Opinião

Racismo estrutural: o que a indignação de Giovanna Ewbank nos revela

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11 de agosto de 2022, 17h04

Mais um caso de racismo estrutural é noticiado e gerou comoção nas redes sociais. As imagens da reação de Giovanna Ewbank na defesa de seus filhos, vítimas do ódio racial que impregna a sociedade, são um retrato do quadro de injustiças vivido pelos pretos no mundo. Após séculos de escravismo e de segregações, a liberdade e a igualdade em bandeiras democráticas ocidentais se apresentam como um discurso que só atende à camada social da branquitude hegemônica. A ação reativa de uma mãe diante do crime de ódio racial é somente uma face dos efeitos discriminatórios ocasionados pelo racismo estrutural que aciona engrenagens de desumanização, estigmas, hierarquias e estereótipos.

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Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso
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Essa reprodução de desigualdades raciais e estratificação social, em experiências individuais ou coletivas, é definida como fruto de processos e padrões sociais, com reflexos nas instituições do Estado e no setor privado, com relação às leis, práticas e políticas [1]. Em outras palavras, esses padrões sociais estabelecem processos sistemáticos de exclusão da negritude no reconhecimento e exercício pleno de direitos.

Como consequência, são sintomáticas a hierarquização e a imposição de cidadania de segunda classe aos negros, a imobilidade social como o não acesso à educação, a oferta restrita de postos de trabalho subalternos e a violência institucional caracterizada pelo alvo de investigações criminais e prisões. Por isso, esse conjunto de discriminações é descrito como estrutural e decorrente de dinâmicas sociais, econômicas e políticas marcadas pelas restrições históricas e perenes de direitos dos negros. Tudo isso, ao nos depararmos com o caso dos filhos de Ewbank e Gagliasso, mostra que o racismo estrutural não é centrado só na posição de classe econômica ocupada pelos discriminados.

Os efeitos desumanizantes na legislação brasileira
Os gritos de uma brasileira contra a prática racista em terras europeias denotam não só a indignação de uma mãe defendendo a sua família. Representam o pedido de basta diário de todos aqueles que estão comprometidos com a luta antirracista. E isso passa por uma herança racista histórica que sociabilizou não só Portugal, como também o Brasil. Nessa formação secular, os impactos sobre o dizer o Direito pela produção legislativa são traços marcantes na constituição do racismo estrutural característico da colonização brasileira, desde a empresa mercantil escravocrata.

Falar atualmente contra o racismo estrutural se relaciona com o reiterado não acesso em igualdade de oportunidades aos negros. O histórico legislativo brasileiro é um exemplo, desde o campo educacional, passando pelo direito de propriedade, liberdades e criminalização de condutas.

Já no ano de 1837, na chamada primeira lei da educação brasileira, a Lei nº 1 proibia o acesso de escravos e pretos africanos, mesmo os libertos, de frequentar escolas [2], a qual apresentou como marco de uma barreira à mobilidade social da negritude.

A Lei nº 601/1850 [3] foi outra representação das consequências estruturantes do racismo. Conhecida como Lei de Terras, ela proibia a compra de terras do Estado brasileiro através da força do trabalho, realidade vivenciada pelos negros. Pela norma, as terras somente poderiam ser adquiridas através da compra do Estado e, ainda, havia a concessão de uma série de subsídios aos colonos imigrantes estrangeiros vindos ao Brasil.

A Lei nº 2.040/1871 [4], intitulada como Lei do Ventre Livre, previu a liberdade dos filhos de escravas. Contudo, havia a opção de os escravizadores utilizarem os serviços dos libertos, sendo que essa era a escolha que se dava de fato. As barreiras à vida pelo não acesso à educação e pela limitação da propriedade mantinha a escravidão na prática. Essa institucionalização às escusas, mesmo com o previsto em lei, demonstra como o racismo estrutural vai se configurando, já que a desumanização e as dificuldades impostas para a ascensão social são reproduzidas, com consequências até hoje.

Outro exemplo estruturante do racismo pela legislação foi o Decreto nº 847/1890 [5] promulgado poucos anos após a Proclamação da República, no qual previa uma série de crimes na reforma legislativa penal à época. Uma das normas jurídicas em destaque é a contravenção "dos vadios e capoeiras". Nesse tipo de delito, aqueles que deixavam de exercer profissão ou ofício, sem se sustentar ou ter domicílio, poderia incorrer em contravenção. Também era colocada a prática de exercícios de capoeira em locais públicos como contravenção tipificada.

Como se vê, tal Decreto continha diversos estereótipos e estigmas raciais, além de propor mecanismos que institucionalizaram o poder dominante nas relações para estratificar socialmente os negros e estruturar o racismo. Se consideramos o período histórico, a abolição da escravatura era recente e a população negra era a camada social sem condições econômicas e sociais. Por óbvio, era tal grupo que não teria profissão. Aliado a isso, a previsão sobre a prática da capoeira, atividade de raiz africana, corrobora o objetivo de tratar diretamente os negros de forma discriminatória.

Esses são recortes exemplificativos de leis que ajudaram a estruturar o racismo no Brasil. A formação histórica brasileira, de traços demarcados pela geopolítica da colonização, teve o pilar estatal legislativo que sociabilizou o ódio racial, seja de forma proposital ou em seus efeitos. Atualmente, isso é experimentando nas relações nos campos sociais, econômicos, políticos e institucionais, alimentados por uma cultura racista estruturante.

Uma sociabilidade racista estrutural
A referência legislativa é parte do contexto social. A fala racista da portuguesa ao pedir para "tirar aqueles pretos imundos do local" é uma demonstração prática do racismo estruturado na linguagem, nos atos segregadores e na não aceitação do convívio igualitário entre todas as camadas sociais. A elaboração de um consciente racista estrutural está naquilo que é estruturado socialmente ao longo do tempo e é estruturante nas dinâmicas racistas mantidas diariamente.

Exatamente aí que reside a compreensão de que há um processo de padrões sociais sistemáticos como o racismo em uma concepção estrutural em que há a constatação de que "a sociedade é racista" [6]. Disso decorre que: 1) os padrões são reproduzidos sistematicamente na ordem social; e 2) que são parte de conflitos de ordem econômica, política, racial em si e em simultaneidade com desigualdades de classe, com opressões de sexo, gênero e sexualidade.

Esse conjunto de práticas e padrões de racismo estrutural é unificado por um modus operandi da política estatal, onde o racismo só é reproduzido por ser alimentado pelas próprias estruturas estatais e pelo modo de organização social sobre indivíduos, grupos e classes [7]. Logo, o racismo estrutural é produzido pela estrutura social, marcado por ações nas relações políticas, econômicas, jurídicas e familiares. Além disso, é refletido nos comportamentos individuais, sendo parte do processo social. Nesse cenário, mesmo que os discriminados, como no caso de Titi e Bless, integrem uma classe social e econômica mais alta, as marcas de suas identidades negras prevalecem em uma estrutura racista que direciona para a manutenção de exclusões e restrições de direitos.

Assim, mesmo após a superação de legislações com forte conteúdo racista referidas e a existência de um conjunto normativo antirracista contemporâneo, ainda nos deparamos com atos racistas no campo social. Isso demonstra que não basta uma legislação antidiscriminatória em si e, sim, é urgente a mudança de uma cultura estruturante racista.

Os constantes discursos de ódio racial, a diminuição dos negros como uma cidadania de segunda classe, a desvalorização da estética negra, a não representatividade nas organizações sociais e nas mídias são exemplos da estruturação desse racismo. É a difusão de uma ideologia de que tudo o que é ligado à negritude é tido como algo ruim e hierarquicamente inferior. Essa dinâmica é alimentada diariamente por aqueles que acreditam em uma suposta supremacia da branquitude ou pela reprodução de efeitos discriminatórios tido como normais nos contextos sociais, não contestados e não debatidos por contracondutas democratizantes.

Os gritos de Giovanna em Portugal são reveladores das agruras do racismo estrutural que atravessam quadras históricas desde a colonização até a modernidade. Em cada tempo, as injustiças se repetem e isso já é sintomático. Necessitamos de menos diagnósticos e mais ações. É urgente uma educação antirracista para transformar essa cultura estruturante de discriminações.


[1] MOREIRA, Adílson José. O que é discriminação? Belo Horizonte: Justificando, 2017, p. 136.

[4] BRASIL. Lei nº 2.040/1871, de 28 de setembro de 1871. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim2040.htm. Acesso em 07 mar. 2022.

[5] BRASIL. Decreto nº 847/1890, de 11 de outubro de 1890. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em 07 mar. 2022.

[6] ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro, Polén, 2019, p. 32.

[7] ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro, Polén, 2019, p. 55.

Autores

  • Brave

    é advogado do escritório Tidra e Silva Advogados, doutorando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), bolsista Proex-Capes, mestre em Direitos Humanos pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (Uniritter), pós-graduado em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

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