Licitações e contratos

Os regulamentos inconstitucionais da nova Lei de Licitações

Autor

  • Jonas Lima

    é sócio de Jonas Lima Advocacia especialista em Direito Público pelo IDP especialista em compliance regulatório pela Universidade da Pensilvânia ex-assessor da Presidência da República (CGU).

12 de agosto de 2022, 9h19

Nem todos os regulamentos da Lei nº 14.133/2021 são inconstitucionais, mas muitos sim.

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Como recordista, a própria lei, que nasceu com mais de 50 menções a regulamentos, tem pontos inconstitucionais, por esvaziarem competência do Congresso e a direcionarem a tantos órgãos administrativos federais e de entes subnacionais.

Lembre-se que a Lei nº 8.666/93, de vigência imediata (artigo 125), era restrita em regulamentos, como se percebe de poucos deles:

1) registro de preços (artigo 15, § 3º);
2) dispensa de licitação e comprometimento da segurança nacional (artigo 24, inciso IX); e
3) registro cadastral de fornecedores (artigo 34).

Já a Lei nº 14.133/2021 chegou com vigência por partes e com dois anos de transição, mas distribuindo competência em mais de 50 hipóteses, por isso, havendo hoje centenas de regulamentos editados, confundindo licitantes brasileiros e estrangeiros, verdadeira "bomba atômica" contra a segurança jurídica e a harmonia legislativa que o Acordo de Compras Públicas (GPA) da Organização Mundial do Comércio demanda.

Aliás, como explicar ao licitante estrangeiro que ele terá em cada local um regulamento licitatório a lhe surpreender?

Essa contextualização leva ao estudo da Constituição em determinados aspectos:

1) nos termos do seu artigo 22, inciso XXVII, compete privativamente à União legislar sobre normas gerais de licitação e contratação, mas agora existem regulamentos estatuais e tantos outros com centenas de páginas abordando a lei inteira, quando apenas pontuais e limitados temas poderiam ser regulamentados pelos outros entes;

2) nos termos do seu artigo 44, o Poder Legislativo da União é exercido pelo Congresso, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado, mas suas competências, de toda ordem, foram suprimidas e transferidas pela nova lei para muitos entes administrativos federais e entes subnacionais, em mesmas matérias já constantes do texto da lei federal, algo ainda mais reprovável; e

3) nos termos do seu artigo 84, inciso, IV, compete privativamente ao Presidente da República expedir decretos e regulamentos para fiel execução das leis, mas hoje entes federais, estaduais, distritais e municipais, chegando até ao nível de secretarias, autarquias, fundações, institutos e outros tantos, criaram comissões para regulamentar a nova Lei de Licitações e Contratos.

Assim, a lei nasceu inconstitucional ao suprimir do Congresso a competência privativa de edição de normas gerais sobre licitações e contratos, além de suprimir competência privativa do presidente da República para regulamentação da lei.

E como se nada disso bastasse, dos mais de 50 pontos abertos a regulamentações, houve excesso criativo de normas em matérias além de seus supostos fundamentos autorizativos (a lei mencionava uma matéria e o ente criou quase uma nova lei completa).

Essas inconstitucionalidades levam a uma severa anarquia legislativa, de efeitos danosos, que até aqui nem se comenta nas mais abalizadas universidades e nos tribunais, sobre a nova lei:

1) se um caso for judicializado sobre a lei geral federal ele viabiliza recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça pelo artigo 105, inciso III, alínea "a" (violação de lei federal), da Constituição;

2) no contexto acima, se o caso tratar de regulamento administrativo federal, norma distrital, estadual ou municipal, haverá limitação, restando a restrita alínea "b" do mesmo dispositivo constitucional, do recurso especial sobre ato de governo local contra texto de lei federal;

3) assim, no cenário abordado, as milhares de regulações locais não viabilizam recursos ao STJ, pelo que, no fundo, muitas das matérias deveriam ter ficado dentro da lei federal, para que as discussões fossem até a última instância, sendo que se exigirá dos advogados muita criatividade para tentar contornar essas limitações processuais que estão sendo alertadas; e

4) ademais, os tantos regulamentos licitatórios dos entes pelo Brasil prejudicam a via do artigo 105, inciso III, inciso "c", da Constituição, do recurso especial quando a decisão “der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal”, ou seja, inúteis os regulamentos administrativos federais, distritais, estaduais e municipais de centenas de páginas cujas regras não são lei federal em sentido estrito e não viabilizam recurso ao STJ;

5) nessa última situação acima, como não se pode tratar de divergência jurisprudencial entre tribunais com base em regulamentos licitatórios desiguais, a única solução é se buscar socorro puro e direto em face do texto da lei federal, pois a divergência entre tribunais regionais federais e/ou tribunais de justiça somente se viabiliza se o caso enfoca texto de lei federal, não simples regulamento licitatório de cada local de origem da licitação.

Enfim, o Brasil esqueceu das teorias sobre hierarquias e fundamentos de validade das normas, anarquizou o seu sistema legal de licitações e contratos e agora será um dos países mais difíceis para se navegar nas lides, pelo mar de milhares de regulamentações e cujas eventuais demandas judiciais serão limitadas até para recursos que possam chegar à última instância.

O tempo irá mostrar os resultados práticos disso tudo.

Autores

  • é advogado especialista em licitações e contratos, pós-graduado em Direito Público pelo IDP e Compliance Regulatório pela Universidade da Pensilvânia e sócio do escritório Jonas Lima Sociedade de Advocacia.

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