Opinião

O imperativo da ética no desenvolvimento do projeto democrático

Autor

  • Reis Friede

    é desembargador federal diretor-geral da Escola de Magistratura Federal da 2ª Região (biênio 2023/25) ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21) mestre e doutor em Direito e professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).

13 de agosto de 2022, 13h18

A palavra ética (feminino substantivado do adjetivo ético; do grego ethikós, pelo latim ethicu) traduz, em sua acepção abrangente, o estudo dos juízos de apreciação referente à conduta humana suscetível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente a determinada sociedade, seja de modo absoluto (cf. Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa, 2ª ed., revista e ampliada, Ed. Nova Fronteira, 1986, p. 733).

Pode-se dizer que a ética está em todo o lugar, impondo, ainda que de forma implícita, a conduta desejável, transformando-se numa espécie de legislador do comportamento moral da sociedade. Vale dizer, não existe questão econômica ou social que possa, atualmente, dispensar uma reflexão ética.

Neste norte, todo o indivíduo esbarra, quotidianamente, com a necessidade de guiar sua conduta por preceitos que se consideram mais apropriados, e estes preceitos são aceitos intimamente e reconhecidos até mesmo como obrigatórios num contexto social.

Não se pode negar que, geralmente, a ética se aplica a situações que suscitam questões morais e geram conflitos de valores. Nesse contexto, a dimensão interrogativa e crítica da abordagem ética sustenta-se, em grande parte, na troca de pontos de vista, através de discussões e debates.

É importante assinalar que a reflexão ética há de partir sempre de um saber espontâneo; ou seja, todo o homem deve saber a priori que existem ações que não devem ser praticadas e outras que, ao contrário, devem ser sempre praticadas. Desta feita, é forçoso concluir que, assim como o Direito, a Ética também se perfaz através de um mundo cultural de projeção comportamental, traduzindo o conceito-chave do denominado dever-ser em virtual oposição à concepção do chamado mundo do ser inerente ao mundo da realidade.

Sob esta ótica, é obrigatório deduzir que, em certas situações, o conceito amplo de ética, como valor da coletividade, em suas variadas expressões, abrange não só a denominada moral social (conjunto de costumes e convenções sociais), como igualmente o próprio Direito.

Contudo, apesar de certa convergência entre ética e direito, esses dois conceitos são distintos, sendo que o primeiro acode o segundo no estabelecimento e interpretação de normas legais. A ética possibilita a evolução da lei, enquanto a segunda, pela força vinculante que a evidencia, assegura a consolidação dos valores defendidos em nossa sociedade.

Entretanto, confiar que, se é legal, é moral, às vezes pode nos conduzir a uma meia verdade e até mesmo a uma mentira. A lei não concede tudo e não precisa entrever tudo; a lei não deve se sobrepor à concepção moral dos indivíduos, mas servir como um sinal de referência.

Oportuno lembrar que a prestação jurisdicional não se esgota apenas na rigorosa observância da Constituição e das leis que com ela convergem, posto que a atuação do julgador deve ser necessariamente legitimada, ao mesmo tempo em que deve possuir um inconteste conteúdo ético.

A ética, por outro lado, respeita os preceitos legais inseridos nas "cartas de direitos", vez que os valores transmitidos por nossas sociedades ali estão consagrados. A responsabilidade ética do ser humano consiste em conciliar imposições normativas e comportamentos cotidianos.

Em verdade, a ética é indissociável do comportamento e das circunstâncias que se apresentam ao ser humano, e espera-se que haja harmonia entre o que sabemos e o que fazemos. Todos os dias, seja no trabalho ou na vida pessoal, escolhemos considerar certos eventos como merecedores de atenção, e outros como detalhes insignificantes. Esse exercício é demasiadamente ético e requer a máxima vigilância.

Por efeito conclusivo, é lícito concluir que o comportamento ético é uma exigência inalienável (e sem qualquer exceção) de toda atividade humana, independente de meridianos e paralelos (respeitadas, por evidente, as diferentes culturas), e necessariamente presente nas mais diversas e diferentes funções laborais.

Trata-se, portanto, de uma exigência que não está afeta a nenhuma profissão em particular, estando, ao reverso, presente, sobretudo, naquelas em que há uma maior relevância pública, como, por exemplo, nos julgamentos procedidos pelos juízes, através do Poder Judiciário, assim como nas notícias publicadas pela classe jornalística, através da (indispensável) instituição da imprensa.

Desta feita, assim como seria absolutamente inaceitável a existência de julgadores parciais, — que conduzissem seu mister contaminados por contingentes ideológicos, e que se portassem, na condução da prestação jurisdicional, à margem da lei (e de sua correta e técnica hermenêutica) — com igual razão, resta socialmente inadmissível idêntico comportamento por parte dos jornalistas, desafiador de seu insuperável compromisso de transmitir os fatos à luz de um compromisso inalienável com a estrita verdade factual, sem margens a interpretações desviantes da isenção e, sobretudo, dos ditames éticos e, acima de tudo, legais. Todavia, apesar da obviedade dessas assertivas, é cediço reconhecer a (lamentável) existência de muitos profissionais brasileiros que se encontram muito distantes desta insuperável obrigação, pautando seu atuar ao arrepio dos respectivos códigos de conduta, por interesses próprios (e, na maioria dos casos, inconfessáveis), inclusive através da prática de atos ilegais (muitas vezes, inclusive, de forma até mesmo enaltecida), conforme (reiteradamente) a história recente do país tem testemunhado.

Um desses emblemáticos casos refere-se ao crime de furto (qualificado) perpetrado por ocasião do anúncio da lei de anistia, momento em que, aproveitando-se de um descuido do ministro da Justiça Petrônio Portela, os jornalistas Etevaldo Dias e Orlando Brito subtraíram, do gabinete governamental, os originais da lei de anistia, permitindo que o jornal O Globo obtivesse, de maneira escusa, um "furo de reportagem", estampando em sua primeira página o texto da lei que sequer havia sido publicado.

Por muito menos, e em necessário contraponto, em dezembro de 2018, foi sumariamente demitido da revista alemã Der Spiegel o premiado profissional Claas Relotius, que confessou, em algumas reportagens, ter falseado detalhes de entrevistas (prática lamentavelmente comum no Brasil) realizadas pelo mesmo e publicadas no prestigioso periódico epigrafado. Apesar de todos os seus reconhecidos méritos jornalísticos, Claas não foi poupado de exemplar punição, além de ser execrado pela comunidade democrática, encerrando em definitivo a sua carreira.

O fato é que, mesmo um julgamento unânime em relação à validade e aceitabilidade de um discurso ético não pode garantir que este "modelo" será observado por todos, em cada situação particular. Isto porque certos padrões éticos podem ser reconhecidos como sendo bastante válidos no momento de sua elaboração, mas não criam, necessariamente, a motivação para que se aja em conformidade com eles em uma situação real, posto que aí podem aparecer interesses egoístas e estratégicos que às vezes levam um profissional a certas transgressões, com o objetivo de alcançar determinados fins.

Contudo, embora não dominemos todos os determinantes das situações nas quais atuamos, devemos responder por nossas tentativas de agir sobre isso.

Há quem diga que "a vida é um jogo que deve ser jogado a sério". E se a vida é um jogo, fica sinalizado que o risco de perder está sempre presente. Isto porque a questão da ética leva à outra demanda, que é a da responsabilidade. Neste sentido, a reprovação de certa atuação somente é possível quando o sujeito que assim se comporta é responsável pelos seu atos, podendo optar entre duas ou mais alternativas e agir consoante sua vontade.

Vale dizer, ética é a entrelinha em que o profissional assume sua liberdade individual e seu senso de discernimento de acordo com a hierarquia de seus valores.

Contudo, muitos profissionais esquecem o papel que devem representar em um universo de trabalho, e esta noção é essencial para avaliar a qualidade do seu trabalho. Se desconhecemos a nossa função, não conseguimos aferir o quão bem estamos ou não.

Verifica-se, com os dois diferentes exemplos, como é tratado, nos países democráticos e no Brasil, o imperativo da ética, sendo certo que neste último vilões podem ser considerados heróis, dependendo (apenas) do contexto em que a história é narrada e o crime é perpetrado.

Pode-se dizer que cada jornalista, como indivíduo, tem um conhecimento variável das regras da profissão e uma moralidade específica, sendo que seu compromisso com a ética deve ser refletido na prática diária, vez que sua palavra é amplamente divulgada.

A sociedade dá limites e liberdades, sendo que a ética traduz a expressão de valores ou princípios que devem sustentar a ação responsável das pessoas.

Vale dizer, cada indivíduo deve aprender a desempenhar seu papel como membro de uma sociedade envolvido no seu desenvolvimento como projeto democrático.

Dito isso, torcemos, destarte, que a democracia verdadeira e substantiva chegue finalmente ao Brasil, para que o imperativo da ética e a prevalência da legalidade confiram ao país o ambicionado título de genuína nação democrática.

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    é desembargador federal, presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), mestre e doutor em Direito e professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).

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