Opinião

Em defesa da remição ficta na execução penal

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  • é advogado criminalista formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e discente do programa de pós-graduação em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

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16 de agosto de 2022, 19h37

A remição criminal consiste na subtração do tempo estipulado para o cumprimento da pena atribuída ao condenado em regime fechado ou semiaberto em função do trabalho ou do estudo (126, caput, LEP), não tendo impedimento legal para haver a remição concomitante entre o estudo e o trabalho, apenas devendo haver compatibilidade entre as atividades (126, p. 3º, LEP).

Destaca-se a extensão da remição "como pena efetivamente cumprida para fins de obtenção dos benefícios da execução, e não simplesmente como tempo a ser descontado do total da pena" (STJ, HC n° 167.537).

Cabe ao juiz da execução penal decidir acerca da remição do apenado (artigo 66, III, c c/c artigo 126, p.8, LEP), que visa a reintegração do sujeito ao meio social através, principalmente, da educação e das relações de trabalho, tendo como principal finalidade a "harmônica integração social", motivo pelo qual o instituto deve ser interpretado de maneira ampla [1]. Assim, a pessoa presa em prisão cautelar será amparada pela remição, nos termos do artigo 126, p. 7°, da LEP, devendo ter documentada sua frequência nas atividades, "para fins de declaração judicial após sobrevir a aplicação da pena" [2].

A remição ficta
O parágrafo 4º, do artigo 126, da LEP traz a garantia ao condenado de continuar remindo a sua pena nas hipóteses de estar impedido de trabalhar ou de estudar por razões de acidente, visto que o motivo pelo qual a atividade fora interrompida foi alheio à sua vontade.

Nesse ponto, cabe apontar a discussão acerca da denominada "remição ficta" ou "remição automática", que deveria incidir a partir do não oferecimento, pelo Estado, de condições de estudo e de trabalho para o preso, decorrente da ineficiência dos aparelhos estatais em possibilitar tais atividades nas hipóteses que deveriam ser franqueadas aos apenados. O STF não reconheceu como válida essa forma de remição, averbando a necessidade da efetiva realização das atividades para remir a pena.

"EXECUÇÃO PENAL. HABEAS CORPUS ORIGINÁRIO. REMIÇÃO FICTA OU VIRTUAL DA PENA. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE OU ABUSO DE PODER.
1. A remição da pena pelo trabalho configura importante instrumento de ressocialização do sentenciado.
2. A orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que a remição da pena exige a efetiva realização de atividade laboral ou estudo por parte do reeducando. Precedentes.
3. Não caracteriza ilegalidade flagrante ou abuso de poder a decisão judicial que indefere a pretensão de se contar como remição por trabalho período em relação ao qual não houve trabalho.
4. Habeas Corpus denegado" (STF, HC n° 124.520/RO).

No mesmo sentido, o STJ declara que a "suposta omissão estatal em propiciar ao apenado padrões mínimos previstos no ordenamento jurídico não pode ser utilizada como causa a ensejar a concessão ficta de um benefício", visto que a remição "depende de um real envolvimento da pessoa do apenado em seu progresso educativo e ressocializador" (STJ, HC n° 415.068/MG). Entretanto, esse posicionamento cabe críticas.

O mesmo tribunal que reconhece a inconstitucionalidade do sistema carcerário devido ao superencarceramento, à falta de acesso a direitos básicos e ao tratamento degradante [3], vem contribuindo para estender o tempo de sofrimento na prisão, por conta, mais uma vez, da ineficiência do próprio Estado.

Diante da presente excrescência, defende-se que, em nenhuma hipótese, o apenado possa vir a ser prejudicado por qualquer omissão do Estado em suas obrigações positivas [4], visto que "não há espaço para transação — ou ponderação — se o que está em jogo é a violação ou inadimplemento na prestação positiva de direitos humanos" [5]. Conforme o Marco Aurélio Mello, o reconhecimento da remição ficta apresenta um importante função de

"Sinalizar ao Estado que ele é responsável e não irresponsável, que um ato ilícito, mesmo se tratando de um custodiado, gera efeitos e o efeito ali seria indenizatório, porque o Estado não estaria proporcional ao trabalho, que deságua na remição, não proporcionando causa um dano ao custodiado, inclusive quanto ao retorno dele à sociedade, e a forma de indenizar seria a remição, entre aspas, ficta" [6].

Os Tribunais Superiores já vêm admitindo a interpretação extensiva quanto às modalidades de remição da pena, quando esta for favorável ao apenado e, consequentemente, à sociedade. Admite-se, portanto, a realização de analogia in bonan partem para postular meios, não necessariamente postos em lei, de remir a pena (STJ, HC n° 312486/SP). Desse modo, diante de um cenário de omissão deliberada a acesso a direitos no sistema carcerário, faz-se imprescindível o reconhecimento da remição ficta como possibilidade jurídica.


[1] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: Teoria Crítica. 5ª ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p.318.
[2] VORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Processo Penal e Execução Penal. 14ª ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p.1800.
[3] Conforme o reconhecimento pelo STF, no bojo da ADPF 347, das prisões brasileiras como estado de coisas inconstitucional.
[4] Nessa perspectiva, observa-se o artigo 4º das Regras Penitenciárias Europeias: "as condições detentivas que violam os direitos humanos dos presos não podem ser justificadas pela falta de recursos".
[5] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: Teoria Crítica. 5ª ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p.321.
[6] MELLO, Marco Aurélio. Remição ficta da pena. In: Entrevista ao portal Migalhas, 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-2YWKn-nmhk&t=49s. Acesso em 9 ago 2022.

Autores

  • é estagiário em Direito Criminal no escritório Santiago & Pimentel Advogados, monitor de Prática Penal da disciplina "Estágio Supervisionado IV" na PUC-Rio, discente da graduação de Direito da PUC-Rio e pesquisador no Programa de Educação Tutorial do Departamento de Direito da PUC-Rio.

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