Opinião

Direito de arrependimento envolvendo a compra de videogames

Autores

  • Bernardo de Souza Dantas Fico

    é mestre em Direito pela Northwestern University bacharel em Direito pela USP especializado em Direito Digital Direitos Humanos e Direitos LGBT advogado no escritório Opice Blum Bruno e Vainzof Advogados Associados coordenador do Núcleo de Proteção de Dados da USP (NPD-Techlab) e gestor institucional do Legal Grounds Institute.

  • Bruno Blum Fonseca

    é advogado da área de TME (Tecnologia Mídia e Entretenimento) do Opice Blum e Bruno Advogados.

15 de agosto de 2022, 7h08

O direito de arrependimento é garantido pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC, Lei nº 8.078/1990) [1]. Foi assim incluído no rol de direitos dos consumidores em 1990, antes da ascensão da internet. Hoje, vivemos em um mundo virtual; virtualização esta intensificada com a pandemia de Sars-CoV-2. A indústria do entretenimento e dos games não é estranha a esta tendência, tendo aproveitado diversas oportunidades na internet. Neste contexto, surgem dúvidas sobre a aplicação do já clássico direito de arrependimento em casos disruptivos envolvendo a compra de produtos digitais, imprevisíveis para os autores do CDC, entre eles a sua aplicação no mundo dos videogames.

123RF
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O direito de arrependimento
Nos termos do artigo 49 do CDC [2], o direito de arrependimento confere ao consumidor a possibilidade de desistir de um produto ou serviço contratado fora do estabelecimento comercial, dentro de um prazo de sete dias. O arrependimento é um direito potestativo, isto é, basta ao consumidor indicar seu arrependimento para que ocorra a resilição do contrato e a devolução dos valores pagos com atualização monetária.

O "arrependimento" pode ser definido como o reconhecimento de que "[a] manifestação da vontade não [foi] externada de maneira absolutamente consciente e induvidosa. Ao revés, [que] o consumidor adquir[iu] o produto e tão somente na ocasião da entrega consegu[iu] perceber que a mercadoria não atende[ria] a suas expectativas legítimas" [3]. Nesse sentido, conforme a doutrina e a jurisprudência, o direito de arrependimento possui dois fundamentos independentes; ainda que inter-relacionados. São eles: o ficit informacional e o ficit de reflexão. Basta que um destes se verifique para que o direito de arrependimento seja aplicável.

O ficit informacional consiste na falta de acesso a informações que podem ser de interesse do consumidor (como tamanho, cor, modelo, durabilidade etc.) Contudo, a simples disponibilidade da informação não necessariamente afasta este ficit [4]. Para que o problema seja sanado, o consumidor deve, além de dispor das informações — etapa essencial — conseguir compreender como elas se traduzem na realidade. Isso muitas vezes só é possível quando se tem contato direto com o produto ou serviço, tendo-o em mãos para analisá-lo à vontade. Disso decorre a possibilidade de arrependimento de compras realizadas fora do estabelecimento (telefone, internet, redes sociais etc.), posto que a falta de acesso físico ao bem a ser adquirido limita a capacidade de colher e assimilar adequadamente as informações [5].

O ficit de reflexão, por sua vez, equivale à dificuldade de processar subjetivamente a compra a ser realizada. Naturalmente, como uma reflexão adequada depende das informações recebidas, um ficit informacional logicamente implica o consumidor não ter acesso aos elementos mínimos para refletir. Apesar disso, a perfeita disponibilidade de informações não impede eventual carência na reflexão. Este ficit pode ter diversas causas, incluindo: compras por impulso, pressão de vendedores, pressão de pares, emprego de publicidade abusiva, ou qualquer outra forma de importunação e/ou constrangimento.

Ao longo dos anos, a doutrina foi demarcando o significado desses dois critérios. Ainda assim, sua aplicação no mundo digital, inclusive nos videogames, pode ser complexa. Tomemos como o minimum viable product (MVP) [6] do comércio em videogames um sistema no qual se adquire moedas virtuais (coins) por meio de dinheiro real e, uma vez obtidas, as coins são utilizadas para compras dentro do jogo (in game) (itens consumíveis, itens persistentes, alterações estéticas etc.). Diversas questões decorrem deste cenário. O direito de arrependimento é aplicável a este tipo de compra? Se sim, como aplicá-lo? Pode-se desistir da compra das coins, das compras in game, ou de ambas? Como avaliar os ficits de informação e reflexão? Há formas de mitigá-los?

O arrependimento aplicado aos videogames
Partindo-se de uma leitura estritamente literal do artigo 49 do CDC, o simples fato de as compras dentro de jogos ocorrerem "fora do estabelecimento comercial"ensejaria a aplicação do direito de arrependimento. Apesar da interpretação literal ser um dos métodos consagrados da hermenêutica jurídica, não se pode ignorar a teleologia e a história do instituto do arrependimento. Assim, deve-se considerar não apenas se o contrato se consumou fora do estabelecimento, mas também a boa-fé do consumidor e se efetivamente esteve presente o ficit informacional ou de reflexão.

No tocante à boa-fé, é evidente que o consumidor não pode exercer o arrependimento visando obter vantagem indevida, o que configura abuso de direito. Por exemplo, se o jogador adquire moedas virtuais e as usa para comprar itens dentro do jogo, a primeira compra, das moedas virtuais, aperfeiçoou-se. Isto é, o jogador já demonstrou, por meio de sua conduta, que desejava adquiri-las, possibilitando ao jogo negar seu pedido de arrependimento da compra inicial. Todavia, ainda poderia discutir-se o arrependimento dos itens comprados in game e esta segunda compra pode, em alguns casos, ser desfeita pelo arrependimento. Se, no entanto, o jogador usar um item comprado e tentar posteriormente exercer seu arrependimento, ainda que dentro do prazo, este pedido poderia ser negado, também em virtude do aperfeiçoamento da compra. A extensão de uso que aperfeiçoa a compra dos itens in game dependerá do caso concreto.

Quantos aos déficits, dentro dos videogames, o ficit informacional ocorre com menor frequência, visto que muitos jogos permitem acessar uma prévia do item a ser adquirido. Por exemplo, há jogos que, já de início, disponibilizam uma quantia de sua moeda virtual. Nesse caso, desde o início, todos têm acesso à moeda virtual e seu funcionamento. Assim, mostra-se demasiado difícil reconhecer qualquer ficit informacional nas compras posteriores de moedas virtuais, pois o jogador já teve acesso ao mesmo bem, mesmo que em menores quantidades.

Por vezes, os itens in game podem ser testados previamente, usualmente em um ambiente controlado. Tal prática se assemelha no mundo físico aos provadores da loja de roupas. Em última análise, a possibilidade de "provar" um produto digital antes de adquiri-lo efetivamente pode implicar o afastamento dos ficits informacionais que justificariam um eventual arrependimento. Os videogames têm a possibilidade de — mediante uma boa arquitetura de seu sistema de vendas — reduzir drasticamente seus riscos de exercício do direito de arrependimento, opção que para compras online de produtos físicos é de difícil resolução. Por isso, seguir estratégias que permitam ao jogador conhecer efetivamente os produtos digitais que pretende adquirir cria maior segurança jurídica nas transações em videogames, além de possibilitar maior satisfação dos jogadores com suas compras.

Contudo, ainda há que se enfrentar eventual ficit de reflexão nas compras envolvendo videogames. Por exemplo, particularmente no mundo dos games online, é recorrente que determinados itens sejam ofertados em tempo ou quantidade limitados, como itens promocionais ou temáticos. Assim, o jogador é instigado a adquirir esses bens limitados rapidamente, sem maior reflexão, sob pena de não mais poder obtê-los. Não os adquirir rapidamente pode significar deixar de ter o item, enquanto demais jogadores o ostentam. Nestes casos, é razoável afirmar que elementos externos prejudicam a reflexão do indivíduo? Se sim, tal pressão externa pode constituir um ficit capaz de justificar o direito de arrependimento?

Ainda, nas salas de jogos, misturam-se jogadores novatos com experientes, já mais avançados no jogo. Assim, um elemento subjetivo a ser considerado é a pressão entre pares. De forma a evitar ficar para trás do restante do grupo, o novato pode sentir-se impelido a comprar irrefletidamente produtos digitais para tentar alcançá-los mais rapidamente. Ainda, não são incomuns grupos/alianças entre jogadores, o que pode gerar a expectativa de que todos os membros do grupo adquiram certos itens. Esta dinâmica de pressão entre pares é agravada em face da já abordada limitação temporal ou quantitativa de itens digitais.

Outro agravante é o potencial viciante de alguns jogos, nos quais pode haver elementos análogos aos de jogos de azar. No caso das loot boxes (caixas de recompensa), por exemplo, o jogador é instigado a seguir adquirindo produtos digitais, de forma a tentar a sorte para ganhar melhores itens. Sem entrar no mérito da legalidade dessa prática, limitamo-nos a alertar para a possível constituição de um ficit de reflexão nos jogadores, ensejando que as empresas responsáveis disponibilizem ao consumidor o direito de se arrepender, dentro do prazo, de compras que podem ter sido feitas no impulso viciante desses jogos.

Além disso, muito amiúde o próprio jogo/aplicativo pressiona o jogador. Não raro as empresas se valem de pushs, landing pages, in-mail, pop-ups e outros recursos de notificação, para constantemente instigar os usuários a comprar novos itens e aproveitar a mais recente promoção. O uso constante desta comunicação assemelha-se à figura do “vendedor insistente”, que perturba repetidamente o comprador até que o convença, por cansaço, a adquirir o produto. A inexistência de uma pessoa física realizando este tipo de pressão não deve descaracterizar a prática abusiva.

Ademais, caso o videogame se utilize de propaganda que possa ser qualificada como abusiva nos termos do Artigo 37, §2°, do CDC [7], e da regulamentação do Conar (Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária) [8], isto também seria causa bastante para o reconhecimento do direito de arrependimento. Segundo a doutrina, a publicidade é considerada abusiva sempre que se aproveitar da vulnerabilidade do consumidor para oferecer-lhe produtos [9].

Para os videogames com jogadores crianças e adolescentes há, adicionalmente, a possibilidade de que a publicidade se aproveite do ficit de julgamento e experiência destes jovens. Nestes casos, deve-se valer também de uma análise à luz do ECA na caracterização da abusividade da publicidade.

Conclusão
Há a possibilidade de se aplicar o direito de arrependimento nas compras ocorridas em videogames. ficits de informação, ainda que possivelmente presentes, são de fácil mitigação, dependendo de uma boa arquitetura do sistema de vendas. Já no tocante ao ficit de reflexão, deve-se analisar in casu se há elementos que perturbam, ainda que involuntariamente, a pacífica ponderação do consumidor em seu processo de compra.

Aplicável o direito de arrependimento, cabe ao mercado de games buscar a implementação de medidas mitigadoras. Particularmente, sugere-se voltar esforços a sanar o ficit prevalente neste mercado, o de reflexão, observando os fatores que influenciam na decisão dos jogadores, como a existência de pressões indevidas.

Se isso aponta caminhos para avançar o debate desta controvérsia em território nacional, há que se lembrar de que videogames são, não raras vezes, internacionais. Assim, aqueles que sejam operados por empresas sediadas no exterior poderiam, por exemplo, recusar-se a cumprir com o direito de arrependimento garantido pelo CDC. Esta perspectiva internacionalizada da questão faz jus a análise apartada considerando as particularidades da interação transnacional entre agentes, e a interlocução entre as leis aplicáveis ao caso concreto.


[1] Link para o CDC: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm
[2] Art. 49. do CDC: "O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de
recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora
do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio. Parágrafo único. Se o consumidor exercitar
o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo
de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados".
[3] Consumer's right to cancellation: hermeneutical challenge and hard cases Revista de Direito do Consumidor | vol.
105/2016 | p. 203 – 235 | Maio – Jun / 2016 DTR201620383, p. 4.
[4] Consumer's right to cancellation: hermeneutical challenge and hard cases Revista de Direito do Consumidor | vol.
105/2016 | p. 203 – 235 | Maio – Jun / 2016 DTR201620383, p. 5.
[5] Consumer's right to cancellation: hermeneutical challenge and hard cases Revista de Direito do Consumidor | vol.
105/2016 | p. 203 – 235 | Maio – Jun / 2016 DTR201620383, p. 4.
[6] Minimum Viable Product ou "Produto Viável Mínimo" é a expressão utilizada no empreendedorismo para se referir
ao modelo mais simples que um produto ou serviço pode adotar para ser lançado em mercado com a menor
quantidade de esforço e desenvolvimento.
[7] Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. […] § 2°. É abusiva, dentre outras a publicidade
discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da
deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o
consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.
[8] http://www.conar.org.br/
[9] MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do
Consumidor. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 864: "Publicidade abusiva. Definição: A publicidade
abusiva é, em resumo, a publicidade antiética, que fere a vulnerabilidade do consumidor, que fere valores sociais
básicos, que fere a própria sociedade como um todo".

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    é mestre em Direito pela Northwestern University, bacharel em Direito pela USP, especializado em Direito Digital, Direitos Humanos e Direitos LGBT, advogado no escritório Opice Blum, Bruno e Vainzof Advogados Associados e coordenador do Núcleo de Proteção de Dados da USP (NPD-Techlab).

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    é advogado de Consultivo Digital do Opice Blum, Bruno e Vainzof Advogados Associados.

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