Diário de Classe

O livre convencimento judicial no direito comparado e na filosofia

Autores

  • Luã Jung

    é graduado em Direito mestre e doutor em Filosofia professor do PPG Direito Unesa-RJ professor convidado da ABDConst membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e advogado.

  • Ariel Stopassola

    é advogado pós-graduado em Direito Processual do Trabalho pela Universidade de Caxias do Sul (2007) mestrando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

13 de agosto de 2022, 8h04

O filósofo norte-americano Richard J. Bernstein afirmava que a dicotomia entre concepções objetivistas e relativistas na filosofia moderna é um sintoma da "ansiedade cartesiana": a busca por "algum ponto fixo, alguma pedra estável sobre a qual podemos assegurar nossas vidas contra as vicissitudes que constantemente nos ameaçam" [1]. Para Bernstein, isso nos leva a um movimento pendular: "ou há algum suporte para o nosso ser, uma fundação fixa para o nosso conhecimento, ou nós não podemos escapar das forças da escuridão que nos envolvem com loucura e caos intelectual e moral" [2]. A ansiedade diagnosticada por Bernstein remete à segunda meditação de Descartes, cuja preocupação consiste em encontrar "apenas uma coisa que seja segura e incontestável", "algo certo", ou, se isso não for possível, pelo menos "aprender com segurança que não existe nada no mundo de certo" [3].

No Direito, esse movimento pendular já havia sido representado na peça de Shakespeare Medida por Medida, como lembra o professor Lenio Streck [4]. Ângelo, a personagem que deve julgar Cláudio por ter fornicado antes do casamento com Julieta, crime cuja pena era a morte, mostra-se em um primeiro momento irredutível diante de Isabela, irmã de Cláudio: "A lei, não eu, condena o seu irmão. Se fosse meu parente, irmão ou filho, seria o mesmo. Ele morre amanhã". Em um segundo momento, no entanto, ao entrever a beleza da jovem Isabela, Ângelo muda a sua posição abruptamente e oferece que, se ela o amasse em retorno, seu irmão seria poupado. "De escravo da lei, de escravo da estrutura, do "que está dado", Ângelo se transforma em "senhor da lei", "senhor dos sentidos" [5].

Assim, podemos afirmar que o dualismo objetivismo-subjetivismo é uma patologia do pensamento moderno que se instaura nos mais variados campos do saber e cuja terapia se desenvolve a partir da virada linguística e da crítica à relação Sujeito-Objeto. Nos próximos parágrafos, pretendemos fazer uma provocação a uma das manifestações desse dualismo que persiste no pensamento jurídico: a suposta superação da avaliação tarifada da prova pelo livre convencimento. Em que pesem todas as críticas desenvolvidas por Streck, a abordagem do livre convencimento na dogmática jurídica nacional, na maioria dos casos, constitui uma caricatura epistêmica que potencializa a discricionariedade judicial. Assim, com o intuito de (re)introduzir e fomentar o debate acerca deste conceito, pretendemos indicar duas possibilidades de abordagem: (1) a análise comparada e (2) a crítica filosófica.

I – O livre convencimento no direito comparado: a experiência portuguesa.
Portugal codificou a livre apreciação da prova e o julgamento da matéria de fato a partir da prudente convicção do julgador, salvo quando a lei exigir determinada forma essencial (artigo 607º, nº 4 do CPC de 2013). Neste ponto, nenhuma discrepância significativa com o sistema brasileiro. Mas, se é natural comparar para detectar as diferenças — porque as divergências entre os sistemas jurídicos são mais importantes do que as semelhanças [6] —, a principal diferença reside na estrutura do dever de fundamentação, tanto das petições, quanto da decisão judicial.

As questões de fato e de direito devem ser lançadas em ordem alfabética ou numeral, que o CPC português denomina de "articulados". Ao cabo, a decisão judicial deve seguir o mesmo padrão lógico, com o registro ordenado de quais fatos julga provados e quais reputa não provados. Para chegar à conclusão sobre a matéria fática, o julgador deve seguir determinado curso ou "fórmula" legal; esse iter compreende um encadeamento justificativo, necessariamente racional, construído dialeticamente, a partir da análise crítica da prova produzida. O fato provado/não provado poderá ser revisado pelo Tribunal da Relação (segunda instância). Já o Supremo Tribunal de Justiça, embora restrito às "questões de direito", pode sindicar qual foi o itinerário percorrido pela decisão recorrida para chegar a conclusão sobre as premissas fáticas. E nesse aspecto, julgamos, reside a principal diferença com o sistema brasileiro.

Eis o caminho obrigatório da decisão de mérito em Portugal: "Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência" (artigo 607º, nº 4, CPC).

Embora o código lusitano assegure a livre apreciação da prova – porque ainda caudatário da cisão "questão de fato" x "questão de direito", cuja dicotomia é sabidamente anti-hermenêutica e que remonta ao velho positivismo exegético, pelo qual ao intérprete bastaria "acoplar" o fato à norma [7], é possível afirmar que, no sistema português, a atribuição de sentido à prova (Sinngebung) está altamente condicionada à necessidade de justificação exaustiva, que constrange e, portanto, limita, a conclusão a que chegará o julgador sobre a matéria de fato. Por isso, podemos afirmar que em Portugal o convencimento "não é tão livre assim".

Nesse sentido, face à estrutura dos articulados e sindicabilidade (forte) sobre os fundamentos da decisão judicial (que, aliás, possui estatura constitucional — artigo 205º, nº 1, da Constituição da República de Portugal), o livre convencimento não é necessariamente combatido pela doutrina ou questionado pela jurisprudência lusitana, por não ser exatamente "um problema" naquele país.

Pela via recursal, os Tribunais da Relação devem formar "a própria" convicção sobre os fatos da causa, se provocados, enquanto o Supremo Tribunal de Justiça, em que pese não promova a revaloração das provas, exerce a função cassatória das decisões que não observem o percurso correspondente ao método de análise crítica da prova. Em suma, o STJ interfere na conclusão sobre o fato, determinando novo julgamento [8].

Portanto, existem condicionantes para o tribunal chegar às conclusões sobre os fatos. E essas balizas estão no direito processual há mais de 500 anos, desde as Ordenações Manuelinas (1521), segundo as quais a sentença deve observar a prova dos autos, ainda que "a consciência [do julgador] dite o contrário" [9]. Até hoje a conclusão sobre a matéria de fato deve obediência a determinados critérios: observância aos limites do pedido ou defesa; licitude da prova e dos meios legais de sua produção; compatibilização/valoração da prova sem justificação surpresa ou externa, e assim por diante. São garantias processuais. Por isso, o convencimento não é (e não pode ser) livre de parâmetros ou constrições.

Não se trata de tarifar a prova; a livre apreciação prevista no CPC Português reside na possibilidade de compatibilização sem definição prévia do peso de cada prova (há exceções conforme dito). A "retranca" processual vem antes: é livre para apreciar, mas a liberdade deve atender a critérios, sem os quais a decisão é anulada, inclusive sobre a matéria fática.

No Brasil, o livre convencimento parece ter alçado voo para obtenção de um juízo livre sobre a prova, desconstrangido e sem limitações. Qualquer aceno à revista de premissas fáticas no âmbito dos Tribunais Superiores praticamente inviabiliza qualquer tentativa (vide Súmula 279 do Supremo Tribunal Federal, Súmula 7 do Superior Tribunal de Justiça e Súmula 126 do Tribunal Superior do Trabalho) [10]. Há exceções, raríssimas, quando o tribunal superior entende por promover a requalificação jurídica do fato [11], mas a partir das premissas (fáticas) ditadas pelo acórdão recorrido.

Essa nos parece a principal diferença entre Portugal e Brasil. O STJ lusitano examina o percurso para chegar às conclusões fáticas; aqui, os tribunais de justiça ou regionais são soberanos nas conclusões sobre as premissas fáticas; o percurso raramente é sindicado. Por isso, a importância de enaltecer os requisitos previstos no artigo 489, § 1º do CPC brasileiro.

II – O livre convencimento como questão filosófica
Em que pesem os esforços da Crítica Hermenêutica do Direito, o tema do livre convencimento, como indicado acima, é abordado por boa parte da dogmática nacional de maneira caricatural. Ao lermos um influente comentário ao artigo 155 do CPP, por exemplo, nos deparamos com afirmações do tipo "a existência da verdade é sempre relativa, pois o que é verdadeiro para uns, pode ser falso para outros". Em outro manual, afirma-se que "o juiz é livre na formação de seu convencimento, não estando comprometido por qualquer critério de valoração prévia da prova, podendo optar livremente por aquela que lhe parecer mais convincente".

O pensamento jurídico nacional também é fortemente influenciado por autores internacionais cuja adesão à noção de livre convencimento é sustentada por premissas filosóficas mais densas, ainda que igualmente contraditórias. Recentemente, foi publicado artigo na revista NEJ — Novos Estudos Jurídicos em que desenvolvemos críticas às concepções de autores como Luigi Ferrajoli, Michele Taruffo e Nicolás Guzmán acerca do tema [12]. Como exposto no artigo, os pontos em comum entre os autores acerca do livre convencimento podem ser assim sintetizados: I – a adoção da concepção de verdade como correspondência; II – a restrição da concepção de verdade a proposições empíricas; III – a defesa de uma verdade relativa a partir de uma perspectiva falibilista e IV – a conciliação destas concepções com a ideia de livre convencimento.

Constata-se, assim, a repristinação de pressupostos positivistas superados pela filosofia da segunda metade do século 20. Seja na filosofia analítica, a partir da crítica de Quine aos dogmas do empirismo ou a partir da crítica de Sellars ao mito do dado, seja no âmbito da filosofia continental, em que autores como Heidegger e Gadamer apresentam a anterioridade da dimensão intersubjetiva da linguagem em relação às descrições das ciências, o fato é que a teoria da verdade como correspondência [13], tal como transmitida pela tradição realista (ingênua), foi rejeitada pela filosofia contemporânea da linguagem. Ferrajoli, Taruffo e Guzmán, a pretexto de manutenção desta concepção, adotam a definição semântica da verdade desenvolvida pelo lógico Alfred Tarski, na tentativa de evitar a carga metafísica associada ao realismo filosófico. Todavia, nos textos dos autores, a teoria de Tarski é sempre referida en passant, como um subterfúgio argumentativo e sem o devido aprofundamento teórico. E, de qualquer maneira, a teoria de Tarski ignora o problema acerca das condições de emprego do conceito de verdade, de maneira que a simples adoção de sua definição por parte de Ferrajoli e Taruffo acaba por ser inócua diante de seus propósitos (a defesa da verdade em relação a afirmações empíricas, em detrimento de afirmações normativas).

O segundo ponto a partir do qual sustentam a defesa do livre convencimento judicial — a restrição do conceito de verdade a proposições empíricas —, por sua vez, representa a manutenção do dualismo positivista entre questões de fato e questões de valor. A partir de uma crítica interna ao texto dos próprios autores, constata-se a sua incoerência ao adotarem a noção popperiana de falibilismo. Para Popper [14], a precedência de hipóteses teóricas prévias na formulação de teorias científicas vincula a investigação científica a standards normativos (ou, em outros termos, valores) que guiam o processo de corroboração de hipóteses. Assim, torna-se sem sentido a dicotomia fato/valor, uma vez que mesmo as teorias descritivas pressupõem conceitos normativos.

De maneira reiterada, Ferrajoli, Taruffo e Guzmán afirmam que não se deve falar em verdades "absolutas", mas em verdades relativas. Afinal, uma meia verdade não seria uma falsidade? A ideia de falibilismo a partir da qual os autores defendem esta tese está muito mais vinculada à dialética negativa em que o desenvolvimento do conhecimento ocorre. Isto é, tal como para Gadamer e sua apresentação do círculo hermenêutico, colocar a consistência de uma teoria incessantemente à prova. Isto não nos leva ao estranho conceito de "verdade relativa" em contraposição à "verdade objetiva" de que tratam os autores, mas à constante confrontação com teorias adversárias que proponham o falseamento de nossas concepções ou, dizendo em termos gadamerianos, à abertura permanente ao diálogo.

Por fim, Ferrajoli propõe que a passagem da prova tarifada ao livre convencimento guarda um paralelo em relação à evolução da metodologia científica. Enquanto as provas tarifadas seriam vinculadas ao método dedutivo, o livre convencimento estaria de acordo com a correta metodologia indutiva (a formulação de teses gerais a partir de constatações individuais e circunstanciais). Todavia, esta posição é contrária mais uma vez ao falibilismo sustentado pelo próprio autor. Grande parte de A lógica da investigação científica de Popper consiste em uma crítica à metodologia indutiva a partir da precedência de hipóteses gerais que são corroboradas em razão de sua consistência (ou coerência) diante de hipóteses adversas.

Conclui-se, portanto, que as premissas teóricas a partir das quais Ferrajoli, Taruffo e Guzmán sustentam a ideia de livre convencimento são questionáveis. O são tanto internamente, uma vez que suas conclusões não são coerentes com o falibilismo sustentado pelos autores, nem a nível comparado, pois ignoram implicações centrais do linguistic turn. Destacamos novamente que esta é apenas uma síntese da crítica desenvolvida no artigo acima referido.

Conclusão
Diante do breve espaço desta coluna, nossa intenção foi a de reapresentar ao leitor a problematicidade ínsita, ainda que muitas vezes ignorada, do conceito de livre convencimento judicial. À análise comparativa e filosófica devem ser somadas, em outra oportunidade, uma revisão histórica e uma crítica política a esta maneira de conceber a decisão judicial, ainda tão enraizada no imaginário jurídico [15].

Quanto às considerações acima, devemos lembrar da afirmação de Wittgenstein no sentido de que a significação de uma palavra é seu uso na linguagem. Com efeito, ao compararmos o sistema de avaliação da prova português com o brasileiro, percebemos que, embora a noção de livre convencimento também esteja presente na cultura jurídica lusitana, o próprio sistema processual impõe critérios rígidos no sentido de exigir a justificação efetiva das decisões judiciais, limitando, assim, a discricionariedade. Enquanto isso, no Brasil, a retirada do conceito do CPC/2015 e o estabelecimento das exigências contidas no artigo 489 parecem não ter tido qualquer efeito seja na doutrina, seja na jurisprudência [16].

Sob uma perspectiva filosófica, a manutenção do livre convencimento como a alternativa à prova tarifada se revela como mais uma versão da gangorra epistêmica de que fala Bernstein, no sentido acima mencionado, e que é antecipada em Medida por medida de Shakespeare. As premissas de Ferrajoli e Taruffo acerca do tema são incoerentes entre si e não justificam a nível teórico um conceito que, na prática, implica consequências deletérias ao pressuposto do exercício democrático da jurisdição — o dever de justificação das decisões judiciais.

 


[1] BERNSTEIN, Richard J. Beyond objectivism and relativism: Science, Hermeneutics, and Praxis. Oxford: Basil Blackwell Publisher Limited, 1983, p. 18.

[2] BERNSTEIN, Richard J. Beyond objectivism and relativism: Science, Hermeneutics, and Praxis. Oxford: Basil Blackwell Publisher Limited, 1983, p. 18.

[3] DESCARTES. Meditações. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda., 1999, p. 257.

[6] ANCEL, Marc – Utilidade e métodos do direito comparado. Tradução de Sérgio José Porto. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1980, p. 81.

[7] STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 82.

[8] Para o leitor interessado na estrutura da fundamentação da decisão no processo civil português, vale conferir um acórdão que determina novo julgamento sobre pontos específicos da matéria de fato: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ec8da5c63152e31080258435002ee022?OpenDocument&Highlight=0,24369%2F16.6T8LSB.L1.S1

[10] Súmula 279 do STF: Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário. Súmula 7 do STJ: A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial. Súmula 126 do TST: Incabível o recurso de revista ou de embargos (arts. 896 e 894, "b", da CLT) para reexame de fatos e provas.

[11] Por exemplo: STJ – Decisão monocrática nº 38.994-SP (2019/0290601-7), de 18 de fevereiro de 2020. Relatora Nancy Andrighi.

[12] STRECK, Lenio; JUNG, Luã Nogueira. Livre convencimento judicial e verdade: crítica hermenêutica às teorias de Ferrajoli, Taruffo e Guzmán. Acesso: https://periodicos.univali.br/index.php/nej/article/view/18696

[13] Sobre a relação entre teorias da verdade e teorias do direito, ver: https://www.conjur.com.br/2022-jan-15/diario-classe-filosofia-direito-problema-verdade

[14] POPPER, Karl. A lógica da investigação científica. (In:) Os Pensadores. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1975.

[15] Nesse sentido, remetemos o leitor aos verbetes livre apreciação da prova e livre convencimento (motivado) contidos em STRECK, Lenio. Dicionário de Hermenêutica 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2020.

Autores

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    é doutor e mestre em filosofia pela PUC-RS (bolsa Capes), pós-doutorando em Direito Público pela Unisinos, professor do Programa de Pós-graduação em Direito da Unesa, advogado e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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    é advogado, pós-graduado em Direito Processual do Trabalho pela Universidade de Caxias do Sul (2007), mestrando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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