Opinião

Quem não deve não tem: combustíveis, federalismo fiscal e democracia

Autor

  • Fernanda Gonçalves Braga

    é mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Pernambuco LLM candidate na Universidade da Virgínia (EUA) procuradora do Estado de Pernambuco e advogada.

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16 de agosto de 2022, 21h27

"No fundo, no fundo, bem lá no fundo, a gente gostaria de ver nossos problemas resolvidos por decreto, a partir desta data, aquela mágoa sem remédio é considerada nula e sobre ela silêncio perpétuo. Extinto por lei todo o remorso, maldito seja quem olhar pra trás; lá para trás não há nada e nada mais" [1]. A menos que se pretenda encastelar a si mesmo numa realidade ficcional, a poesia de Leminski serve de alerta lírico: há limites para o que é possível produzir na realidade a partir de canetas e dispositivos de lei e é sempre aconselhável olhar para trás de modo a evitar repetir os mesmos erros.

Em 2012, o governo federal tentou, sem sucesso, baixar por decreto o preço da energia elétrica; em 2018, foram anunciadas medidas de redução tributária e "congelamento de preços" para tentar contornar a paralisação de categorias que protestavam contra a alta do preço do óleo diesel.

Nenhum dos problemas estruturais foi resolvido e chegamos a 2022 sem política efetiva de mitigação da dependência do mercado internacional de petróleo, revisão da matriz energética ou consenso sobre reforma tributária. Pior, o novo capítulo dessas improvisadas intervenções econômicas foi o "combustível" que faltava para catalisar a fissura federativa, que se verticaliza entre a União, de um lado, e os Estados e o Distrito Federal, de outro; seja nas disputas envolvendo responsabilidades administrativas e sanitárias, seja nas medidas de populismo fiscal, cuja caridade é sempre feita com o chapéu alheio.

Nas raízes históricas da Federação brasileira está o presságio das dificuldades da adaptação do pacto federal no país. Nossa origem colonial é de centralização e de ausência de interesses comuns entre as capitanias hereditárias, para além da subordinação à coroa portuguesa [2].

Há muitos esforços acadêmicos para encontrar evidências da correlação entre o sucesso político de democracias e o federalismo [3]. Mas, é mesmo intuitivo que a tomada autoritária do poder é consideravelmente mais fácil em um Estado unitário, ou numa federação fragilizada, do que seria se a repartição de poderes estiver descentralizada entre várias entidades com autonomia política, financeira e administrativa. Controlar uma única instância de poder parece mais simples do que manietar várias esferas independentes.

Naturalmente, o federalismo ainda não é bala de prata ou blindagem perfeita à prova de golpes. Há exemplos, por um lado, de federações que, ainda assim, sucumbiram a projetos autoritários de poder (o Brasil entre elas); e, por outro lado, de Estados unitários com instituições democráticas consolidadas. Entretanto, num mundo complexo, em que a manipulação e a desinformação são modernos substitutos da tomada do poder pela força (sempre mais traumática e menos estabilizadora), enfraquecer a autonomia (financeira, legislativa e administrativa) dos entes da Federação é estratégia básica de um manual antidemocrático.

É certo que não existem critérios objetivos e precisos do grau de concentração/ descentralização idealmente adequado para garantir um pacto federativo equilibrado, forte e sustentável. Como acentuam tantos pensadores, o federalismo é um sentimento jurídico [4] que permeia o imaginário coletivo de uma nação. Há muitos modelos. Mas é inquestionável que não se faz uma federação sem recursos financeiros: "A finança é, com propriedade, considerada o princípio vital do corpo político; aquele que lhe sustenta a vida e o movimento e o capacita a exercer suas funções mais essenciais. (…) amplo poder de acesso a um suprimento regular e adequado de receita dentro dos recursos da comunidade, se pode considerar como um ingrediente necessário em qualquer constituição" [5].

Quando se fragiliza o fluxo financeiro dos entes federados, o que se fragiliza, em última análise, é a própria democracia.

No Brasil, mesmo após a redemocratização com a Constituição de 1988, o contexto é de crescente concentração dos recursos financeiros nos cofres federais, enquanto as atribuições administrativas, os serviços públicos essenciais à população seguem em curva ascendente sob a responsabilidade de estados, Distrito Federal e municípios.

Aumento das contribuições sociais, cujo produto da arrecadação pertence integralmente à União sem partilha de receitas com os demais; expansão dos gastos públicos federais relacionados à renúncia de receita (isenções, reduções de base de cálculo) de tributos partilhados, como o IPI, cuja arrecadação também pertenceria aos estados e municípios; e expressiva erosão das bases tributárias do ICMS, seja pela via de interpretação judicial, seja em razão da vertiginosa transformação digital da economia, em que é difícil a adaptação de categorias jurídicas imaginadas para um contexto de mercancia física, corpórea e tangível e, mais recentemente, pela invasão legislativa direta da competência tributária dos Estados.

Concatenadas ou não, somente este ano, várias medidas distintas contribuíram para desestabilizar e comprometer gravemente as finanças estaduais: (1) a sanção tardia da Lei Complementar 190/22, que trata do diferencial de alíquota; (2) a redução de IPI, em sucessivos decretos e, recentemente, pelo Decreto n° 11.158/2022; (3) a edição da LC 192/22, que instituiu o regime monofásico para combustíveis; e (iv) a Lei Complementar 194/22 que, além do teto da alíquota de ICMS para as operações com combustíveis, excluiu da base de cálculo do imposto nas operações com energia elétrica os valores relativos aos serviços de transmissão, distribuição e encargos setoriais.

Somente os prejuízos aos cofres estaduais decorrentes diretamente das mudanças na tributação dos combustíveis correspondem a mais de R$ 73 bilhões, segundo o levantamento feito pelo governo federal [6] sem qualquer contrapartida de reequilíbrio orçamentário ou estimativa do impacto financeiro (em clara violação ao artigo 113 do ADCT da CF/88 e ao artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal).

Essas investidas podem findar por criar um estado de coisas inconstitucional, ou uma inconstitucionalidade sistêmica, mediante asfixia financeira dos entes subnacionais, o que é vedado pelo §4°, do artigo 60 da CF/88.

Ler a Constituição é diferente de escrevê-la. E, certamente, há critérios bem postos de como não ler a Constituição: "nosso sistema de governo limita aquilo que as maiorias democráticas podem fazer" [7].

A Constituição não apenas protege o pacto federativo de investidas pontuais e diretas; mas salvaguarda a Federação, inclusive, de um conjunto de investidas que, somadas, "sejam tendentes" a comprometer a forma federativa, inviabilizando financeira ou politicamente a autonomia dos entes subnacionais. A Constituição não foi editada para deixar estados e municípios de "pires na mão", em permanente situação de insolvência.

Nesse conjunto de iniciativas legislativas, em razão da repercussão eleitoral e financeira, destacam-se as Lei Complementares nº 192 e 194/2022, editadas com "o objetivo de tentar promover a redução nos preços dos combustíveis". O artifício legal de redução de ICMS (verdadeira isenção heterônoma vedada pelo artigo 151, III, da CF/88) baseia-se na presunção de que a eventual redução do custo tributário seria integralmente repassada ao consumidor, o que não é necessariamente verdadeiro [8].

Em sucessivo às mudanças legislativas, foi editado o Convênio ICMS n° 16/2022 e inaugurado conflito judicial amplo entre estados e Distrito Federal, de um lado, e a União Federal de outro, no âmbito das ADIs 7.164, 7.191 e 7.195, e do ADPF 984. Ainda não é possível antever em que sentido irá se inclinar a Suprema Corte: há liminar reconhecendo possível constitucionalidade dos dispositivos da LC 192; há decisão indicativa de descompasso dessas iniciativas e há a determinação da criação de uma comissão especial na busca de uma solução consensuada.

Recentemente, alguns estados obtiveram liminares que autorizam a suspensão de pagamentos de dívidas junto à União Federal e de dívidas contraídas com o aval da União. O racional nas decisões proferidas é permitir compensação financeira pela redução abrupta e sem previsão orçamentária da receita dos entes subnacionais com a edição das LCs 192 e 194.

Ha muitos argumentos jurídicos para respaldar as liminares concedidas, sobretudo aqueles que se referem diretamente às salvaguardas previstas na Constituição para preservação do equilíbrio financeiro das contas públicas — legado paulatino construído na redemocratização como esforço nacional de controle da espiral inflacionária.

As Leis 192 e 194 (e, mais recentemente, a EC 123/2022 apelidada de PEC Kamikaze), além do reconhecido prejuízo financeiro aos estados e Distrito Federal, trazem vários dispositivos que rompem totalmente com os preceitos de responsabilidade fiscal.

As razões jurídicas das decisões liminares proferidas pelo STF não se colocam em questão — são muitas e relevantes. No entanto, essas liminares e o conjunto de decisões proferidas no contexto das ações de controle concentrado que tramitam no STF sobre o tema (ADIs 7.164, 7.191 e 7.195, e do ADPF 984), descortinam um cenário de agravamento das disparidades regionais. Os impactos decorrentes do regime monofásico, do teto da alíquota nas operações com combustíveis e da redução da base de cálculo nas operações com energia elétrica variam de estado para estado.

E, especialmente, o estoque da dívida dos estados não é uniforme. Muitos estados "fizeram o dever de casa" na tentativa de atingir equilíbrio fiscal — agora comprometido pelas LCs 192 e 194. Além disso, nem todos os Estados conseguem acesso a crédito ou o aval da União para obter financiamentos — fatores político-partidários, econômicos e regionais influenciam nesse aspecto.

Uma análise do estoque da dívida mostra ainda como a distribuição de recursos financeiros pode ser enxergada como um fator de perpetuação da concentração de riquezas. Somente o estado de São Paulo possui o maior estoque, correspondente a 54% do total nacional, bem maior do que a soma da dívida de todos os estados das regiões Norte e Nordeste [9].

Significa, a um só tempo, que aqueles entes da federação que possuem maior acesso a investimentos terão também melhores condições de se beneficiarem das liminares que suspendem os pagamentos dessas obrigações.

Estados cujo estoque é pequeno não teriam como se beneficiar de maneira relevante da suspensão dos pagamentos de suas obrigações financeiras junto à União ou instituições de fomento, especialmente quando se compara esse volume com o valor total do prejuízo suportado pela redução de receitas.

As liminares de suspensão do pagamento das obrigações, se, por um lado, representam justo e necessário alívio financeiro para estados e Distrito Federal e merecem ser confirmadas no Plenário da Suprema Corte, por outro, não asseguram integralmente o equilíbrio federativo.

Numa análise sistêmica da situação, é preciso reconhecer que o contexto se distancia do objetivo encartado no artigo 3°, III, da CF/88 de redução das desigualdades regionais. Essas liminares são, portanto, resposta ainda insuficiente para a gravidade da provocação à autoridade da Constituição e ao Pacto Federativo.

Melhor seria se o STF, guardião da Constituição, da Federação e da democracia, reconhecesse a fissura federativa que as LCs 192 e 194 impuseram. As razões apresentadas pelos estados e pelo Distrito Federal nas ADIs 7.164, 7.191 e 7.195, e do ADPF 984, justificam a revisão judicial dessas proposições legislativas. Há clara invasão da autonomia política e da competência tributária dos entes subnacionais, entre muitas outras violações à Constituição.

O Supremo tem sido desafiado a equilibrar-se entre a omissão, o self-restraint e o protagonismo inerente à instituição com a última palavra no jogo. Nessa guerra de "todos contra todos", se nada mais for feito para restabelecer as competências federativas e algum equilíbrio no impacto fiscal que está sendo suportado de maneira desigual pelos entes subnacionais, será necessário atualizar o adágio popular e reconhecer que, no Brasil, "quem não deve não tem".


[1] Leminski, Paulo. Poema Bem Fundo In: Toda Poesia, Companhia das Letras.

[2] Vide: Costa, Gustavo de Freitas Cavalcanti. Federalismo e ICMS, Curitiba, Ed. Juruá, 1999.

[3] "Três das mais significativas criações das modernas democracias são a proteção às liberdades individuais, federalismo, e a ideia de sociedade civil". Tradução livre de: "Three of the most important inventions of modem democratic government are the protection of individual rights, federalism, and the idea of civil society". Elazar, J. Daniel. Federalism and Democracy. In: Israel Yearbook on Human Rights, Vol. 26 (1996). E-book published in 2020.

[4] Cf: J.J. Gomes Canotilho. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ed. Almedina, 7ª Edição.

[5] HAMILTON, Alexander. The Federalist No. 30, [28 December 1787] In: Federalist Papers: Primary Documents in American History. Disponível em: https://guides.loc.gov/federalist-papers/full-text.

[6] A estimativa não leva em consideração as perdas relativas ao congelamento da PMPF, nem as perdas relacionadas à redução da base de cálculo nas operações com energia elétrica.

[7] Tribe, Laurence. Dorf, Michael. Hermenêutica Constitucional, Vol. 8. Ed. Del Rey, p. 33.

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