Opinião

Vida e morte do princípio da seletividade tributária

Autor

  • Carlos Eduardo de A. Navarro

    é bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo especialista e mestre em Direito Tributário pela Escola de Direito de São Paulo-Fundação Getulio Vargas professor e pesquisador na mesma instituição e sócio de Galvão Villani Navarro Zangiácomo e Bardella Advogado.

13 de agosto de 2022, 6h03

O princípio maior de qualquer sistema tributário minimamente civilizado é a capacidade contributiva [1]. A partir dela, quem tem maior capacidade econômica deve pagar mais tributo. Para identificar essa capacidade, as legislações tributárias, em geral, levam em conta três sinais de riqueza: renda, patrimônio e consumo.

Especificamente no que se refere à tributação sobre os bens e serviços consumidos, uma forma de se tentar tributar aqueles de maior capacidade é por meio do que denominamos princípio da seletividade [2].

Basicamente, o princípio da seletividade é aquele que orienta a que alíquotas mais altas sejam impostas a bens supérfluos, e alíquotas mais baixas sejam impostas a bens essenciais.

Exemplificativamente, observemos as alíquotas do IPI aplicáveis ao setor de cosméticos e higiene pessoal: enquanto produtos de higiene, como sabonetes e desodorantes, possuem alíquotas mais baixas, perfumes são altamente tributados pelo imposto federal.

Ao longo de décadas, portanto, o princípio da seletividade cumpriu com o papel de, dentro de suas limitações, tentar trazer menor regressividade à tributação sobre o consumo [3]. Claro que isso gerou inúmeras outras externalidades negativas, tais como um contencioso tributário em torno da correta determinação das alíquotas [4] e, especialmente nas últimas semanas, disputas federativas envolvendo a tributação de combustíveis.

Ocorre que, em pleno ano de 2022, é de se reconhecer que a seletividade não temais razão de existir e deve ser enterrada definitivamente. Atualmente, com os avanços tecnológicos verificados no país — especialmente a nota fiscal eletrônica e os mecanismos de repasse de recursos a famílias de baixa renda —, temos outros instrumentos muito mais eficazes que o princípio da seletividade para atingir a capacidade contributiva dos consumidores de bens e serviços.

É urgente que alteremos o foco da diferenciação tributária: mudando da qualidade dos bens e serviços para a efetiva capacidade daqueles que os consomem. Devemos abandonar por completo a ideia de seletividade e, tributando bens e serviços sob alíquotas uniformes, passar a devolver, parcialmente ou totalmente, os tributos pagos pelos consumidores finais de baixa renda.

E essa não é uma proposta inovadora. No campo teórico, podemos encontrar diversos estudos sobre o chamado "IVA personalizado" [5]; e, mesmo na prática, um exemplo desse tipo de iniciativa é o programa "Devolve ICMS", criado pelo estado do Rio Grande do Sul [6].

Diante da viabilidade, técnica e operacional, de atingirmos a capacidade tributária com uma eficiência que o princípio da seletividade nunca conseguiu, está na hora de trocarmos a seletividade pelos tributos de consumo personalizados em todo o país — ganhando, de quebra, com a redução da complexidade do sistema.

Assim, agradecendo a seletividade pelos serviços prestados — até porque não se poderia fazer nada melhor décadas atrás —, chegou a hora de olharmos para o futuro! Que em 2023, portanto, os governantes eleitos, dos Poderes Executivos (nacional, distrital e estaduais) e Legislativos, tenham lucidez suficiente para aposentar o princípio da seletividade [7] e, mediante uniformização das alíquotas de nossos tributos sobre o consumo, usem os meios tecnológicos atualmente à disposição para devolver os tributos aos consumidores de menor capacidade contributiva.


[1] Constituição da República, artigo 145, § 1º.

[2] Vide, exemplificativamente, artigo 153, IV, § 3º, da Constituição da República.

[3] Vide, por exemplo, dissertação escrita por Nelson Monteiro Júnior e disponível pelo link https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/17387.

[4] Não apenas no Brasil, como se pode observar pela disputa relativa ao tea cake no Reino Unido.

[5] BARREIX, A., BÈS, M. and ROCA, J. (2010); "El IVA Personalizado. Aumentando la recaudación y compensando a los más pobres"; EuroSocial-Fiscalidad, Madrid.

BARREIX, A., BÈS, M. and ROCA, J. (2012); "Resolviendo la Trinidad Imposible de los Impuestos al Consumo. El IVA Personalizado", in Reforma Fiscal en América Latina: ¿Qué fiscalidad para qué desarrollo?; CEPAL and CIDOB.

RASTELETTI, A. (2021); "IVA personalizado: Experiencia de 5 países y su importancia estratégica para la política y la administración tributaria". Blog; IDB.

[7] Primeiro, revogando a seletividade da Constituição da República e, depois, modificando o sistema de alíquotas de ICMS, IPI, PIS e Cofins (o Imposto de Importação segue lógica diversa e a diferenciação de alíquotas ali deve ser mantida, seguindo os acordos internacionais firmados pelo Brasil).

Autores

  • Brave

    é bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, especialista e mestre em Direito Tributário pela Escola de Direito de São Paulo-Fundação Getulio Vargas, professor e pesquisador na mesma instituição e sócio de Galvão Villani, Navarro, Zangiácomo e Bardella Advogado.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!