Tribunal do Júri

A soberania do veredicto absolutório no Tribunal do Júri e a (im)possibilidade recursal

Autor

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

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20 de agosto de 2022, 8h00

O veredicto dos jurados é uma decisão judicial e política, emanada por aquele que detém constitucionalmente o status de soberano: o povo. Esta é uma das razões pelas quais praticamente em todos os lugares, o veredicto do júri é uma decisão irrecorrível.

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Com base nesta consideração, o recurso pode ser analisado por duas vertentes. A primeira, a impugnação de vícios ou violações de preceitos estabelecidos na Constituição e outra, inaceitável, quando o objetivo é impugnar as razões de fato que levaram os juízes leigos a ditar tal veredicto [1].

Aqui entramos em uma zona de alta tensão e intenso debate entre juristas, do qual o julgamento da matéria pela possibilidade ou não de impugnar um veredicto absolutório será apreciado pela Supremo Tribunal Federal no ARE 1225185, cuja sessão está prevista para ocorrer no dia 25 de agosto.

Antes de apontarmos as razões pelas quais tal veredicto não deve ser objeto de recurso, convidamos o leitor a uma breve reflexão: é fato que tanto nos países de civil law como nos de common law, desde a época da Roma Antiga é reconhecida a regra que impede a persecução múltipla. Na common law, inclusive, os acusadores não possuem a possibilidade de recorrer de decisões absolutórias por parte dos jurqados. Em Green v. United States (1957), um importante leading case, destacou-se que "assim, é um dos princípios elementares de nossa lei penal, pois o Go­verno não pode promover um novo julgamento por meio de um recurso, mes­mo que a absolvição possa parecer errada" [2].

A partir disso, por que no Brasil consolidou a ideia de viabilizar o recurso em casos de decisões absolutórias? Considerando a grande vantagem procedimental e de estrutura da acusação, uma absolvição não significa que o acusado precisa ter esta decisão reconhecida? A soberania do júri, como uma garantia constitucional, não se materializa com este tipo de decisão?

Nos Estados verdadeiramente democráticos, o veredicto dos representantes da sociedade impede eventuais recursos que visam rediscutir o mérito da decisão absolutória, eis que esta regra está "embasada em uma determinação de valor fundamental de nossa sociedade de que é muito pior condenar um inocente do que deixar um culpado em liberdade" [3]. Aliás, a dignidade e liberdade da pessoa humana deve prevalecer sobre o direito de punir.

Adentrando na questão diretamente pelo âmbito das cortes superiores, o ministro Rogério Schietti Cruz do STJ, em um de seus votos destaca que, ao menos em relação à absolvição do acusado, a decisão dos jurados é soberana e não pode ser revisada pelos juízes através de recursos da acusação [4]. Na mesma linha, o ministro do STF, Celso de Mello, faz um destacado apontamento sobre a soberania do veredicto absolutório do júri, mesmo quando o jurado absolve pelo quesito genérico:

"[…] entendo assistir plena razão à parte impetrante, no ponto em que sustenta, corretamente, com base no art. 483, III e respectivo § 2º, do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei no 11.689/2008, que não mais se revela viável a utilização, pelo órgão da acusação, do re­curso de apelação (CPP, art. 593, III, 'd') como meio de impugnação às decisões absolutórias proferidas pelo Tribunal do Júri com apoio na resposta dada pelo Conselho de Sentença ao quesito genérico de ab­solvição penal (CPP, art. 483, III, e respectivo § 2º)" [5].

Por este raciocínio, nas palavras de Julio Maier aprendemos que "[…] o julgamento público ante jurados e a concepção de recursos do acusado contra condenação como garantia processual penal impede conceder à acusação mais de uma oportunidade para perseguir penal­mente até conseguir a condenação, pois a decisão de condenar é tarefa dos jurados. […] o veredicto absolutório do júri impede a utilização dessa fer­ramenta, qualquer que seja a valoração do veredicto (justo ou injusto perante a lei)" [6].

Em artigos anteriores nesta coluna, houve o destaque do sistema de júri argentino [7], apontando a normativa processual daquele país. De acordo com Andrés Harfuch et al., a proibição do recurso do ministério público ou assistente de acusação contra uma decisão absolutória foi estabelecida na Argentina em dois casos fundamentais: Alvarado (1998) e Sandoval (2010). Tal proibição vale tanto para decisões que provenham de juiz técnico ou de um jurado popular, pois ambas violariam a garantia ne bis in idem [8].

A Corte IDH no caso Roche Azaña vs. Nicaragua (2020) [9] responsabilizou aquele Estado por considerar a violação aos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial da família Roche Azaña, por não terem sido informados da existência do processo penal contra os acusados, impossibilitando-os de participar e ter acesso às diversas etapas. Mesmo assim, foi mantida a absolvição dos réus, de acordo com o que dispõe os tratados direito humanos e outros julgados da Corte IDH [10].

Contrariamente ao que alguns ventilam, isso não é autorizar uma absolvição arbitrária, mas, sim, indicar o que está claro nos pactos internacionais e entender o conceito de soberania dos veredictos. Se os jurados absolvem, o fazem por algum motivo, e essa valoração deve estar devidamente identificada através do seu instrumento decisório: os quesitos.

A regra que prevalece quase que universalmente é que o veredicto absolutório em um caso penal é final e conclusivo e, portanto, não pode ser celebrado um novo julgamento [11]. O Brasil, diferentemente do que previsto em diversos outros países cuja legislação é fonte de inspiração, insiste na discussão sobre a viabilidade ou não desse recurso. Para se ter um fair trial, a acusação não pode recorrer ante um veredicto absolutório, tentando distorcer ou ignorar o que estipulam claramente os pactos internacionais, a Corte IDH e legislações de diversos países.

Para além da questão da adequação do nosso sistema aos tratados internacionais e, trazendo para a realidade brasileira, onde ainda se permite recorrer de algumas decisões absolutórias do júri, a questão também deve ser analisada sob outro aspecto: a tipicidade processual através das hipóteses cabíveis do recurso contra a decisão proferida no julgamento pelo júri.

A relação de tipicidade processual e de proteção faz referência à "tarefa de aplicar o direito às situações concretas não realizadas aleatoriamente pelos órgãos estatais; ao contrário, a atividade processual também é regulada pelo ordenamento jurídico, através de formas que devem ser obedecidas pelos que nela intervêm. Nesse sentido, afirma-se que o processo exige uma atividade típica, composta de atos cujos traços essenciais são definidos pelo legislador. Assim, os participantes da relação processual devem pautar o seu comportamento segundo o modelo legal, sem o que essa atividade correria o risco de perder-se em providências inúteis ou desviadas do objetivo maior, que é a preparação de um provimento final justo" [12].

Em uma rápida leitura das quatro alíneas do artigo 593, III, CPP há clara identificação do cabimento recursal, não havendo espaço para a interpretação extensiva para prejudicar o acusado e inverter a ordem constitucional da soberania. Na primeira alínea o debate se refere à nulidade ocorrida em plenário; na segunda, à decisão do juiz presidente que contraria a decisão do Conselho de Sentença; na terceira o endereçamento quanto a aplicação da pena ou medida de segurança e, apenas na última alínea, o aspecto decisório que contrarie o quadro probatório produzido em plenário.

Para a reflexão em questão, devemos nos manter na última alínea: quando a decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova dos autos.

É a partir desse destaque que conseguimos individualizar o debate processual.

Para exemplificar: na hipótese de absolvição do acusado pelo segundo quesito referente a autoria/coautoria/participação seria possível a acusação manejar — normativamente — o recurso de apelação, na medida em que se torna cabível identificar se os jurados valoraram corretamente a prova ou se a sua decisão se mostrou completamente dissociada do quadro probatório. Repita-se: ultrapassada a adequação do sistema brasileiro aos tratados internacionais, nossa norma processual indica ser cabível o recurso acusatório diante de uma decisão absolutória. Há, pela previsão expressa (593, III, d, CPP), cabimento recursal.

A questão toma rumos mais complexos quando o enfrentamento diz respeito ao quesito genérico. Dois pontos devem ser observados:

1º) se a decisão absolutória foi produzida a partir da discussão sobre o arcabouço probatório;

2º) se os jurados absolveram o acusado sem se pautarem em suporte probatório. Explicamos:

Na primeira hipótese, a tese defensiva está estruturada em uma discussão fática-probatória que condiciona a sua sustentação. Por exemplo, a defesa sustenta a tese de legítima defesa e indica as provas produzidas para este fim. Na concordância com a defesa os jurados absolvem o acusado e, teoricamente, seria possível a impugnação acusatória por eventual decisão manifestamente contrária à prova dos autos. A discussão aqui seguiria em outro rumo: não pelo cabimento do recurso e sim se a opção dos jurados por uma das teses possui baliza probatória mínima e, se possuir, a soberania deve ser respeitada. Vejam que aqui o debate não se resume ao cabimento recursal pela acusação, mas o confronto entre o mérito recursal e a soberania dos jurados a partir da concordância com uma tese exposta pela defesa em plenário.

Mas poderia ser questionado: como conseguimos individualizar a exposição dessa questão? A resposta surge com grau de simplicidade: através do registro em plenário. Deve ser ressaltado que a ata de julgamento serve como guia de enfrentamento das teses e, portanto, deve estar registrado que a defesa (autodefesa e/ou defesa técnica) apenas sustentou a referida tese (legítima defesa).

A segunda questão segue em linha diametralmente oposta. Se o Conselho de Sentença absolve em virtude de uma clemência ou uma decisão humanitária, seja pelo pleito defensivo seja por autonomia decisória (e deve estar também expresso na ata o registro da tese defensiva), daí não há possibilidade recursal tão somente em virtude de previsão legal.

Explicando e exemplificando melhor com casos concretos:

1º) imaginemos que a defesa sustente ausência de provas quanto a autoria, mas ainda que haja a resposta positiva ao segundo quesito (autoria), os jurados absolvem o acusado no quesito genérico. Neste exemplo, houve autonomia decisória do Conselho de Sentença pois não se baseou na sustentação defensiva e muito menos no contexto probatório. O que se identifica neste ponto é a efetivação decisória alheia ao quadro probatório e, portanto, a caracterização da soberania dos jurados.

2º) a defesa sustenta a clemência e os jurados, no mesmo sentido, absolvem o acusado através do quesito genérico.

Para as duas hipóteses anteriores surge a o cerne da reflexão: seria possível recurso pela acusação? A resposta é simples: não, em virtude da ausência de previsão legal.

Rememoremos o artigo 593, III, d, CPP: cabe recurso de apelação quando a decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova dos autos. Mas qual é o quadro probatório que estamos enfrentando? Nenhum! Os jurados absolveram por entenderem que no julgamento em questão não é cabível a condenação. Não há como sopesar valor probatório porque não está em debate elementos de prova. Não há como o tribunal revisional aferir se a decisão dos jurados fora manifestamente contrária à prova se estes não julgaram pelas provas e sim ditando a sua soberania fixada em grau constitucional.

Portanto, é chegada à hora de colocarmos os pingos nos "is" e fixarmos o valor da soberania dos veredictos em contato direto com o princípio da tipicidade processual. Logo, a relação entre a decisão justa e as condições para o seu efetivo exercício está condicionada à legalidade do processo penal [13], o que reforça a ideia da caracterização da tipicidade processual como elemento de proteção e legitimidade do próprio desenvolvimento político e jurisdicional do ato processual [14].

A conclusão segue pela simplicidade da expressão: caso haja absolvição no quesito genérico e obrigatório, sem que ocorra o enfrentamento sobre o quadro probatório pelo juiz natural (jurados), incabível o recurso pela acusação em virtude da simples ausência de previsão legal e do reconhecimento constitucional da soberania dos veredictos.

 


[1] GRANILLO FERNÁNDEZ, Héctor. Juicio por Jurados. Ed. Rubinzal-Culzoni. Bs. As. 2013, p. 101/2.

[2] U.S. Supreme Court – Green v. United States, 355 U.S. 184 (1957).

[3] Trecho mencionado diversas vezes em Patterson v. New York, 432 U.S. 197 (1977)

[4] STJ – REsp 1.677.866/MG – rel. Rogerio Schietti Cruz – j. 7/5/2019.

[5] STF – HC 178.856 – rel. Celso De Mello – 2ª Turma – j. 10/10/2020.

[6] MAIER, Julio. La impugnación del acusador: ¿un caso de ne bis in idem? Ciencias Penales. Revista de la Asociación de Ciencia. Nº 12 (1996) p. 10-15

[8] HARFUCH, Andrés; DEANE, Matías M.; CASCIO, Alejandro; PENNA, Cristian D. La garantía del ne bis in idem y la prohibición del recurso del acusador público o privado contra la sentencia absolutoria. LA LEY, Suplemento Penal y Procesal Penal, n.º 5, Agosto 2020.

[9] Corte IDH – Caso Roche Azaña y otros vs. Nicaragua. Fondo y Reparaciones. Sentencia de 3 de junio de 2020.

[10] Na mesma linha, Corte IDH. Caso J. vs. Perú. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 27 de noviembre de 2013

[11] People v. Coming, 2 N. Y. 9; 49 Am. Dec. 364, and note; 48 Am. St. Rep. 213, 214

[12] GRINOVER, Ada Pellegrini, FERNANDES, Antonio Scarance e GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. 10ª.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 19.

[13] NEVES, António Castanheira. Sumários de Processo Criminal. Coimbra: João Abrantes, 1968, p. 23.

[14] Sobre o tema ver BINDER, Alberto M. O Descumprimento das Formas Processuais. Elementos para uma Crítica da Teoria Unitária das Nulidades no Processo Penal. Trad. Angela Nogueira Pessôa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 6s.

Autores

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro Honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal.

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