Limite Penal

Novos rumos do reconhecimento de pessoas: contribuições do CNJ

Autor

  • Janaina Matida

    é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile) doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e consultora jurídica em temática da prova penal.

12 de agosto de 2022, 12h11

A segunda-feira desta semana (8/8) foi marcada pelo fim das atividades que o Conselho Nacional de Justiça desenvolveu durante cerca de um ano sobre a importante temática do reconhecimento de pessoas. O Grupo de Trabalho (GT) foi instituído em 31 de agosto de 2021 pelo ministro Luiz Fux e se reuniu sob a coordenação do ministro Rogerio Schietti.

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A nomeação do ministro Schietti para liderar os trabalhos deveu-se à inegável vanguarda de suas decisões sobre o reconhecimento de pessoas, sobretudo ao nos depararmos com a guinada epistemológica que o julgamento do HC 598.886/SC, sob a sua relatoria, representa. Foi a partir daquele acórdão que o reconhecimento de pessoas, até então negligenciado, passou a ser visto como merecedor de tratamento epistêmico mais cuidadoso.

Além do ministro Schietti, o GT foi integrado por operadores jurídicos de diversas instituições e contou ainda com a contribuição da advocacia e da academia. É correto dizer que seus 43 integrantes foram escolhidos em atenção às suas destacadas atuações, assim como em consideração à diversidade de raça, gênero e necessária representatividade de todas as regiões do país. Sem dúvidas, a diversidade da composição do grupo (dos "trezentos", como fomos apelidados) foi uma preocupação do Juiz Luís Lanfredi. Como juiz auxiliar da Presidência do CNJ e coordenador do DMF (Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas), com o apoio de sua equipe, o juiz Lanfredi também cuidou de combinar as habilidades individuais de cada um dos integrantes ao montar os grupos, sempre pensando nos produtos que o CNJ assumiu o compromisso de entregar ao final do GT.

A Limite Penal de hoje dividirá com os leitores um pouco do que aconteceu no âmbito do GT sobre o reconhecimento de pessoas do CNJ, atualizando os interessados acerca dos produtos então elaborados com objetivo de diminuir a distância entre os cidadãos brasileiros e o sistema de justiça que lhes foi prometido pela Constituição. Isso porque, muito embora a mudança jurisprudencial de rumo — de "mera recomendação" ao necessário cumprimento do artigo 226 — represente um avanço importante, fato é que esse esforço não dá conta, sozinho, de prover o tratamento que uma prova dependente da memória exige. A uma porque a obrigatoriedade do artigo 226 continua a experimentar resistência de diversas instituições; a duas porque, mesmo que a mencionada disposição normativa fosse obedecida com zelo, certo é que nos impõe reconhecer que seu conteúdo é ultrapassado e que, por isso, merece revisão. Neste sentido, não é difícil constatar que o tratamento jurídico que a prova de reconhecimento precisa, requer a solução de múltiplos desafios. Os comitês técnicos, em número de cinco, foram formados exatamente para responder a essa complexa demanda. Vejamos.

1) Comitê técnico 1. Desde que, no Brasil, os casos de erros por falsos positivos ganharam as manchetes de jornais e os programas de televisão, a tragédia vivida por muitas famílias brasileiras — em sua maioria negras e pobres — passou a sensibilizar a sociedade brasileira. "Não é possível que, com tão pouco, jovens inocentes sejam colocados atrás das grades", muitos felizmente concluíram. No entanto, e apesar da empatia que a crescente cobertura midiática felizmente foi capaz de gerar, a escassez de números mais concretos sobre as prisões e condenações injustas causadas por reconhecimento irregular de pessoas aqui no Brasil continuou a servir de desculpa à retórica do "caso isolado"; como se as falhas na realização do reconhecimento fossem exceções e não prática sistematicamente reiterada em todo o território nacional. Formado por Lívia Vaz, Pablo Nunes (relatores), Priscila Palmeiro, Orlando Perri, Simone Schreiber, Luciano Mariz Maia, Jonas Pacheco, Caroline Tassara e Isadora Brandão (ambas do DMF, secretariando os trabalhos), o comitê técnico 1 apresentou um diagnóstico dos elementos catalisadores da condenação de inocentes no sistema de justiça criminal brasileiro a partir da análise de casos concretos.

2) Comitê técnico 2. Os conhecimentos oferecidos pela psicologia do testemunho sobre a memória informam que o modo como o procedimento é realizado tem direta relação com a confiabilidade do seu resultado. A forma como se colhe a descrição do autor do fato, as perguntas que são realizadas, a maneira em que se exibe o suspeito (e muitas vezes, reexibe o suspeito) são apenas alguns dos fatores que contribuem ao incremento de reconhecimentos errôneos. Assim, se a justiça criminal tem real interesse em extrair o que de melhor a memória pode oferecer à reconstrução dos fatos, é fundamental investir na construção de um novo modo de se realizar o procedimento do reconhecimento. O grupo composto por Leonardo Marcondes Machado, Dagoberto Albuquerque da Costa, Rafaela Silva Garcez, Mariana Py Muniz (do DMF, secretariando os trabalhos), por Luciano Góes e por mim (relatores) entregou uma proposta de protocolo para a realização do reconhecimento nas delegacias de polícia. Nosso trabalho foi guiado pelas recomendações técnicas oriundas da psicologia do testemunho bem como pela preocupação em provermos estratégias eficientes à erradicação dos efeitos do racismo estrutural na prova de reconhecimento. Documentos como os "Principios Méndez" e o "Reconhecimento de Pessoas e Prova Testemunhal: orientações para o sistema de justiça" do IDDD, assim como o artigo "Prevenindo Injustiças: como a psicologia do testemunho pode ajudar a compreender e prevenir o falso reconhecimento de suspeitos" (William Cecconello e Lilian Stein, 2020) foram fundamentais para o resultado.

3) Comitê técnico 3. É inquestionável o "efeito bússola" que decisões como o HC 598.886/SC e o HC 652.284/SC — exaradas pela 6ª e 5ª Turmas do STJ, respectivamente — tiveram para a agenda da redução dos erros provenientes de falsos reconhecimentos no sistema de justiça criminal brasileiro. Ambos os julgamentos sublinharam uma mudança de rumo interpretativo ao artigo 226 do CPP, cujas formalidades passaram a exigir como garantia mínima a todo e qualquer cidadão suspeito de haver cometido um delito. Esse entendimento, inclusive, albergou reforços importantes, como a decisão do RHC 206.846/SP (ministro Gilmar Mendes, STF) e o julgamento do HC 712.781/RJ, (ministro Rogerio Schietti, STJ), que além da exigência de observância das formalidades do 226, estabeleceram a irrepetibilidade do reconhecimento. Apesar de sua evidente envergadura, fato é que a nova orientação jurisprudencial pode ter seus efeitos maximizados caso seja elevada a uma postura única da magistratura brasileira como um todo, em uníssono. Composto por Eduardo Dantas, Lucia Helena Oliveira (relatores), Marcus Henrique P. Basílio, Dora Cavalcanti, Lilian Stein, Rafael Almeida Piro e Mario Ditticio (do programa "Fazendo Justiça", secretariando os trabalhos), o comitê técnico 3 elaborou uma minuta de resolução que regulamenta as diretrizes para o reconhecimento pessoal no país, a ser aplicada por todo o Poder Judiciário.

4) Comitê técnico 4. Não é de hoje que a ciência denuncia a falibilidade da memória. Tendo isso em vista, a revisão legislativa do reconhecimento de pessoas é tanto mais urgente quanto imprescindível. Uma simples leitura do artigo 226 do CPP, destinado a balizar o procedimento, não deixa dúvidas quanto à necessidade de substancial revisão legislativa da matéria. Demais da expressão "se possível" — tão enfatizada em outros tempos —, as poucas etapas aí constantes não estão detalhadas como deveriam, e, pelo pouco que fala e por muito que omite, enfim, o tratamento legislativo dedicado atualmente ao reconhecimento de pessoas precisa ser complementado. Com o objetivo de solucionar a defasagem normativa que hoje acomete o procedimento de reconhecimento, o comitê técnico 4, formado por Hugo Leonardo, Gabriel Sampaio (relatores), Gustavo Noronha de Ávila, Maíra Fernandes, Rafael Estrela Nóbrega, Fernando Luís S. Corrêa e Natália Dino (do DMF, secretariando os trabalhos) apresentou minuta de projeto de lei para alteração do Código de Processo Penal no tocante ao reconhecimento de pessoas.

5) Comitê técnico 5. Todas as mudanças apresentadas neste texto até agora não serão concretizadas se nos omitirmos de criar condições para a mudança da mentalidade daqueles que atuam sobre o reconhecimento de pessoas no sistema de justiça, bem como da sociedade, cuja expressiva parcela negra e pobre ainda se encontra sujeita ao risco sistemático de um falso reconhecimento. Neste sentido, o grupo composto por Cleifson Dias Pereira, Carolina Ranzolin Nerbass (relatores), Eunice Amorim Carvalhido, Gabrielle Oliveira de Abreu, William Akerman Gomes, Fernando Braga Damasceno, José Vicente, Isabel Penido Machado e Andrea Perdigão (ambas do DMF, secretariando os trabalhos) organizou uma coletânea de artigos sobre o tema, formulou proposta de cursos de capacitação bem como uma cartilha dirigida à população brasileira.

Finalmente, é importante registrar que todos os produtos dessa iniciativa foram desenvolvidos ao longo dos doze meses de duração do GT, nos quais discutimos periodicamente à medida em que avançávamos, entre as reuniões semanais e plenárias bimestrais. A sistematização da soma dos produtos num todo coerente não teria sido possível sem os esforços de Maurício Dieter e Thais Pinhata, relatores gerais. As apresentações do diagnóstico, da proposta de protocolo, das minutas de resolução e de projeto de lei, da publicação de textos, da proposta de curso e cartilha a que procedemos na plenária que deu fim ao GT, dão conta das complexas dimensões que o tratamento sério do reconhecimento de pessoas precisa assumir, e também são prova do quanto podemos quando a vontade institucional se faz presente. Que a disposição ao diálogo entre todas as instituições do sistema de justiça criminal brasileiro seja o próximo passo rumo a uma Justiça efetivamente mais justa para todos.

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    é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile), doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e presta consultoria jurídica na temática da prova penal.

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