconsideração:

"Para as modernas lesões, promovidas com base em novos instrumentos societários, são necessárias soluções também modernas e inovadoras. A desconsideração da personalidade jurídica é técnica desenvolvida pela doutrina diante de uma demanda social, nascida da praxis, e justamente com base nisso foi acolhida pela jurisprudência e pela legislação nacional. Como sói ocorrer nas situações em que a jurisprudência vem dar resposta a um anseio social, encontrando novos mecanismos para a atuação do direito, referida técnica tem de se encontrar em constante evolução para acompanhar todas as mutações do tecido social e coibir, de maneira eficaz, todas as novas formas de fraude mediante abuso da personalidade jurídica" [6].

Aprovar a vedação, na realidade hoje vivenciada, seria um grande desrespeito com a jurisprudência que vem se desenhando em sentido contrário, assim como com a segurança jurídica tão necessitada para os credores de ter seu crédito satisfeito.

O §2º do artigo em comento é tão desnecessário como os outros dispositivos enumerados acima. Em suma, dispõe que, quando ausentes os pressupostos legais, a desconsideração da personalidade jurídica é desautorizada. A ideia de pressupostos legais é justamente o que, previsto em lei, deve preexistir para ser autorizada a medida pleiteada. Pelo próprio artigo 50, CC, os pressupostos legais estão bem esclarecidos, e, por óbvio, não será decretada a desconsideração da personalidade na sua ausência. Idêntica proposição já se observa do §4º, artigo 134, CPC, que "O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica".

O artigo 6º, mesmo após todo o exposto, talvez seja a disposição de maior prejuízo à segurança jurídica e ao bom funcionamento do Direito Civil. Pelo seu enunciado, os efeitos da decretação da desconsideração da personalidade jurídica não atingirão os bens particulares de membro, instituidor, sócio ou administrador que não tenha praticado ato abusivo da personalidade em detrimento dos credores da pessoa jurídica e em proveito próprio — mesmo que beneficiado pelo ato. Isto é, aquele que veio a ser beneficiado pelo ato, mas sem praticá-lo, sairia impune; o mesmo ocorreria para aquele que praticou o ato, mas sem que fosse explicitamente beneficiado. Em suma, a norma incentivaria a prática de meios fraudulentos praticadas em favor de "laranjas".

Além de se fundamentar em concepção subjetiva para o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, ainda mais grave é a alteração que se pretende dar ao inciso I, §2º, artigo 50, CC, que entende que pode configurar confusão patrimonial — e ensejar, portanto, a desconsideração da personalidade jurídica — quando houver cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa. Se prevalecer a solução apontada pelo PLC, o patrimônio do sócio beneficiado pelo ato abusivo, que não seja autor do ato, não será atingido.

Convenhamos, um administrador pode transferir bens da empresa para um determinado sócio que, por não ter praticado o ato abusivo, não poderá responder pelo seu patrimônio. Encontrar bens para responderem pela dívida, se já é tarefa árdua, muito pior será com a "inovação" legal apresentada. Como se percebe, não há qualquer harmonia com a legislação hodierna, principalmente após aprovada a Lei de Liberdade Econômica, que visa garantir um fluxo liberal e autônomo às partes contratantes.

O artigo 7º tenta definir fraude à execução, o que já é melhor colocado no Código de Processo Civil, pelo artigo 792. A redação do novo projeto é resumida pelo artigo 792, IV, que também engloba os casos de desconsideração da personalidade jurídica. Também é sabido que cabe a doutrina delimitar, de forma mais precisa, os conceitos postos em lei. O dispositivo é, mais uma vez, meramente protelatório e, novamente, vai de encontro com o espírito da Lei da Liberdade Econômica.

Já o artigo 8º confirma para todos os efeitos que o PLC trata especificamente de norma processual, uma vez que impõe a sua imediata aplicação "a todos os processos em curso perante quaisquer dos órgãos do Poder Judiciário, em qualquer grau de jurisdição". E por ser norma de cunho processual, a inconstitucionalidade do PLC já seria questionável, uma vez que não originado o projeto a partir do Poder Executivo.

Além disso, a falta de vacatio legis é temerária, dado o fato de que o artigo 6º altera os ditames do incidente de desconsideração da personalidade jurídica em larga escala. Também quanto ao artigo 5º, caput, que mudará diversas teses quanto à aplicação extensiva do incidente e que determinará a atuação do MP em todo e qualquer incidente em cotejo.

Infelizmente, até mesmo pela falta de um melhor debate do PLC perante a sociedade civil e especialistas na matéria, o que não se viu quando colocado em votação nas casas do Poder Legislativo, espera-se que a situação agora possa ser remediada pelo integral veto presidencial. A legislação brasileira, em verdade, já sofre pelo fato de deter disposições protelatórias e repetitivas, dificultando o seu estudo e a aplicação prática.

Precisamos de medidas que assegurem maior recuperabilidade do crédito, não o contrário. O crescimento do Brasil depende de um ambiente seguro para o crédito. Atualmente, sofremos com uma das piores taxas mundiais de recuperabilidade do crédito. E isso foi mensurado. Atualmente, de acordo com o relatório mais recente Doing Business publicado pelo Banco Mundial. A título de exemplo, a taxa de recuperação de crédito no Brasil está em 12,7 centavos por dólar, já nos mercados da América Latina a taxa é de 30,8 centavos por dólar e, entre os países da OCDE, a taxa é de 71,72 centavos por dólar. A diferença, como se percebe, é gritante e repercute no grau de confiança de investimento no país.

Em tempos de retomada econômica e de constante avanço tecnológico, é inviável que a legislação caminhe em sentido conservador. Delimitar a aplicação do incidente da desconsideração da personalidade jurídica é reter, ainda mais, a circulação de capital e a firmação de negócios jurídicos. Pior: tende a premiar o devedor sofisticado, com recurso para investir em estruturas de ocultação patrimonial através de interpostas pessoas, o que poderia impedir a desconsideração da pessoa jurídica nos termos do PLC.


[2] ALVIM, Eduardo Arruda. Direito processual civil. 6ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 1869.

[3] Em mesmo sentido: "Importante ressaltar, novamente, que o rol constitucional é exemplificativo, possibilitando ao Ministério Público exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade constitucional" (MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 36ª ed. São Paulo: Atlas, 2020. P. 1127.)

[5] STJ, REsp 1.259.020-SP, 3ª T., j. 09.08.2011, trecho do voto do min. Massami Uyeda

[6] STJ, REsp 1.259.020-SP, 3ª T., j. 09.08.2011, trecho do voto da relatora, ministra Nancy Andrighi.

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