Opinião

Regulamentação e apoio: o direito de morrer em paz

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15 de agosto de 2022, 13h05

Promover o alívio da dor e do sofrimento, melhorar a qualidade de vida diante do curso de enfermidades e oferecer um sistema que permita ao paciente viver tão ativamente quanto possível até o momento de sua morte são alguns dos princípios dos cuidados paliativos. Ainda que seja um evento certo e inevitável, falar sobre a morte ainda apresenta resistência, considerando-se que os avanços da medicina têm permitido superar doenças antes incuráveis, resultando no aumento da expectativa de vida da população.

Uma vida longeva pode implicar o surgimento de problemas crônicos de saúde, isto é, sem a possibilidade de cura, transformando o bônus etário em realidade de consternações físicas, psíquicas e espirituais.

A Constituição apresenta a vida, a dignidade da pessoa humana e a saúde como direitos essenciais a todo e qualquer cidadão, além de interpretados pela doutrina pátria como invioláveis e inalienáveis. Também há, naturalmente, vasto amparo no âmbito internacional, bem como na legislação infraconstitucional, desta forma, compreende-se que não são apenas passíveis de respeito pelo Estado, mas devem ser garantidos por ele, sem que para isso seja necessário pleiteá-los.

Muito embora tais direitos sejam assegurados juridicamente, o Brasil não dispõe de instrumentos legislativos específicos e assertivos acerca do fornecimento de assistência adequada quando do surgimento de doenças graves, incuráveis e que ameaçam a continuidade da vida. Não há no nosso ordenamento leis que venham a abranger adequadamente a matéria e a aplicabilidade dos cuidados paliativos, seja pelo SUS, seja através da rede privada de saúde. Há tão somente a Resolução nº 41/2018 do Ministério da Saúde, de 31 de outubro daquele ano. Na esfera da intenção legislativa em si, temos algumas proposições legislativas acerca do tema.

Citamos o Projeto de Lei nº 6.544/2009 [1], de autoria do então deputado federal Dr. Talmir, que "dispõe sobre cuidados devidos a pacientes que se encontrem em fase terminal de enfermidade", que foi apensado ao Projeto de Lei nº 3002/2008 [2] do deputado federal Hugo Leal, que "regulamenta a prática da ortotanásia no território nacional brasileiro". Ambos agora apensados ao Projeto de Lei nº 6715/2009 [3], do então senador Gerson Camata. Além desses, há o Projeto de Lei nº 883/2020 [4], de autoria do senador Marcos do Val, que "regulamenta a prática de cuidados paliativos nos serviços de saúde, no território nacional".

Retornando à Resolução nº 41/2018 do Ministério da Saúde [5], ela "dispõe sobre as diretrizes para a organização dos cuidados paliativos, à luz dos cuidados continuados integrados, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)", reorganizando conceitos e imprimindo parâmetros iniciais nas questões de cuidados paliativos. Conceitua cuidados paliativos no seu artigo 2º como a "assistência promovida por uma equipe multidisciplinar, que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares, diante de uma doença que ameace a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, da identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais". São elegíveis a esses cuidados as pessoas que sofrem com doença que lhes ameace a vida de forma aguda ou crônica, desde quando diagnosticadas.

Constitui os objetos que integram a organização dos cuidados paliativos (artigo 3º), seus princípios norteadores (artigo 4º), a abrangência da sua oferta em todos os pontos da rede de atenção à saúde (incisos I a V do artigo 5º), o fortalecimento do uso de especialistas em cuidados paliativos (artigo 6º), acesso a opioides que tratam os sintomas a serem cuidados (artigo 7º), bem como a necessidade do financiamento ser pactuado de forma tripartite (artigo 8º). Muito embora aclare conceitos e norteie aspectos fundamentais, a resolução nos parece vaga no tratamento da questão, não havendo aprofundamento legal nesse sentido.

Na esfera de propostas legislativas, o Projeto de Lei nº 6544/2009 tenta conceituar algumas circunstâncias que tratam do paciente em fase terminal de enfermidade, assegurando proteção terapêutica na medida e de acordo com o momento do paciente, em diálogo entre médicos e o próprio paciente ou família.

O Projeto de Lei nº 3002/2008 se preocupa mais diretamente com as questões de ortotanásia, conceituando-a no inciso I do artigo 2º como a "suspensão de procedimentos ou tratamentos extraordinários, que têm por objetivo unicamente a manutenção artificial da vida de paciente terminal, com enfermidade grave e incurável". Muito embora aparente a tentativa de ser mais aprofundada, a proposta condiciona a não continuidade do tratamento com uma "decisão favorável do Ministério Público" e, em caso de dúvida, o Ministério Público provocaria uma manifestação do judiciário. Além disso, desobriga qualquer profissional de prestar assistência nesse momento. Nos parecem distorções.

O Projeto de Lei nº 6715/2009 se atém à salvaguarda de profissionais que participem da ortotanásia, modificando o Código Penal para que esteja expresso não haver crime nessas hipóteses. Já o Projeto de Lei nº 883/2020, também circunda as questões levantadas pelos demais projetos, buscando tentar conceituar termos relacionados e deixar clara a relevância do tema.

Nos parece que mesmo todas essas tentativas de tratamento da matéria ainda não conseguem suprir o vácuo legal a respeito do tema. Para além disso, há temas relevantes que estão, de alguma forma, incutidos nesse debate. Algumas vezes há referências, por exemplo, ao que se chama de "tratamentos desproporcionais", que falam a respeito da desproporção entre investimento de equipamentos e pessoal com os resultados previsíveis.

Compreendendo a oferta de saúde de forma pública e privada, bem como permeando debates a respeito do rol da ANS, não raro (talvez até bem presente) seria o debate, já existente em algumas searas locais e estrangeiras, a respeito da oferta ou não de determinados tratamentos em casos de pacientes terminais ou com enfermidade avançada, se valorando oficialmente proporcionalidade de investimentos com oferta do serviço. O contexto de debates, esses na esfera privada, sobre a oferta de um rol taxativo pelos planos de saúde, poderia agravar ainda mais a situação.

O que nos vale é que há a necessidade de regulamentação da matéria, em termos que comportem a vida e o tratamento menos doloroso aos cidadãos sujeitos a esses aspectos.


[1] BRASIL, Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 6.544, de 2009. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=721742&filename=PL+6544/2009. Acesso em: 1 de ago. 2022.

[3] BRASIL, Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 6.715, de 2009. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=728243. Acesso em: 1 de ago. 2022.

[4] BRASIL, Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 883, de 2020. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141187/pdf. Acesso em: 1 de ago. 2022.

[5] BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Comissão Intergestores Tripartite. Resolução nº 41, de 31 de outubro de 2018. Dispõe sobre as diretrizes para a organização dos cuidados paliativos, à luz dos cuidados continuados integrados, no âmbito Sistema Único de Saúde (SUS). Disponível em: http://www.in.gov.br/materia//asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/51520746/do1-2018-11-23-resolucao-n-41-de31-de-outubro-de-2018-51520710. Acesso em: 21 jul. 2022.

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