Opinião

Capitulação diversa do fato narrado na ação por improbidade

Autor

  • Ricardo Magalhães de Mendonça

    é mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) procurador da República coordenador do Núcleo de Combate à Corrupção da Procuradoria da República no Estado do Ceará membro do Gaeco da mesma unidade e ex-advogado da União.

11 de agosto de 2022, 19h25

A Lei n° 14.230, de 25 de outubro de 2021, promoveu profundas mudanças na Lei n° 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa), praticamente inaugurando uma nova disciplina para a sanção dos atos de improbidade administrativa.

Não apenas as condutas típicas e suas respectivas sanções foram substancialmente alteradas, mas também o procedimento pelo qual são instruídas as causas e apreciados os fatos pelo julgador foi bastante modificado.

Entre as mais impactantes consta o preceito contido no artigo 17, § 10-F, I, da Lei n° 8.429/92, que preconiza que será nula a decisão de mérito total ou parcial da ação de improbidade administrativa que condenar o requerido por tipo diverso daquele definido na petição inicial.

Em suma, o legislador veda que o Poder Judiciário confira para os fatos narrados na petição inicial da ação por ato de improbidade administrativa uma capitulação legal diversa daquela atribuída pelo autor da demanda.

Isso não apenas transgride a independência do Poder Judiciário e o princípio da separação dos poderes, como mostra-se incompatível com regras e princípios ínsitos à prestação jurisdicional.

Com efeito, é princípio jurídico basilar que cabe ao juiz aplicar o Direito que entende pertinente aos fatos submetidos ao seu julgamento (Iura Novit Curia). Isso quer dizer que o juiz conhece as normas jurídicas e as aplica aos fatos trazidos pelas partes ao seu conhecimento por intermédio do processo. O aspecto fundamental numa lide, portanto, são os fatos e o pedido. Todavia, a qualificação jurídica conferida aos fatos pelo autor jamais pode vincular o julgador, sob pena de comprometer a sua independência no processo de aplicação e concretização do Direito.

Ademais, os réus nas ações por ato de improbidade administrativa, tal como se dá nas ações penais, se defendem dos fatos que lhes são imputados, e não dos tipos contidos na Lei de Improbidade Administrativa. Sob o enfoque da defesa, é irrelevante a classificação jurídica atribuída na demanda, desde que haja clareza dos fatos atribuídos ao réu, possibilitando o pleno exercício das suas faculdades processuais. Por exemplo, se é atribuída à conduta narrada na ação a tipificação por dano ao erário, quando o correto seria classificá-la como ato de enriquecimento ilícito, em nada prejudica o exercício da defesa a circunstância de tais fatos serem incorretamente capitulados. Isso é mera questão de subsunção dos fatos expostos na demanda aos tipos previstos na lei, embora possa ter alguma repercussão na cominação abstrata das penas para maior ou menor gravidade.

No processo penal, esse procedimento é chamado de emendatio libelli, que permite ao juiz conferir classificação diversa da contida na denúncia para os fatos ali descritos, ainda que tenha de aplicar pena maior ao réu (artigo 383 do CPP). Não requer mudança no contexto fático trazido pela acusação, por isso mesmo não resulta em qualquer prejuízo ao acusado. Esse era o mesmo entendimento seguido pelos tribunais pátrios no julgamento das ações por ato de improbidade administrativa, antes da vigência da nova Lei, dada a aproximação entre os institutos da Lei de Improbidade Administrativa e as normas penais [1]. Não há que se falar, nesse caso, em julgamento fora ou além do pedido.

Impedir que o juiz confira classificação diversa aos fatos trazidos na petição inicial, efetuando o adequado enquadramento da imputação aos tipos abstratos previstos em Lei, é manietar a principal função do Poder Judiciário, sua atividade de subsunção dos fatos às normas, já que, a rigor, nos termos do artigo 17, § 6°, da Lei de Improbidade Administrativa, ao autor compete "individualizar a conduta do réu e apontar os elementos probatórios mínimos que demonstrem a ocorrência das hipóteses dos arts. 9°, 10 e 11 desta Lei".

Ora, a exigência legal é apenas para que o autor descreva, na petição inicial, a conduta ímproba amoldável a um dos tipos previstos naquela Lei, e aponte os elementos probatórios mínimos, exigência similar às normas processuais que disciplinam a acusação penal; não se exige que a classificação dos fatos imputados seja a correta. Isso não pode consistir sequer em condição da ação!

Note-se que a primeira parte do parágrafo 10-C do artigo 17 entrevê a própria dificuldade de superar os problemas causados pelo próprio legislador. Ali consta que, após a réplica do Ministério Público, na fase de saneamento processual, o juiz indicará com precisão a tipificação do ato de improbidade. Ora, o verbo indicar significa exatamente subsumir a conduta ao tipo adequado à espécie, ainda que seja diferente da atribuída pelo autor.

A mesma preocupação com a autocontenção do magistrado e com o exercício da defesa não foi demonstrada pelo legislador ao admitir a conversão da ação por ato de improbidade administrativa em ação civil pública para controle de legalidade de atos administrativos, com possibilidade de repercussão financeira para o réu (artigo 17, § 16). Esse preceito admite a possibilidade de o juiz alterar, de ofício, a estrutura da demanda se identificar irregularidades ou ilegalidades administrativas existentes nos autos, sem iniciativa de seu autor e procedimento para manifestação prévia e adequada do réu. Tal contexto comprova mais uma vez a falta de tratamento coerente e sistêmico do legislador.

Sob o aspecto da indisponibilidade dos direitos em jogo, vale lembrar que a espécie de tutela jurisdicional prestada numa ação por ato de improbidade administrativa se aproxima da pretensão punitiva estatal exercida pela Justiça Penal, embora constituam instâncias diversas. Essa linha foi expressamente acolhida pela nova Lei de Improbidade Administrativa, ao positivar a aplicação princípios do Direito Administrativo Sancionador (artigo 1°, § 4°), buscando, com isso, o compartilhamento dos seus princípios gerais, como o da legalidade estrita, da anterioridade das normas sancionadoras e da pessoalidade e individualização das sanções [2].

Nessa senda, a vinculação da atividade jurisdicional à capitulação dos fatos trazidos pelo autor vai na contramão do tipo de interesse tutelado pelas ações desse tipo. Nitidamente, tratam-se de direitos indisponíveis que não podem estar ao dispor de um único agente público, no caso, o integrante do MP, por mais qualificado que seja. Na clássica teoria dos freios e contrapesos, é necessário que o poder de provocar a jurisdição seja dissociado do poder de dizer o Direito adequado ao caso. Assim ocorre com a dinâmica do exercício da pretensão acusatória penal e deve ocorrer com a das ações por ato de improbidade administrativa.

Também não se mostra coerente com o sistema jurídico a proposta de certa doutrina que, para solucionar problemas provocados pela previsão legal em apreço, recomenda, para o caso de incorreção da capitulação autoral, a extinção do processo sem julgamento do mérito, facultando a nova propositura da demanda com a capitulação adequada [3]. Tal proposta, a toda evidência, atenta contra a instrumentalidade do processo contra o próprio princípio da eficiência, não tendo nenhum sentido se exigir a propositura de idêntica demanda (mesmas causa de pedir, partes e pedido), com simples alteração da capitulação legal.

A interpretação mais adequada, a partir da conjunção dos dispositivos aplicáveis, em obséquio ao disposto no artigo 10 do CPC, que veda as decisões surpresas, seria admitir que o juiz possa conferir capitulação diversa aos atos de improbidade imputados ao réu na decisão de saneamento processual, garantido-se ao réu conhecimento da adequada tipificação, oportunidade de discutir a correta incidência, para, com isso, possibilitar-lhe influir na formação da decisão judicial.


[1] REsp 1.192.583/RS, rel. min. Eliana Calmon, 2ª Turma, julgado em 24/8/2010, DJe 8/9/2010.

[2] OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador, Parte 1, capítulo 1, 2022, edição em e-book.

[3] JUSTEN FILHO, Marçal. Reforma da Lei de Improbidade Administrativa comparada e comentada. Rio de Janeiro: Gen Forense, 1ª ed., 2022, p. 199.

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  • Brave

    é mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), procurador da República, coordenador do Núcleo de Combate à Corrupção da Procuradoria da República no Estado do Ceará, membro do Gaeco da mesma unidade e ex-advogado da União.

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