Opinião

Inconstitucionalidade da Medida Provisória nº 1.124/2022

Autor

  • Sávio Luiz Martins Pereira

    é advogado especialista em Direito Processual Civil pela Escola Superior da Advocacia de Minas Gerais e membro das Comissões Estaduais de Proteção de Dados de Saúde Suplementar e de Direito Médico as três da OAB/MG.

15 de agosto de 2022, 6h03

A edição do Diário Oficial da União publicada em 13 de junho de 2022 veiculou a Medida Provisória (MPV) de nº 1.124, que "transforma a Autoridade Nacional de Proteção de Dados em autarquia de natureza especial".

Assinada pelo presidente da República em conjunto com os ministros da Economia e da Casa Civil, a medida tem aspirações republicanas, ao confiar mais autonomia e independência a então Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais — operante, até a edição da referida MPV, sob a forma de órgão subordinado à Presidência da República, estrutura na qual se insere (vide artigo 55-A da Lei nº 13.709/2018, introduzido pela Lei nº 13.853/2019).

Com a aprovação e sanção da Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados  LGPD), incluindo as modificações verificadas com a Lei nº 13.853/2019, emergiu dúvida sobre a razão determinante para que a ANPD, autoridade reguladora com todas as feições de uma autarquia, não fosse constituída de imediato na forma de uma. Ao contrário do verificado com outras agências (como a Anatel, Aneel, ANA, ANTT, ANP e a Antaq, dentre outros exemplos), a heterodoxa constituição da ANPD, como órgão subordinado à Presidência da República, resultou em uma agência especial de facto estruturada no âmbito da Administração Pública Federal Direta. Infere-se que, por responder a esta incômoda dúvida, a MPV nº 1.124/2022 foi bem recebida pelos atuantes no campo da privacidade e da proteção de dados — que aclamaram a medida, entendida como exercício da diligência prevista nos §§1º e 2º do artigo 55-A da LGPD.

Ocorre que, conquanto presumidamente bem intencionada e visando a consecução de objetivos republicanos programados pelo próprio Congresso Nacional (artigo 55-A, §§ 1º e 2º), a MPV nº 1.124/2022 incorre em incompatibilidades com a Lei Fundamental e não deveria subsistir. Eiva-se, o ato, de dupla inconstitucionalidade formal.

Preconiza a Constituição, no inciso XIX do artigo 37, que "somente por lei específica poderá ser criada autarquia", sendo o instrumento do inciso V do artigo 59 (também da CRFB), portanto, via inadequadamente eleita para tal providência.

Não se olvida, por óbvio, da previsão (igualmente inconstitucional) dos §§1º e 2º do artigo 55-A da LGPD. Embora não seja objeto do presente exame, de se observar que a delegação ao Executivo dependeria de resolução, nos termos do §2º do artigo 68 da CRFB, após a solicitação daquele ao Congresso vide caput do artigo 68, havendo no ponto incompatibilidade entre a redação legal e a regra do constituinte originário. Também não se ignora a existência de obstáculos políticos e práticos que possam obstar a devida propositura, tramitação legislativa e rápida aprovação de uma Lei Ordinária  sobretudo em ano eleitoral , o que pode ter guiado a escolha pela via da Medida Provisória.

Ainda, é de conhecimento que o uso acrítico das medidas provisórias permeia o histórico e a cultura normativa brasileira, possivelmente inspirando o Executivo a reincidir em questionável uso dos poderes dispensados pela Constituição. A crítica a essa duvidosa prática, aliás, é sustentada entre nós e há muito, incluindo notáveis vozes como a de Celso Bandeira de Mello  para quem, desde o início da (ainda imatura) experiência democrática brasileira, legisla-se e governa-se indevidamente pela desvirtuação das medidas provisórias, "umas e outras de inconstitucionalidade óbvia, [mas todas] sempre recebidas com exemplar naturalidade por todo o País" [1].

Com efeito, compreensível a escolha do Planalto. Embora inconciliável com a necessidade de edição de lei em sentido estrito para a criação de autarquias (ainda que com permissivo delegado atipicamente pelo Legislativo), a medida se ampara em precedentes dados por Presidentes passados, que também utilizaram inadequadamente, por vezes, o instrumento do artigo 62 da CRFB [2] e [3].

Fosse esse o único vício a MPV nº 1.124/2022 possivelmente passaria em despercebido; inofensiva, entre outras inconstitucionalidades conhecidas e ainda vigentes e toleradas. Mas, há mais. Encontra-se o segundo vício de inconstitucionalidade quando da análise dos pressupostos para sua elaboração.

Dispõe o caput do artigo 62 da Constituição que o presidente da República poderá adotar medidas provisórias "em caso de relevância e urgência". Nada obstante pressupostos vagos e indeterminados, nesses não se comporta qualquer definição. Aponta Bandeira de Mello:

"[…] A circunstância de relevância e urgência serem  como efetivamente o são  conceitos 'vagos', 'fluidos', 'imprecisos', não implica que lhes faleça densidade significativa. Se dela carecessem não seriam conceitos e as expressões com que são designados não passariam de ruídos ininteligíveis, sons ocos, vazios de qualquer conteúdo, faltando-lhes o caráter de palavras, isto é, de signos que se remetem a um significado" [4].

É unívoca a doutrina administrativista ao assinalar que "os conceitos abertos ou indeterminados deixam claro que o poder discricionário da Administração não significa uma autorização em branco dos administrados a ela conferida, e que, na verdade, esses conceitos são determináveis" [5]. Tais conceitos definem-se a partir de análise in concreto, exigindo atuação estatal vinculada a mais estrita legalidade constitucional.

Refletindo sobre o tema, é difícil contemplar justificativa hígida e idônea o suficiente para se furtar a criação da autarquia do Parlamento, com os auspícios do devido processo legislativo. A estrutura organizacional já delineada na LGPD, per si, não impediria nova reflexão e debates, pelo Parlamento, sobre a criação e constituição da nova agência. A única urgência evidente em primeira análise é a política  "a prática institucional relaciona a medida provisória a um juízo político de oportunidade e conveniência; daí, a utilização da expressão 'urgência política'" [6] , o que parece atípico, dado o limitado potencial de se capitalizar tal medida politicamente perante o grande eleitorado.  

Como instrumento precário, efêmero e de exceção, os pressupostos para a edição de MP merece(ria)m mais rigor por qualquer governo que se pretenda trilhar o caminho pavimentado pelo constituinte originário e, infelizmente, não parece ter sido o caso da MPV nº 1.124/2022. Enquanto a relevância implica em bem da vida imprescindível, essencial e ou importante para a consecução do interesse público primário ameaçado por evento imprevisível, a urgência se traduz na necessidade de aplicação imediata da regulação para enfrentar o evento imprevisível e regular o estado de coisas dele derivado. É o que pondera Clemerson Clève, lembrado por Vera Lúcia Leopoldino [7]. Não se requer muito para concluir a inexistência do prognóstico autorizativo para a validade da MPV em comento.

A MP resultante de abuso da imprecisão semântica é passível, inclusive, de controle de constitucionalidade. Se provocado em sede de controle concentrado, Supremo Tribunal Federal (STF) não avalia, necessariamente, o mérito das medidas, mas a legitimidade da situação urgente e relevante invocada pelo Presidente da República. Reflete Bandeira de Mello:

"[…] Do fato de 'relevância' e 'urgência' exprimirem noções vagas, de contornos indeterminados, resulta apenas que, efetivamente, muitas vezes pôr-se-ão situações duvidosas nas quais não se poderá dizer, com certeza, se retratam ou não hipóteses correspondentes à previsão abstrata do artigo 62. De par com elas, entretanto, ocorrerão outras tantas em que será induvidoso inexistir relevância e urgência ou, pelo contrário, induvidoso que existem. Logo, o Judiciário sempre poderá se pronunciar conclusivamente ante os casos de 'certeza negativa' ou 'positiva', tanto como reconhecer que o Presidente não excedeu os limites possíveis dos aludidos conceitos naquelas situações de irremissível dúvida, em que mais de uma intelecção seria razoável, plausível" [8].

A jurisprudência do STF reconhece o emprego de parâmetros objetivos, jurídicos e temporais, para apurar a (in) ocorrência de urgência a legitimar a eleição pela citada via normativa, vide ADIs 2.348/DF e 2.150/DF.

Nem mesmo eventual Lei de Conversão teria o condão de sanar os vícios que fulminam a MPV nº 1.124/2022. Em que pese a nulificação dos vícios particulares à espécie medida provisória recaia, por vezes, apenas no período de sua vigência  não repercutindo sobre a lei de conversão, portanto , a recíproca não é verdadeira no que toca aos vícios formais: impugnados em ação do controle concentrado de constitucionalidade julgada procedente, há a inconstitucionalidade da lei de conversão por arrastamento [9].

Seja pela incompatibilidade com o inciso XIX do artigo 37 da Constituição, seja pela inobservância dos requisitos típicos do instrumento normativo, dúvida não há da inconstitucionalidade da MPV nº 1.124/2022. Mesmo que eventualmente convertida em Lei, essa não poderia existir em nosso ordenamento  conclusão chancelada por substancial parcela da doutrina [10].

No atual contexto institucional, tensionado à exaustão por desgastes recíprocos entre os Poderes da República, medidas como a MPV nº 1.124/2022 podem surtir efeitos deletérios a um paciente já em estado grave. Friedrich Müller já criticara ser perniciosa a desvirtuação e o uso abusivo de medidas provisórias, que enfraquecem a responsabilidade da representação popular e os partidos políticos, minando a democracia com supressão do Parlamento em favor do Executivo. Esse uso abusivo "desfere um golpe  quiçá mortal no futuro  na divisão dos Poderes e com isso no cerne da arquitetura do Estado, fundamentada na observância do Estado democrático de Direito" [11].

Pelos bastantes motivos acima, é que se disse anteriormente a MPV nº 1.124/2022 não deveria e nem poderia permanecer no ordenamento pátrio, porquanto incompatível com o regime constitucional. Considerando as funções típicas dos Poderes, Legislativo e Judiciário deveriam apreciar, com rigor, o preenchimento dos pressupostos que sustentam a MPV sob o exame. Entretanto o que se cogita de início, analisando o atual estado de coisas e a falta de amadurecimento institucional, é que a referida MPV provavelmente será chancelada quando da Lei de Conversão e não será questionada perante o STF. Há muito nota-se que o Congresso "não tem feito o controle jurídico necessário e muitas medidas provisórias flagrantemente inconstitucionais têm sido convertidas em lei" [12].

Ainda que eventualmente questionada em controle concentrado de constitucionalidade, dados os recentes e constantes atritos entre Planalto e STF, é possível que a MPV e ou sua Lei de Conversão fossem chanceladas pelo Tribunal Constitucional. Em um cenário aparentemente ainda distante, de democracia consolidada deferência plena à tripartição dos Poderes, a MPV nº 1.124/2022 não vingaria no ordenamento. Contudo à semelhança do que ocorrera com a Anvisa e a ANS (criadas, respectivamente, pelas MP nº 1.791/1998 e MP 2.012/2000, inquestionadas), não é improvável que ela permaneça entre nós e crie, às vias oblíquas, uma agência com agenda e atribuições cada vez mais relevantes na sociedade dos dados. Ao fim e ao cabo, da análise da prática das medidas provisórias, parece que, ao contrário do que concluiu Aldous Huxley [13], os fins podem sim justificar os meios.

Notas de rodapé
[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30ª ed., rev., ampl. e atual.  São Paulo: Malheiros, 2013, nota de rodapé nº 10, p. 107.

[2] Ibidem, nota de rodapé nº 10, p. 107-108.

[3] Em digressão crítica na recente história democrática, assinala o administrativista: "[…] Registre-se que [Fernando Henrique Cardoso], do início de seu primeiro mandato até o mês de agosto de 1999, expediu 3.239 medidas provisórias (inconstitucionalmente, é claro), o que corresponde a uma média de quase 2,8 medidas provisórias por dia útil de governo (isto é, excluídos feriados, sábados e domingos). Inversamente, no período foram editadas pelo Congresso apenas 854 leis (entre ordinárias e complementares). Vê-se, pois, que o Parlamento foi responsável tão só por pouco mais de uma quarta parte das 'leis', pois os quase 3/4 restantes são obra exclusiva do Executivo. De resto, dentre as 3.239 medidas provisórias referidas, apenas 89 delas  ou seja, 2,75%  foram aprovadas pelo Congresso e convertidas em lei. Em suma: vigoraram entre nós 97,25% de medidas provisórias não aprovadas pelo Congresso, em despeito de o Texto Constitucional literalmente determinar, como foi dito e reiterado, que tais medidas, se não aprovadas pelo Congresso em 30 dias, perdem a eficácia desde o início de sua expedição. Com a Emenda Constitucional 32, de 11.12.2001, todas elas foram salvaguardadas, o que, provavelmente não teria sido estabelecido se não existisse a consciência de que eram inconstitucionais. O artigo 2º da sobredita Emenda dispôs: 'As medidas provisórias editadas em data anterior à da publicação desta Emenda continuam em vigor até que medida provisória ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional'. O governo do presidente Lula continuou com a mesma prática repugnante ao Direito. Diante deste panorama devastador, mesmo o mais tolerante dos juristas será forçado a concluir que, no Brasil, pelo menos até então, só por eufemismo se pode falar em Estado Constitucional de Direito e, pois, em Democracia, pois nem mesmo o órgão máximo encarregado de defender a Constituição — isto é, o Supremo Tribunal Federal — fulminava estas medidas provisórias grosseiramente inconstitucionais. Não desejando contrariar o Poder Executivo, fazia piruetas exegéticas para se eximir de examinar-lhes o ajustamento à Lei Magna. […]". Ibidem, p. 108.

[4] Ibidem, p. 137.

[5] OLIVEIRA, Vera Lúcia Leopoldino. Controle constitucional da lei de conversão pela ausência dos pressupostos de relevância e urgência na edição da medida provisória, p. 288. Revista de informação legislativa, Brasília, v. 44, nº 173, p. 285-301, jan./mar. 2007.

[6] MENDES, Gilmar Ferreira. Notas taquigráficas da sessão de 15 de maio de 2002 da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania…, p. 7-9. apud OLIVEIRA, p. 288 op. cit..

[7] CLÈVE, Clèmerson Merlin. Medidas provisórias, Max Limonad, 2a ed, São Paulo, p. 178, 1997. apud OLIVEIRA, op. cit.

[8] MELLO, op. cit., p. 137.

[9] Também nesse sentido: OLIVEIRA, op. cit., p. 298.

[10] A título de exemplo, corrente a qual se afiliam Eros Grau, Celso Antônio Bandeira de Mello, Clèmerson Merlin Clève, José Levi Mello do Amaral Júnior e Marco Aurélio Greco.

[11] GRAU; GUERRA FILHO, 2001, p. 349 apud OLIVEIRA, op. cit.

[12] OLIVEIRA, op. cit., p. 297.

[13] Cf. Fins e Meios, de Aldous Huxley.

Autores

  • é advogado, especialista em Direito Processual Civil pela Escola Superior da Advocacia de Minas Gerais e membro das Comissões Estaduais de Proteção de Dados, de Saúde Suplementar e de Direito Médico, as três da OAB/MG.

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