Opinião

Arbitragem investidor-Estado e a relação com os acordos sobre investimento

Autor

  • Thiago Ferreira Almeida

    é advogado e pesquisador convidado de doutorado na Faculdade de Direito da Universidade de Geneva (Unige) doutorando em Direito Internacional do Investimento na Faculdade de Direito da UFMG pesquisador associado no Centro de Excelência Jean Monnet (Erasmus+ & UFMG) professor e coordenador no Centro de Direito Internacional (Cedin).

11 de agosto de 2022, 16h04

O sistema jurídico que rege os acordos internacionais sobre investimento insere-se no direito internacional do investimento, parte integrante do direito internacional econômico e, por sua vez, do direito internacional público, uma vez que regula as relações a nível internacional entre estados exportadores (home states) e importadores de capital (host states) e, principalmente, a relação destes com os investidores estrangeiros (pessoas físicas ou jurídicas).

Em julho de 2022, a Conferência das Nações Unidas para o comércio e Desenvolvimento (United Nations Conference on Trade and Development — Unctad) publicou o mais atual relatório anual sobre o fluxo de investimentos internacionais no mundo [1].

Em linhas gerais, o relatório da Unctad de 2022 sintetiza a situação internacional, no que se refere ao fluxo dos investimentos a nível global, os principais desafios e as correlações entre fluxo de capital com as tratativas internacionais para a celebração de acordos bilaterais e regionais sobre proteção e facilitação ao investimento.

O relatório demonstra interessante evolução histórica na ratificação de acordos bilaterais de investimento (Bilateral Investment Treaties — BITs) e acordos bilaterais e regionais de comércio com cláusulas referentes à proteção do investimento (Treaties with Investment Provisions  TIPs).

A evolução da assinatura de acordos sobre investimento decorre de modelos anteriores que dispunham em mesmo texto, regras genéricas de comércio, investimento, proteção da propriedade em território estrangeiro e demais benefícios de submissão a jurisdição específica que afastava a aplicação da jurisdição do território em que se localizavam os estrangeiros (extraterritorialidade). Tais acordos era conhecidos como acordos de amizade, comércio e navegação (Friendship, Commerce and Navigation Treaties  FCNs) que perduraram por volta do século 19 até a década de 1980.

Estes acordos de amizade, por sua vez, decorriam do exercício de poder militar e econômico das potências europeias e dos Estados Unidos, inseridos no contexto do imperialismo no final do século 19 e início do século 20 , a estabelecer condições favoráveis de comércio e proteção dos interesses de seus nacionais em países que adquiriram independência após longos períodos de colonização, como ocorrido na América Latina.

Os FCNs eram também conhecidos pelo termo de acordos desiguais, uma vez que a assinatura eram estabelecidas por meio de pressão direta ou indireta das potências via uso da força militar ou econômica [2].

Os BITs, portanto, constituem-se como herdeiros do FCNs e de práticas entre Estados ao longo dos últimos séculos, como a proteção diplomática e a arbitragem entre Estados. O BIT possui aplicação recente, desde 1959, cujo primeiro instrumento foi o celebrado entre a Alemanha Ocidental e o Paquistão.

O tradicional modelo de BIT apresenta uma estrutura definida principalmente nas décadas de 1980 e 1990, no auge do período neoliberal, caracterizando-se essencialmente por regras de proteção universal do investidor estrangeiro conforme estrutura adotada pelas principais nações exportadoras de capital. Como países importadores de capital, ex-colônias, em sua maioria economias em desenvolvimento, adotaram tais acordos na tentativa de se mostrarem atrativos ao capital estrangeiro e, em consequência, contribuir para o seu desenvolvimento econômico.

Conforme o referido relatório da Unctad, o modelo do BIT teve grande ratificação ao longo das décadas de 1990 e 2000. Enquanto que durante 1961-1970 foram assinados menos de100 BITs e TIPs. No período 1991-2000, o número de acordos ultrapassou 1700. Lado outro, essa realidade de ratificação de acordos de investimento encontra-se em redução considerável nas décadas do século 21, sendo que no período 2011-2021 foram assinados 400 acordos.

A evolução, portanto, da assinatura de BITs e TIPs ao longo das décadas, marcadas pelo clímax na década de 1990 pode ser compreendida a partir do entendimento do modelo majoritário de solução de controvérsias sobre investimentos. Em linhas gerais, os acordos de investimento possibilitam que os investidores privados estrangeiros possam diretamente solicitar a criação de tribunal arbitral ad hoc referente a uma determinada violação em um BIT ou TIP, mesmo inexistente a conexão com um contrato doméstico (a exemplo, um contrato de concessão) entre o referido investidor estrangeiro e o Estado receptor do investimento (host state). Trata-se do modelo de solução de controvérsias Investidor-Estado (Investor-State Dispute Settlement — ISDS), previsto nas regras procedimentais do Centro Internacional para a Resolução de Conflitos sobre Investimento (International Centre for Settlement of Investment Disputes  ICSID) [3] ou da Comissão das Nações Unidas sobre Direito do Comércio Internacional (United Nations Commission on Internacional Trade Law  Uncitral) [4], como também em outras instituições internacionais.

Conforme relatório da Unctad, a partir do século 21, houve um crescente aumento dos casos de arbitragem investidor-Estado, sendo que, a partir de 2010, foi ultrapassado o número de 50 casos arbitrais por ano. Essa realidade demonstra que, após alguns anos de um acordo internacional ratificado, o Estado receptor de investimento submete-se a um litígio internacional sobre investimento, incorrendo em custos elevados para a instituição do tribunal arbitral, além dos altos valores de indenizações. Dessa forma, ao conjugar a recente redução de acordos de investimento com o aumento de casos arbitrais, pode-se inferir que os países atualmente estão decidindo por outras estruturas de solução de controvérsias, afastando-se do tradicional modelo arbitral Investidor-Estado (ISDS).

O modelo tradicional que visa a assegurar a proteção universal dos investimentos estrangeiros, a partir dos recentes dados de aumento das denúncias de acordos e da redução do número de ratificações de novas convenções sobre investimentos, é um indicativo da mudança de comportamento dos Estados receptores de investimentos (host States). Essa análise agrega a posição crítica da doutrina especializada sobre o Direito Internacional do Investimento, cujo sistema jurídico internacional se construiu historicamente por meio de práticas neocoloniais que se mantêm ainda hoje.

Acrescenta-se que a realidade de um sistema de solução de conflitos sobre investimentos baseado em decisões arbitrais ad hoc, desprovidas de uma entidade de revisão (a exemplo de uma corte de apelação), como ocorre no Sistema de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio (Understanding on Rules and Procedures Governing the Settlement of Disputes — DSU[5], é caracterizada por laudos arbitrais desconexos entre si e com impacto considerável no orçamento dos Estados importadores de capital.


[1] UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT — UNCTAD. World Investment Report 2022. June 2022. Disponível em: <https://unctad.org/webflyer/world-investment-report-2022>. Acesso em: 22 jun. 2022.

[2] ALMEIDA. Thiago Ferreira. A Antropofagia das Economias Emergentes: de Importadores a Exportadores de Capital e de Tomadores a Formadores do Direito Internacional do Investimento. In: RODRIGUES, Nuno Cunha; ACCIOLY, Elisabeth; MOURA, Aline Beltrame de. Relações Comerciais e de Investimento entre União Europeia e América Latina. Anais do I Seminário Jean Monnet Network BRIDGE, junho/2021. Promovido com recursos do Programa Erasmus+ da União Europeia. Lisboa: Instituto Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2021.

[3] INTERNATIONAL CENTRE FOR SETTLEMENT OF INVESTMENT DISPUTES  ICSID. Disponível em: <https://icsid.worldbank.org>. Acesso em: 2 ago. 2022.

[4] UNITED NATIONS COMMISSION ON INTERNACIONAL TRADE LAW  Uncitral. Disponível em: <https://uncitral.un.org>. Acesso em: 2 ago. 2022.

[5] WORLD TRADE ORGANIZATION  WTO. Understanding on Rules and Procedures Governing the Settlement of Disputes. Disponível em: <https://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/28-dsu_e.htm>. Acesso em: 3 ago. 2022.

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  • é advogado e pesquisador convidado de doutorado na Faculdade de Direito da Universidade de Geneva (Unige), doutorando em Direito Internacional do Investimento na Faculdade de Direito da UFMG, professor e coordenador no Centro de Direito Internacional (Cedin)

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