Opinião

Colaboração premiada e o momento de cumprimento da sanção pecuniária

Autor

  • Galtiênio da Cruz Paulino

    é mestre pela Universidade Católica de Brasília doutorando pela Universidade do Porto pós-graduado em Direito Público pela ESMPU e em Ciências Criminais pela Uniderp orientador pedagógico da ESMPU ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República e membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ.

14 de agosto de 2022, 13h09

É premissa intransponível para a celebração de um acordo de colaboração premiada que o colaborador cesse a atividade delitiva. Diante desse dever, decorrente dos princípios da lealdade e da boa-fé, norteadores do acordo de colaboração premiada, é necessário buscar "a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais" [1].          

Esse objetivo de cunho pecuniário é alcançado pelas obrigações de caráter pecuniário assumidas pelo colaborador no momento que assina um acordo de colaboração premiada. São os efeitos patrimoniais do acordo.

As obrigações pecuniárias em um acordo podem ser de três espécies: sancionatória; ressarcitória ou reparatória; e perdimento. A obrigação pecuniária sancionatória possui natureza penal e, desse modo, deve ser fixada em consonância com o objetivo de prevenção, geral e especial, das sanções criminais. Já a obrigação ressarcitória ou reparatória, consistente no dever de o colaborador reparar o dano ocasionado com a prática delitiva ou ressarcir a vítima, possui natureza cível, tendo seu conteúdo material fixado pelo Código Civil no artigo 927 [2]. Por fim, a obrigação de perdimento, que possui natureza penal e se destina a impedir o enriquecimento ilícito do colaborador. A natureza diversa das três obrigações pecuniárias acima especificadas influenciará no momento de cumprimento da obrigação.

No caso da obrigação sancionatória, de natureza penal, como é o caso da pena de multa, a execução pressupõe uma condenação, decorrente de um processo que tenha sido observado o contraditório e a ampla defesa. A penalização criminal só pode ser imposta pelo juízo, após um prévio processo.

No acordo de colaboração premiada, com base na sistemática do limite sancionatório, a "pena" enquanto obrigação sancionatória fixada no acordo, assim como acontece com a "pena corpórea" (restrição da liberdade), assume a função de limitar a incidência da sanção em uma possível (futura) condenação. Não é uma pena propriamente dita, que será fixada pelo juízo na condenação, mas um limite de sanção. Ou seja, se em um ou diversos processos houver a fixação da pena de multa em 500 dias-multa e no acordo tiver sido estabelecido 300 dias-multa, o colaborador cumprirá até o limite fixado no acordo. Caso a (s) condenação (ões) sejam inferiores a 300 dias-multa, será cumprido o patamar da condenação. Em suma, as obrigações pecuniárias de caráter sancionatório, para serem cumpridas, necessitam de uma prévia condenação, não podendo ser executadas, em regra, após a homologação do acordo.

Com relação à segunda e à terceira espécies de obrigações pecuniárias, o momento da execução da obrigação deve ser após a homologação do acordo, nos termos fixados no pacto, buscando evitar o proveito direto (perdimento) ou indireto (reparar o dano) com a prática delitiva. Essas duas obrigações pecuniárias, diferentemente das sanções corpóreas e das obrigações pecuniárias sancionatórias — relacionadas com o direito de liberdade do acusado , envolvem discussões de caráter patrimonial.

Conforme ressaltado acima, a obrigação pecuniária de reparar o dano ocasionado com a prática delitiva ou de ressarcir a vítima possui natureza cível, sendo regida, desse modo, pelo Código Civil no artigo 927. Essa obrigação, segundo o referido preceito normativo, pode surgir independente da ocorrência de culpa, nos termos especificados na lei.

Diante desse cenário, o artigo 4º, inciso IV da Lei nº 12.850/13 estabelece que o colaborador terá direito aos benefícios previstos caso, em razão de sua colaboração, ocorra uma ou mais hipóteses previstas no referido artigo, entre as quais está a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações praticadas pela organização criminosa. Esse dispositivo engloba o perdimento e o dever de reparar os danos praticados pela atividade delitiva.

A reparação deverá ocorrer independente de uma prévia condenação do colaborador, enquanto mecanismo de recomposição da situação fática à estrutura anterior à prática criminosa. A natureza cível da obrigação dispensa que se adentre na culpabilidade criminosa do colaborador, possibilitando, desse modo, o cumprimento da obrigação independentemente de qualquer condenação.

Já a obrigação de perdimento, que também se funda no artigo 4º, inciso IV da Lei nº 12.850/13, possui natureza penal e se destina a impedir o enriquecimento ilícito direto do colaborador com a prática delitiva.

Atualmente, a perda dos bens resultantes da prática delitiva é preconizado como instrumento alternativo de combate à criminalidade organizada e aos delitos econômicos [3]. Diante dessa realidade, surgem no Brasil o artigo 7º da Lei nº 9.613/98 e o artigo 91 do Código Penal, que estabelecem a perda, em favor da União  e dos Estados, nos casos de competência da Justiça Estadual , de todos os bens, direitos e valores relacionados, direta ou indiretamente, à prática de crime, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé. O sistema se aperfeiçoou em 2012 com o confisco pelo equivalente.

O perdimento em um acordo de colaboração premiada, porém, mesmo possuindo natureza criminal, não se confunde com o previsto no Código Penal, que só ocorrerá após uma sentença penal condenatória. Caso previsto no acordo, o perdimento poderá ocorrer antes de uma condenação, visando impedir que o colaborador obtenha e usufrua de vantagem patrimonial auferida mediante prática criminosa.

Ora, como admitir que um colaborador possa continuar usufruindo de bens que declaradamente afirma que possuem natureza ilícita?

Não se pode olvidar que a colaboração premiada, enquanto mecanismo de diversão processual, prima pelo princípio da cooperação processual, sendo que, repita-se, o perdimento de bens e valores é um dos resultados que se deve buscar em um acordo de colaboração premiada. Aguardar a ocorrência de uma sentença condenatória impossibilita que se possa aferir se o acordo é útil, ou seja, apto a proporcionar os resultados que se destina. O perdimento é vinculado à origem ilícita dos bens, declarada pelo colaborador, e não ao mérito (ilicitude ou não) das práticas delitivas narradas.

O mérito dos fatos, aferido em uma sentença condenatória, está vinculado às sanções corpóreas e às pecuniárias sancionatórias, que envolvem o direito de liberdade, enquanto o perdimento diz respeito à ilicitude da origem dos bens, ou seja, uma discussão de caráter eminentemente patrimonial.

Vale destacar que a natureza de diversão processual da colaboração premiada, enquanto instituto de caráter negocial, está presente em institutos como a transação penal, a suspensão condicional do processo e o acordo de não persecução penal, que impõem a prévia reparação do dano como requisito para incidência, não necessitando de prévia condenação.

Aguardar uma decisão condenatória para ocorrer o perdimento de bens declaradamente ilícitos proporciona um contexto de conivência com um contexto de usufruto por parte do colaborador de bens sabidamente (indiscutivelmente) ilícitos, situação que atenta contra qualquer sentimento de justiça de uma sociedade, bem como proporciona um contexto de manutenção da atividade delitiva do colaborador, que impossibilita um acordo de colaboração premiada.


[1] "Artigo 4º O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados:

(…)

IV – a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa;

(…)".

[2] Artigo 927. Aquele que, por ato ilícito (artigos 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

[3]    MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, Roteiro de atuação "persecução patrimonial e administração de bens" — 2ª Câmara de Coordenação e Revisão, Criminal e 5ª Câmara de Coordenação e Revisão, Combate à corrupção — Brasília: MPF, 2017. P. 13-15.

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    é mestre pela Universidade Católica de Brasília, doutorando pela Universidade do Porto, pós-graduado em Direito Público pela ESMPU e em Ciências Criminais pela Uniderp, orientador pedagógico da ESMPU, ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República e membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ.

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