Direitos fundamentais

Mais uma vez o caso da boate Kiss: a proteção de dados pessoais

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12 de agosto de 2022, 8h03

O recente julgamento da apelação do caso da tragédia da boate Kiss, como era de se esperar, tem sido fator de inúmeras matérias em todos os tipos de mídias, que, a exemplo do que já ocorreu em outras fases do longo e tormentoso processo, replicam as mais diversas vozes, tanto de natureza crítica, quanto veiculando concordância com a decisão, em especial em relação aos votos dos desembargadores José Conrado Kurtz de Souza e Jayme Weingartner Neto, que votaram pela anulação do Júri realizado em dezembro do ano transcurso.

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O julgamento da apelação — em especial as razões esgrimidas em favor da tese da anulação — colocou em evidência um leque de vicissitudes que marcaram o processo e a sessão de julgamento, levando ao reconhecimento de diversas nulidades (duas apenas por um dos julgadores), ligadas: à quantidade de sorteios de jurados e o tempo de sua realização; a violação dos princípios da plenitude de defesa e da paridade de armas; a ilegalidade de reunião reservada do juiz presidente com os jurados; ofensa ao princípio da correlação entre a decisão da pronúncia e a sustentação da acusação, redação deficiente de quesitos (que também violou a correlação, ao repristinar acusação decotada por decisão em sede de recurso); produção pelo Ministério Público e admissão pelo Juiz de uma prova surpresa e de modo a ferir de modo flagrante as garantias do contraditório e da ampla defesa — esta última apenas pelo des. Jayme, vencido no ponto.

No que diz respeito às nulidades referidas, chamam a atenção, mais uma vez (embora isso não cause qualquer surpresa), as críticas endereçadas por atores da cena jurídica que – diferentemente do que é normal esperar dos não versados em Direito — ao invés de enfrentar os argumentos esgrimidos pelos desembargadores da 1ª Câmara Criminal do TJ-RS, se limitam, em termos gerais, a afirmar que se trata de meras questões formais, "FILIGRANAS" manejadas de modo a assegurar a impunidade dos réus, ofendendo a sociedade, as vítimas e seus familiares.

Ora, ninguém, com o mínimo senso de decência, poderá pretender subdimensionar a dimensão da tragédia (uma das maiores do gênero de que se tem notícia) que representou o incêndio da boate Kiss, dado o número de vítimas fatais, de feridos, ademais do intenso sofrimento de tantas pessoas afetadas pelo episódio, o que, inclusive, foi destacado na decisão ora discutida.

Da mesma forma, o julgamento da apelação — mesmo com a consequente soltura dos réus — não implica a alegada impunidade dos réus, visto que, a despeito da necessária realização de novo Júri, em nada foi tocada a soberania do Conselho de Sentença no sentido de decidir novamente pela condenação.

Não é demais recordar — e já tivemos a oportunidade de nos pronunciar a respeito quando de coluna veiculada pelo ConJur logo após o julgamento pelo Júri do caso ora comentado — que a competência do Júri não abarca a condução do processo, tampouco inclui a fixação da pena e a decisão sobre a prisão dos réus, seja em caráter provisório, seja por força da condenação. Para tanto — em que pese as posições que tentam desconstruir essa assertiva — basta lançar um olhar sobre o Código de Processo Penal brasileiro e/ou acompanhar qualquer processo da competência do Tribunal do Júri.

Do que se tratou no julgamento da apelação — no caso dos votos pela nulidade —, é do fato de que, seja qual for o resultado final do processo, hão de ser observados os princípios e direitos constitucionais e legais, que não representam apenas (como erroneamente não poucos costumam afirmar) garantias do acusado/réu, mas da própria sociedade.

Nesse contexto, não é demais lembrar (muito antes pelo contrário), que vem dos EUA — país que normalmente é citado pelo rigor com que pune os autores de um delito e pelo fato de ter o maior número de pessoas encarceradas — o exemplo de que o rigor das formas e, portanto, do devido processo legal, deve ser observado à risca, pena de nulidade. Não é também por acaso que o devido processo legal (ainda que de modo ainda embrionário na sua conformação) já constava na paradigmática Magna Carta Inglesa do século 13. O que não se pode fazer, portanto, é mascarar a realidade e apresentar entre nós apenas pela metade o que acontece em outros rincões.

Note-se, por outro lado, que o fato de a decisão não ter sido proferida à unanimidade, visto que o relator não acolheu as teses relativas à nulidade, não as deslegitima e tampouco enfraquece, posto que a valoração da correção das razões esgrimidas pelos julgadores deve-se realizar tendo em conta a consistência dos argumentos que as sustentam, em especial no concernente à sua conformidade com o marco normativo constitucional.

Não se diga, ademais — como igualmente se tem buscado difundir — que os desembargadores que se pronunciaram em prol das nulidades (com divergência apenas relativamente a duas) — o fizeram de modo leviano, sem maior reflexão e fundamentação, porquanto basta acessar os respectivos votos para que se perceba que a grande maioria das nulidades invocadas (mais de trinta, sistematizadas em quase duas dezenas) pelas defesas dos réus foi rechaçada, ao passo que as que foram reconhecidas, o foram de modo largamente fundamentado, não apenas em termos quantitativos, mas também no que diz respeito à qualidade dos argumentos.

Que a divergência exista faz parte da natureza do processo, onde se digladiam visões opostas ou então apenas parcialmente concorrentes, devendo eventual inconformidade ser veiculada pelo recurso próprio, mas não mediante expediente sequer previsto na ordem jurídica brasileira, como é o caso da singular, esquisita e mesmo surreal petição endereçada pelo Ministério Público ao presidente do STF, buscando reverter o julgamento de uma apelação pelo órgão para tal competente e obter, por meio de um atalho juridicamente ilegítimo, a igualmente surreal medida de uma execução provisória de uma condenação anulada.

Mas, chega de considerações de caráter genérico, posto que o momento é de adentrar o exame um pouco mais detido de uma das nulidades discutidas, designadamente a que diz respeito ao acesso, pelos membros do Ministério Público, a informações privilegiadas sobre os jurados constantes do Sistema de Consultas Integradas (SCI).

Trata-se, no caso, de nulidade reconhecida apenas pelo desembargador Jayme Weingartner Neto, com cujo entendimento — importa sublinhar — concordamos integralmente.

Para não sermos acusados de distorção os argumentos colacionados pelo ilustre magistrado integrante da 1ª Câmara Criminal do TJ-RS, tomamos a liberdade de transcrever extratos do seu alentado voto, que, somente no que diz respeito à nulidade ora abordado, soma 37 páginas:

"(…) 1.4. O tratamento de dados pessoais dos jurados. Manejo do Consultas Integradas pelo MP. Disparidade de armas.

Mas há mais, e relaciona-se, primeiramente, com a formação da lista geral de jurados, procedimento para o qual, de certo modo, o Ministério Público está melhor aparelhado — o que é em parte reconhecido (e justificado na verificação da respectiva idoneidade) — do que as defesas, a caracterizar, quando se projeta na composição do tribunal do júri [o juiz-presidente e os 25 jurados], nos termos do art. 447 do CPP, em concreto, violação à paridade de armas. O pano de fundo é o manejo do Sistema Consultas Integradas (SCI) à disposição do Ministério Público por conta do Convênio que celebrou, em 18 de julho de 2011, com o Poder Executivo do Estado do Rio Grande do Sul, por intermédio da Secretaria de Segurança Pública. Seguiu-se Termo de Cooperação Técnica nº 08/2016, ajustado em 19 de julho de 2016. Tais documentos estão disponíveis no site do Ministério Público e, junto com poucos outros que mencionarei, formam a totalidade da normativa interna passível de escrutínio público.

Pesem decisões que reconhecem o uso do SCI como legítimo (inclusive uma de minha lavra), há dois fatores que recomendam nova apreciação do tema, um fático (aplicação discriminatória da ferramenta) e, o outro, a reavaliação do quadro jurídico, com a vigência da Lei Geral de Proteção de Dados (a eventual influência da nova lei foi intuída pela sensibilidade jurídica do juízo a quo), bem como o reconhecimento [já anterior à positivação no texto constitucional] de um direito fundamental autônomo de tutela dos dados pessoais – conveniente, também, destrinçar a atividade custos legis e administrativa do Ministério Público da atuação como parte acusatória em processo criminal do Tribunal do Júri. Faço breve análise, obiter dictum, pois, para o deslinde dos presentes recursos, bastaria perceber a substancial assimetria que se estabeleceu na preparação deste júri, com as vicissitudes já narradas, em relação à verificação da idoneidade/perfil dos jurados (…).

(…) Convém ressaltar o significado jurídico do direito fundamental à proteção de dados, cuja existência, visto como direito implícito e expressamente reconhecido pelo STF em decisão vinculante anterior proferida meses antes dos procedimentos relativos à lista geral para 2021, já determinava que, mesma diante de lacuna legal, fossem respeitados, efetivamente, princípios e direitos fundamentais de caráter geral e especial. É dizer, mesmo antes da LGPD não era permitido tratar e usar de qualquer modo os dados pessoais (…).

(…) Não tenho dúvida que o Ministério Público, mediante uso compartilhado de dados da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, e sem o consentimento dos titulares, procedeu a tratamento de dados pessoais dos cidadãos que têm expectativa de servir como jurados. Para além do espírito altruísta, vale lembrar que o efetivo exercício da função de jurado constitui serviço público relevante e estabelece presunção de idoneidade moral (art. 439 do CPP), a par de garantir preferência, em igualdade de condições, nas licitações públicas e no provimento, mediante concurso, de cargo ou função pública, sem descurar dos casos de promoção funcional ou remoção voluntária (art. 440 do CPP). O que não é pouco, convenhamos (…)."

Para além dos argumentos estribados no direito fundamental à proteção de dados pessoais e na aplicação da LGPD, é de sublinhar, igualmente mediante transcrição de trecho do voto, questão relacionada à dimensão discriminatória do procedimento adotado pelo Ministério Público:

"(…) Tudo a contrapelo do que ocorreu, pois a lista geral de 2021 foi enviesada por critério subjetivo específico: a condição [objetivada] de o cidadão ser familiar ou amigo de apenado/preso conjugada com o fato de ter havido visita a seu familiar/amigo. Assim, 97 pessoas foram expurgadas porque, mercê de relações familiares e afetivas, visitaram detentos, algumas há duas décadas. O fator é discriminatório, um direito do preso (um dever moral, do lado de fora) passa a ser um opróbio. Isso empobrece a pluralidade institucional do Tribunal do Júri e exacerba a seletividade do sistema, inclusive em termos raciais (…)."

À vista do exposto, deveria soar quase elementar que, ademais de não ter deixado de respeitar precedente do STJ — visto as circunstâncias particulares do caso, de modo especial a superveniência (à decisão do STJ) da entrada em vigor da LGPD e o reconhecimento de um direito fundamental à proteção de dados pessoais e o argumento vinculado à proibição de discriminação — a nulidade reconhecida pelo desembargador Jayme Weingartner Neto é mais do que evidente, dada a flagrante e exaustivamente demonstrada (aqui, contudo, de modo sintético) violação de princípios e direitos fundamentais.

Como igualmente já tivemos a ocasião de escrever neste privilegiado espaço do ConJur, a utilidade e importância do reconhecimento de um direito fundamental à proteção de dados pessoais reside, entre outros aspectos, na sua ubiquidade, compreendida como sendo sua aplicação a todas as áreas do Direito, afastando a possibilidade de verdadeiros vácuos regulatórios de proteção por conta da eventual exclusão da incidência da LGPD, como é o caso da segurança pública, investigação e persecução penal, dentre outras.

Aliás, quanto a este ponto também se fez referência no voto citado, demonstrando, ainda, que em virtude da natureza administrativa da atividade consistente na elaboração da lista de jurados, a própria LGPD é aplicável, considerando que sequer se trata de uma das searas excluídas pela referida legislação.

Haveria ainda muito a dizer, mas a limitação do espaço o impede. De qualquer sorte, pensamos que as linhas ora traçadas podem eventualmente contribuir para o bom e urbano debate sobre o tema, porquanto é isso que se espera ao menos da academia e dos atores da cena jurídica.

Ao fim e ao cabo, mais uma vez cuida-se de enfatizar que nem mesmo o melhor dos fins e a mais justa das causas pode justificar o recurso a qualquer meio. A condenação dos réus de um processo, seja pelo Conselho de Sentença de um Tribunal do Júri, seja pelo juiz togado, é legítima quando rigorosamente observado o devido processo legal formal e substancial.

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