Opinião

Temporalidade do processo orçamentário e consequência ao não cumprir prazos

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15 de agosto de 2022, 18h18

Este artigo tem por objetivo analisar a temporalidade do processo orçamentário no Brasil, Alemanha, França e Estados Unidos em perspectiva comparada. O objetivo é verificar os marcos temporais previstos durante a tramitação da lei orçamentária em cada país, bem como eventuais consequências da inobservância destes prazos, principalmente na hipótese de o Legislativo não aprovar tempestivamente o orçamento.

A necessidade de prazos e ciclos bem delineados é decorrência direta do princípio da anualidade ou periodicidade, positivado no ordenamento jurídico brasileiro e presente na tradição orçamentária desde as origens do orçamento [1]. Através da análise comparativa dos prazos, a investigação se centrará na consequência da inobservância destes marcos temporais; mais especificamente, o que ocorre na hipótese de o Legislativo não aprovar tempestivamente o orçamento.

Dado o caráter de temporalidade inerente às autorizações orçamentárias, ao lado da necessidade de que, via de regra, o Poder Legislativo se manifeste previamente à realização de despesas públicas, a aprovação e vigência do orçamento desde o início do exercício financeiro torna-se uma questão de elevada importância. Com efeito, a ausência de autorização orçamentária, caso materializada, pode acarretar severos danos socioeconômicos ao país, dada a impossibilidade de realização de despesas essenciais, urgentes e inadiáveis por parte do Estado [2]. Disso decorre, portanto, a necessidade de que se adote algum mecanismo de contingência, de modo a tratar citado risco. Conforme será demonstrado, para os casos em que tais etapas não sejam cumpridas em tempo hábil, a legislação de cada país analisado estabelece as consequências e eventuais mecanismos mitigadores que devem ser acionados.

O calendário de tramitação legislativa do orçamento guarda várias semelhanças entre Alemanha, Brasil e França. Nestes países, os trabalhos do parlamento atinentes à temática concentram-se nos quatro últimos meses do ano, como detalha o quadro abaixo:

 

Alemanha

Brasil

França

agosto

O orçamento é submetido ao Bundesrat e ao Bundestag.

Encaminhamento, ao Congresso Nacional, do projeto de lei orçamentária da União

 

setembro

Primeira leitura no Bundestag e no Bundesrat, início das discussões do Relator e das deliberações do Comitê de Orçamento.

Realização de audiências públicas

O projeto de lei de finanças (loi de finance) é encaminhado ao Parlamento antes da primeira terça-feira do mês de outubro.

outubro

Atualização de previsões macroeconômicas.

Apresentação de emendas à despesa e à receita

O governo apresenta ao Parlamento o projeto de lei de financiamento da seguridade social.

novembro

Sessão para instalação do Comitê de Orçamento. Atualização da estimativa de receita tributária (médio prazo). Segunda e terceira leituras no Bundestag e aprovação de orçamento. Orçamento aprovado enviado para Bundesrat.

Votação do Relatório da Receita e dos relatórios setoriais, bem como do Relatório Preliminar

O governo submete à avaliação do Parlamento o projeto que altera a lei de finanças do exercício vigente (loi de finances rectificative).

dezembro

Segunda leitura e anuência do Bundesrat. Promulgação no Diário Oficial Federal.

Votação do relatório geral, encaminhamento do Parecer da CMO à Mesa do Congresso Nacional, votação no Congresso Nacional, sanção e promulgação do orçamento.

São aprovadas no Parlamento e promulgadas as leis de finanças e de financiamento da seguridade social para o exercício seguinte, bem como a lei de finanças retificativa.

Fontes: Brasil (2006) [3], OECD (2014) [4] e OECD (2018) [5]. Elaboração própria

O caso norte-americano, contudo, destoa dos demais. Conforme estabelece o Congressional Budget Act, a atuação do Poder Legislativo estadunidense na preparação do orçamento deve encerrar-se antes do início do ano fiscal, ou seja, até dia 1º de outubro. Nesse sentido, as atividades atinentes ao processo legislativo orçamentário iniciam-se logo no primeiro trimestre do ano. O quadro a seguir apresenta o cronograma sinótico a ser observado pelo Congresso Norte Americano:

primeira segunda de fevereiro

Presidente submete orçamento ao Congresso.

segunda quinzena de março

Comitês permanentes submetem pareceres e estimativas ao Comitê de Orçamento.

até 15 de abril

Congresso edita resolução conjunta (concurrent resolution)

até 10 de junho

Comitê de Apropriações da Câmara conclui última appropriation bill

até 15 de junho

Congresso conclui processo de reconciliação, se necessário

até 30 de junho

Câmara aprecia última appropriation bill

1º de outubro

Início do ano fiscal

Adaptado de CRS (2008) [6]

Assim, a análise dos prazos previstos na legislação de cada país mostra que o processo orçamentário no Legislativo se desenvolve no segundo semestre de cada ano calendário no Brasil, França e Alemanha. Já nos Estados Unidos, tendo em vista que o ano fiscal se inicia em 1º de outubro, o processo se inicia mais cedo, em fevereiro de cada ano.

Diante destes prazos previstos em cada país, cabe indagar: qual a consequência da inobservância dos marcos temporais mencionados anteriormente? Mais especificamente: o que ocorre na hipótese de o Legislativo não aprovar tempestivamente o orçamento?

No Brasil, de modo a contornar as dificuldades práticas que a ausência da LOA traria para a administração pública, as leis de diretrizes orçamentárias (LDO) têm estabelecido permissões para execução provisória do Projeto de Lei do Orçamento, ainda que não aprovado pelo Congresso Nacional. Ressalte-se que a autorização é restrita a determinadas despesas, indicadas em rol taxativo pela LDO [7].

Analogamente, a Alemanha permite a execução de um orçamento de emergência ou provisório nessa situação. O Governo é autorizado a pagar todas as despesas que forem necessárias e inadiáveis até a entrada em vigor do orçamento para o ano fiscal, desde que sejam direcionadas para: 1) manutenção de instalações existentes e cumprimento de obrigações já acordadas, desde que justificadas pelo Governo Federal; 2) prosseguimento direto de construções, ou concessão de subsídios para esses fins, uma vez que os valores tenham sido aprovados no orçamento de um ano anterior. Estabelece-se, ademais, o limite de empréstimos líquidos a serem contraídos no valor de um quarto do valor final total do orçamento anterior [8].

Caso não observado o prazo constitucionalmente estabelecido para aprovação do orçamento, o modelo francês prevê arranjos distintos, conforme a origem do atraso: se a culpa for imputável ao parlamento, o Governo poderá recorrer a uma portaria para implementar as disposições do orçamento; de outro lado, caso o descumprimento seja imputável ao Governo (quando, por exemplo, a entrega do projeto de lei foi de tal maneira postergada que impediu sua aprovação tempestiva pelo Poder Legislativo), o Governo poderá solicitar ao Congresso que aprove apenas a parte do projeto de lei [9] relativa ao financiamento, discutindo-se a segunda parte posteriormente. Alternativamente, pode-se solicitar, em regime de urgência, autorização para a cobrança de impostos e abertura por decreto de créditos relativos aos serviços votados. Em ambos os casos, os créditos são temporariamente distribuídos de acordo com os serviços votados, ou seja, os créditos mínimos que o Governo considera essenciais para permitir o funcionamento do Estado [10].

Os Estados Unidos também contam com um mecanismo de escape em caso de não aprovação do orçamento antes do início do ano fiscal. Trata-se das Continuing Resolutions (CRs), ou resoluções de continuidade, que, em síntese, são normas congressuais que concedem autorizações orçamentárias para um determinado projeto ou agência que ainda não teve sua appropriation bill apreciada.  As CRs possuem duração limitada, geralmente com prazos bem inferiores a um ano, e tomam por base dotações concedidas no ano fiscal anterior. Esse instituto tem se mostrado de grande importância prática, dada a recorrência com que se observa o descumprimento dos prazos pertinentes ao processo orçamentário. De fato, desde a promulgação da CBA, em 1974, o prazo para a aprovação das concurrent resolutions só foi respeitado seis vezes. Ao longo da história do processo orçamentário americano, verifica-se a ocorrência de dezenove medidas de fechamento parcial do governo (government shutdowns) e mais de duzentas edições de continuing resolutions [11].

No que diz respeito à possibilidade de não aprovação do orçamento no prazo estabelecido pela legislação, a comparação mostra que todos os países preveem a possibilidade de instituição de mecanismos orçamentários específicos e provisórios e, em geral, com aplicação limitada a certas despesas. Enquanto no Brasil, a LDO permite a execução provisória do PLOA a determinadas despesas; a Alemanha prevê a execução de um orçamento de emergência através do qual se autoriza o pagamento de todas as despesas necessárias desde que direcionadas para certos fins. Já a França permite uma aprovação parcial do projeto e a autorização, em regime de urgência, de abertura de créditos relativos aos serviços votados, desde que sejam essenciais para o funcionamento do Estado. Por fim, os Estados Unidos preveem autorizações orçamentárias provisórias para um determinado projeto ou agência, com base nas dotações concedidas no ano fiscal anterior.

A presença de regras em cada país que estabelecem as consequências da não aprovação e vigência do orçamento desde o início do exercício financeiro confirmam o caráter de temporalidade das autorizações orçamentárias e da necessidade de que o Poder Legislativo se manifeste previamente à realização de despesas públicas. Dessa forma, é de extrema importância que a legislação de cada país estabeleça as consequências e eventuais mecanismos mitigadores que devem ser acionados nos casos em que tais etapas não sejam cumpridas em tempo hábil.

A comparação da temporalidade nos processos orçamentários mostrou que todos os países preveem mecanismos orçamentários específicos e provisórios e, em geral, com aplicação limitada a certas despesas no caso de não aprovação do orçamento no prazo estabelecido pela legislação, o que mostra que o Brasil está alinhado às práticas internacionais com relação a este critério.


[1] GIACOMONI, James. Orçamento Público. 15ª. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

[2] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 135/2021. Plenário. Relator: ministro Bruno Dantas. Sessão de 27/01/2021. Disponível aqui. Acesso em: 17 mai. 2021. (2021a).

[3] BRASIL. Congresso Nacional. Resolução nº 1, de 22 de dezembro de 2006. Dispõe sobre a Comissão Mista Permanente a que se refere o §1º do artigo 166 da Constituição, bem como a tramitação das matérias a que se refere o mesmo artigo. Brasília, DF: Congresso Nacional, 2006.

[4] OECD. OECD Budget Review: Germany. Journal on Budgeting, vol. 2014/2. Disponível em: https://www.oecd.org/gov/budgeting/Budget-Review-Germany.pdf. Acesso em: 23 jul. 2021.

[5] OECD. Budgeting in France. OECD Journal on Budgeting, vol. 2018/2, 2018. Disponível em: https://www.oecd.org/gov/budgeting/Budgeting-in-France.pdf. Acesso em: 15 fev. 2022.

[6] CONGRESSIONAL RESEARCH SERVICE (CRS).  The Congressional Budget Process Timetable. Mar. 2008. Disponível em: https://fas.org/sgp/crs/misc/98-472.pdf. Acesso em  15 fev. 2022.

[7] Em 2021, por exemplo, são abrangidas pelo permissivo: despesas que constituem obrigações constitucionais ou legais da União, ações de prevenção a desastres, dotações destinadas à aplicação mínima em ações e serviços públicos de saúde, despesas correntes de caráter inadiável, até o limite de um doze avos do valor previsto para cada órgão no Projeto de Lei Orçamentária de 2021, multiplicado pelo número de meses total ou parcialmente decorridos até a data de publicação da respectiva Lei, entre outras (BRASIL, 2020).

[8] ALEMANHA. Lei Fundamental da República Federal da Alemanha. Deutscher Bundestag, Berlin 2021. Disponível em: https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf. Acesso em 29 dez. 2021.

[9] Na primeira parte, a lei financeira do ano autoriza a arrecadação de recursos públicos e contempla as formas e meios que garantem o equilíbrio financeiro do exercício.  A segunda parte contempla o detalhamento dos créditos orçamentário, em que se examinam os fundos solicitados para cada missão.

[10] Journal Officiel de la République Française (JORF). Loi organique n° 2001-692 du 1 août 2001 relative aux lois de finances (LOLF). Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr/loda/id/LEGITEXT000005631294/. Acesso em 28 dez. 2021. (2001).

[11] OECD. The Legal Framework for Budget Systems: An International Comparison. OECD Journal on Budgeting. Special Issue, vol. 4, nº 3. 2004. Disponível em: https://www.oecd.org/gov/budgeting/thelegalframeworkforbudgetsystemsaninternationalcomparison.htm. Acesso em 21 de julho de 2021.

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