Opinião

Estado Constitucional, democracia e princípio da cooperação processual

Autor

  • Maíra de Carvalho Pereira Mesquita

    é mestre em Direito pela UFPE especialista em Direito Processual Civil e em Direito Civil professora na graduação e pós-graduação da Faculdade Damas da Instrução Cristã e cursos jurídicos defensora pública federal e coordenadora da Câmara de Coordenação e Revisão Cível da Defensoria Pública da União.

15 de agosto de 2022, 10h02

O modelo contemporâneo de Estado de Direito — Estado submetido às normas do ordenamento jurídico  denomina-se Estado Constitucional, caracterizado pela conjugação das qualidades de Estado de Direito e Estado Democrático [1]. Para tanto, não basta possuir Constituição, sendo necessária a conjugação das duas qualidades: um Estado de Direito e um Estado democrático [2].

O grande "salto" do Estado Constitucional foi, portanto, a consagração da democracia e, consequentemente, da participação dos indivíduos nas manifestações da vida social. Por consistir a participação em elemento essencial do conceito de democracia, as pessoas deixam a posição de meras destinatárias das decisões estatais para desempenharem também o papel de agentes participativos na tomada de decisão comunitária.

Na democracia, a deliberação precede a decisão: devem-se expor e discutir as opiniões individuais para se corrigirem, qualificarem, modelarem e, assim, constituírem a base das decisões. Não basta garantir a vontade da maioria: é preciso haver prévio, público, igualitário e amplo debate para que as pessoas exponham suas opiniões, tenham a possibilidade de influenciar os demais e se chegue a uma decisão ponderada [3].

Trata-se, como ressalta Antônio do Passo Cabral, do modelo de democracia deliberativa, cuja característica consiste na legitimação da decisão através do diálogo. As decisões políticas são precedidas de um procedimento comunicativo, onde se garanta o debate regrado, a fim de viabilizar sua racionalidade e controlabilidade. Sob este paradigma, as decisões estatais são produto de uma "discussão argumentativa pluralista, retirando do indivíduo a condição de súdito (que se submete) para o status de ativo co-autor da elaboração da norma, verdadeiramente cidadão e partícipe desse processo" [4].

Da democracia, extrai-se o princípio da participação, cuja expressão técnico-jurídica no processo é o contraditório. No paradigma do Estado Constitucional, ampliou-se o conteúdo do contraditório, que deixou de se limitar à bilateralidade de audiência (faceta básica ou formal), para incluir também o direito de influência na formação do provimento jurisdicional (faceta substancial ou dimensão ativa ou dinâmica) [5]. Nesse contexto, considera-se o contraditório "valor-fonte do processo democrático", estando intrínseca à noção de contraditório a possibilidade de "interveniência do destinatário na formação da decisão" [6].

A releitura do contraditório determina a formação de uma "comunidade de trabalho" entre os sujeitos processuais, permitindo-se a "comparticipação" e o "policentrismo na estrutura procedimental" [7]. Ressalta-se aqui a pertinência da expressão "policentrismo" para retratar a democratização do processo, por ela remeter à ideia de descentralização do poder: os atos de poder não são proferidos de maneira isolada pelo Estado e impostos verticalmente aos indivíduos.

Para Hermes Zaneti Junior [8], a democracia participativa exige uma desangularização das relações de poder: propõe-se um modelo normativo de democracia através da institucionalização de procedimentos democráticos, assegurando-se "condições de comunicação". Adota-se um discurso democrático entre autor, juiz e réu, todos em sinergia de colaboração para obter uma solução construída em conjunto, passível de justificação racional e de aceitação dessa racionalidade pelos atores do diálogo. Conclui o autor que, no direito processual, tal modelo normativo expressa-se por meio da "máxima da cooperação" e impõe a visão cooperativa do processo pelos seus participantes.

Diante dessas premissas, inegável a interconexão entre democracia, contraditório e cooperação processual — esses últimos erigidos como normas fundamentais [9] do processo civil brasileiro [10]. O princípio da cooperação impõe um estado de coisas a ser alcançado, qual seja, a organização do processo como uma comunidade de trabalho e comunicação com equilibradas posições entre os sujeitos processuais para construção comparticipada da decisão adequada em tempo razoável.

O princípio da cooperação determina a adoção de comportamentos necessários à concretização do estado de coisas por ele almejado, dando origem a um verdadeiro dever geral de colaboração. Nesse contexto, sobressai a importância da boa-fé processual (artigo 5º CPC) [11], com observância aos padrões de comportamento objetivamente aceitos.

Não se espera que as partes deem as mãos, mas que os sujeitos processuais atuem de maneira objetivamente proba em todas as fases do procedimento, a fim de viabilizar a comunidade de trabalho e comunicação sem ruídos. Não obstante o natural conflito de interesses entre as partes, não se pode deixar de impor condutas com lealdade e boa-fé, sendo possível falar-se em um "fair play" processual, à semelhança do que ocorre nas competições esportivas [12] .

Para o STJ, o princípio da cooperação é desdobramento do princípio da boa-fé processual, que consagrou a superação do modelo adversarial, impondo aos sujeitos processuais a busca da solução integral, harmônica e que melhor atenda aos interesses dos litigantes [13].

Em recente julgado, o STJ aplicou multa em Agravo Interno  por violação aos deveres de cooperação, boa-fé e lealdade processual. No caso, considerou o Tribunal que a parte sustentou sua pretensão em precedente manifestamente contrário ao caso concreto; além de ter apontado o precedente como vinculante, apesar de sua incidência ter sido patentemente excluída por força de modulação de efeitos [14].

Além do dever geral de cooperação, apontam-se como deveres anexos de cooperação do órgão julgador: esclarecimento, prevenção, consulta e auxílio.  

O dever de esclarecimento impõe ao órgão julgador se esclarecer junto às partes quanto a dúvidas que possua sobre as suas alegações, pedidos ou posições em juízo, a fim de que as decisões não se alicercem em ausência de informação ou na impressão equivocada dos fatos e alegações. Trata-se da concretização do dever de diálogo: na hipótese de um aspecto do processo não lhe parecer nítido de maneira satisfatória, o juiz deve esclarecer-se perante as partes, oportunizando-as a sanar qualquer tipo de dubiedade ou imprecisão.

O dever de esclarecimento não se restringe ao aspecto de o tribunal esclarecer-se, mas engloba também o dever de o juiz "esclarecer os seus próprios pronunciamentos para as partes" [15]. Assim, o dever de esclarecimento abrange duas vertentes: o dever de se esclarecer junto às partes acerca de fatos e alegações que lhes pareçam imprecisas; e dever de esclarecer os provimentos judiciais proferidos.

O dever de prevenção, por sua vez, consiste em um convite às partes para aperfeiçoarem as postulações apresentadas. O juiz deve advertir as partes sempre que o almejado êxito possa ser frustrado pelo uso inadequado do processo. Um exemplo dos deveres de esclarecimento e prevenção é a intimação da parte autora para emendar a petição inicial, sob pena de indeferimento, sendo necessário que o juiz indique com precisão o que deve ser corrigido ou completado (artigo 321 CPC).

Nesse sentido, o STJ deu provimento ao RMS n. 62.707/BA [16],  por considerar que o órgão judicial descumpriu o dever de cooperação, impossibilitando que a parte corrigisse o vício de representação processual, nos termos do artigo 76 do CPC. A Corte considerou que, ante o dever de cooperação, especialmente os de informação e de esclarecimento, o tribunal de origem deveria ter determinado a suspensão processual e designação do prazo razoável, com a explicitação clara e precisa da providência a ser tomada pelo impetrante, não bastando a intimação genérica sobre eventual ilegitimidade da parte. Sendo assim, reconheceu o error in procedendo e anulou o acórdão.

O dever de consulta, expresso como norma fundamental no artigo 10 do CPC, tem por escopo evitar decisões surpresa. Impõe a prévia intimação das partes acerca de elementos de fato ou de direito, ainda que conhecíveis de ofício, que não tenham sido objeto de debate processual. Trata-se de dever intimamente interligado com a faceta substancial do contraditório – direito de influenciar no desenvolvimento e resolução da controvérsia.

Por fim, o dever de auxílio impõe ao juiz ajudar as partes na superação de dificuldades encontradas para o exercício dos direitos, faculdades, ônus ou deveres processuais. Consiste em toda atividade do juiz na busca pela equalização das partes, para assegurar a paridade de condições de influenciar na construção do provimento. Busca impedir, por exemplo, que a parte obtenha uma decisão desfavorável porque não conseguiu obter documento ou informação relevante ao julgamento. Como exemplo, pode-se citar a exibição de documento ou coisa, prevista nos artigos 396 a 404 do CPC [17].

Importante pontuar que o dever de auxílio não ofende a imparcialidade do juiz, mas enfatiza o dever do magistrado de zelar pela igualdade material (artigo 139, I CPC). Deve ser compreendido pela ótica da busca do equilíbrio entre as partes e superação dos obstáculos encontrados por um dos sujeitos da relação processual, em especial (mas nãoT exclusivamente) quando uma das partes não está assistida por advogado.

Diante do brevemente exposto, pode-se concluir que o reconhecimento do caráter democrático do processo civil brasileiro impôs a releitura do conceito de participação e princípio do contraditório, aliado à necessidade de todos os sujeitos processuais observarem os deveres gerais de cooperação e boa-fé objetiva. Tais princípios são normas fundamentais previstas na parte geral do CPC, com eficácia irradiante para todas as fases e tipos de processo.


[1] A previsão do modelo de Estado Constitucional sob a rubrica de um Estado democrático de direito ou expressão similar é uma constante em diversas Constituições contemporâneas, a exemplo dos textos do Brasil (Artigo 1º da CF/88), Portugal (Artigo 2º da Constituição da República Portuguesa de 1974: "A República Portuguesa é um Estado de direito democrático […]") e Espanha (Artigo 1º da Constitución Española de 1978: "España se constituye en un Estado social y democrático de Derecho […]"). A Constituição italiana não fala em Estado de direito, mas explicita que o exercício da soberania pertence ao povo na forma da Constituição (Artigo 1º La Costituzione della Repubblica Italiana de 1947: "L'Italia è una Repubblica democratica, fondata sul lavoro. La sovranità appartiene al popolo, che la esercita nelle forme e nei limiti della Costituzione")

[2] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed., 12. reimp. Coimbra: Almedina, 2003, p. 92-93.

[3] BOVERO, Michelangelo. Contra o governo dos piores: uma gramática da democracia. Trad. Daniela Beccaria Versiani. Rio de Janeiro: Campus, 2002, p. 62-64.

[4] CABRAL, Antônio do Passo. Nulidades no processo moderno: contraditório, proteção da confiança e validade prima facie dos atos processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 114-115.

[5] Extrai-se dos artigos 9º e 10 do CPC/2015 a norma fundamental do contraditório substancial do processo civil, com a expressa proibição de decisão surpresa. Sobre o tema, desta autora, conferir: Livre convencimento motivado, faceta substancial do contraditório e conhecimento de matérias de ofício: distinções e convivência. Newsletter da ABDIR, v. 8, p. 1, 2013; e Da proteção contra surpresa processual e o Novo CPC. In: Lucas Buril de Macêdo; Ravi Peixoto; Alexandre Freire; Fredie Didier Jr. (coordenador geral). (Org.). Coleção novo CPC doutrina selecionada  parte geral. 1ed.Salvador: Juspodivm, 2016, v. 1, p. 595-618.

[6] ZANETI JUNIOR, Hermes. Processo Constitucional: O modelo constitucional do processo civil brasileiro. 4. ed.  Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 62-63.

[7] NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. 1. ed (data: 2008), 4. reimpr. Curitiba: Juruá, 2012, p. 215; 239-247.

[8] ZANETI JUNIOR, Hermes. Processo Constitucional: O modelo constitucional do processo civil brasileiro. 4. ed.  Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 55-61.

[9] Entende-se por normas fundamentais as normas reitoras do processo civil brasileiro, a partir e através das quais todos os dispositivos seguintes deverão ser lidos e interpretados.

[10] Antes mesmo da previsão expressa no artigo 6º do CPC/2015, a doutrina já reconhecia no Brasil a existência do princípio da cooperação e seus deveres anexos. A título exemplificativo, vejam-se: DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do princípio da cooperação no direito processual civil português. 1. ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2010; MITIDIERO, Daniel Francisco. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. 4. ed, rev., atual e ampl.  São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2021.

[11] Enunciado 374 FPPC: "O artigo 5º prevê a boa-fé objetiva".

[12] SANTOS, Igor Raatz dos. Os deveres de esclarecimento, prevenção, consulta e auxílio como meio de redução das desigualdades no processo civil. Revista de Processo, São Paulo, v. 36, nº 192, fev. 2011, p. 66.

[13] RHC nº 99.606/SP, relatora ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 13/11/2018, DJe de 20/11/2018.

[14] "2. Em sistemas processuais com modelo de precedentes amadurecido, reconhece-se a exigência não só de que os patronos articulem os fatos conforme a verdade, mas que exponham à Corte até mesmo precedentes contrários à pretensão do cliente deles. Evidentemente, não precisam concordar com os precedentes adversos, mas devem apresentá-los aos julgadores, desenvolvendo argumentos de distinção e superação. Trata-se do princípio da candura perante a Corte (candor toward the Court) e do dever de expor precedente vinculante adverso (duty to disclose adverse authority). 3. O presente caso não exige tamanha densidade ética. No entanto, não se pode ter como razoável que a parte sustente a pretensão em precedente manifestamente contrário ao caso em tela, apontando-o como vinculante em hipótese que teve sua incidência patentemente excluída, por força de modulação, omitindo-se sobre a existência da exceção. 4. A invocação do precedente vinculante na hipótese temporal expressamente excluída de sua incidência pelo próprio julgamento controlador configura violação dos deveres de lealdade, de boa-fé e de cooperação processual, ensejando a aplicação da multa do artigo 1.021, §4º, do CPC/2015, ante manifesta inadmissibilidade". AgInt nos EDcl no RMS nº 34.477/DF, relator ministro Og Fernandes, Segunda Turma, julgado em 21/6/2022, DJe de 27/6/2022.

[15] DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do princípio da cooperação no direito processual civil português. 1. ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 16.

[16] RMS n. 62.707/BA, relator ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 7/6/2022, DJe de 1/7/2022.

[17] Enunciado 519 FPPC: "Em caso de impossibilidade de obtenção ou de desconhecimento das informações relativas à qualificação da testemunha, a parte poderá requerer ao juiz providências necessárias para a sua obtenção, salvo em casos de inadmissibilidade da prova ou de abuso de direito".

Autores

  • é mestre em Direito pela UFPE, especialista em Direito Processual Civil e em Direito Civil, professora na graduação e pós-graduação da Faculdade Damas da Instrução Cristã e cursos jurídicos, defensora pública federal e coordenadora da Câmara de Coordenação e Revisão Cível da Defensoria Pública da União.

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