Interesse Público

A vedação à aquisição dos bens de luxo: dificuldades à vista

Autores

  • Cristiana Fortini

    é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretora jurídica da Cemig e presidente do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo).

  • Christianne de Carvalho Stroppa

    é advogada da Jacoby Fernandes & Reolon Adv. Associados. Professora doutora e mestre pela PUC-SP. Ex-assessora de gabinete no Tribunal de Contas do Município de São Paulo. Especialista em Licitações e Contratos Administrativos. Membro associado do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo) do Idap (Instituto de Direito Administrativo Paulista) do Iasp (Instituto dos Advogados de São Paulo) e do INCP (Instituto Nacional de Contratação Pública.

11 de agosto de 2022, 8h03

A definição de compra, contida no inciso X, do artigo 6º, compreende toda aquisição remunerada de bens para fornecimento de uma só vez ou parceladamente, considerada imediata aquela com prazo de entrega de até 30 dias da ordem de fornecimento.

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Ao disciplinar o processo licitatório, optou o legislador por inserir dispositivo indicando, expressamente, que os bens de consumo devem ser de qualidade comum.

Trata-se do artigo 20, fruto de emenda ao Projeto de Lei 1.292/95, apresentada após veiculação de notícias de licitação visando à contratação de lagostas e outros itens. Objetiva-se coibir o uso de recursos públicos com a contratação de bens cujos valores, diante das suas características especiais, superam os padrões médios de consumo e não devem ser adquiridos pelas entidades que compõem a administração pública.

O obstáculo constante do artigo 20 não significa que a administração pública não tenha que se preocupar com a qualidade do objeto, sobretudo porque não se pode ignorar que entre os princípios informadores do procedimento licitatório está assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a administração pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto (artigo 11, I) [1]. Também deve ser destacado o que prevê o artigo 40 § 1º que, ao dissecar o conteúdo do termo de referência, faz alusão à especificação do produto, preferencialmente conforme catálogo eletrônico de padronização, observados os requisitos de qualidade, rendimento, compatibilidade, durabilidade e segurança.

Logo, resta vedada a compra de bens de luxo, supérfluos e, nessa medida, desnecessários e desproporcionais11, o que não contrasta com o dever de perseguir contratações cujos termos de referência definam objetos de boa qualidade

Entretanto, remanescem as seguintes questões: o que é bem comum? quais os critérios para identificar um bem como comum?

A Lei nº 4.320/1964, em seu artigo 12, indica as categorias econômicas nas quais se classificam as despesas públicas, dividindo-as em despesas correntes e de capital.

As despesas correntes compreendem por exemplo os gastos com a manutenção de serviços já criados. Suas principais características são: tratar-se de despesas rotineiras, repetidas a cada ano; são economicamente improdutivas, porquanto não produzem qualquer acréscimo de capital, os dispêndios a ela relativos não contribuem diretamente para a formação ou aquisição de um bem de capital.

Entre as espécies de despesas correntes há as despesas de custeio (§1º) àquelas realizadas pela administração, na manutenção e operação de serviços internos e externos já criados e instalados, inclusive aquelas que dizem respeito a obras de conservação e adaptação de bens imóveis. O material de consumo está inserido em seu rol (artigo 13).

O Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público [2], por sua vez, define o material de consumo como aquele que, em razão de seu uso corrente e da definição da Lei nº 4.320/1964, perde normalmente sua identidade física e/ou tem sua utilização limitada a dois anos.

Além disso, a classificação depende da observância de alguns parâmetros que distinguem o material permanente do material de consumo. O material é considerado de consumo caso atenda pelo menos um dos critérios a seguir:

  • Critério da Durabilidade – Se em uso normal perde ou tem reduzidas as suas condições de funcionamento, no prazo máximo de dois anos;
  • Critério da Fragilidade – Se sua estrutura for quebradiça, deformável ou danificável, caracterizando sua irrecuperabilidade e perda de sua identidade ou funcionalidade;
  • Critério da Perecibilidade – Se está sujeito a modificações (químicas ou físicas) ou se deteriora ou perde sua característica pelo uso normal;
  • Critério da Incorporabilidade – Se está destinado à incorporação a outro bem, e não pode ser retirado sem prejuízo das características físicas e funcionais do principal. Pode ser utilizado para a constituição de novos bens, melhoria ou adições complementares de bens em utilização (sendo classificado como 4.4.90.30), ou para a reposição de peças para manutenção do seu uso normal que contenham a mesma configuração (sendo classificado como 3.3.90.30);
  • Critério da Transformabilidade – Se foi adquirido para fim de transformação.

A identificação do que se compreende como bem de consumo, como verificado, decorre de classificação expressamente prevista na Lei nº 4.320/1964. Mas tal regra não elucida o que se deve entender por bem comum em contraposição ao bem de luxo.

Pela expressa redação do citado artigo 20, os limites para o enquadramento dos bens de consumo serão definidos pelos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, no âmbito do regulamento. Aliás, é preciso recordar a previsão segundo a qual, a partir de 180 dias contados da promulgação da Lei nº 14.133/2021, novas compras de consumo só poderão ser efetivadas com a expedição do referido regulamento pela autoridade competente.

Destaca-se que o artigo 20 menciona a necessidade de regulamentação para aquisição do referido bem comum. Aliás, serão necessários "regulamentos diversos, a serem editados no âmbito dos diversos Poderes. Essa determinação reflete o reconhecimento da inviabilidade de o Poder Executivo imiscuir-se no âmbito dos demais Poderes. Cada Poder disporá de autonomia para disciplinar a questão no âmbito de suas competências, inclusive para preservar a autonomia indispensável à sua atuação".

O Poder Executivo Federal, ao regulamentar referido dispositivo, expediu o Decreto nº 10.818, de 27 de setembro de 2021, tendo estabelecido o enquadramento dos bens de consumo adquiridos para suprir as demandas das estruturas da administração pública federal nas categorias de qualidade comum e de luxo.

Segundo o artigo 2º do citado decreto, considera-se bem de luxo, o bem de consumo com alta elasticidade-renda da demanda [3], identificável por meio de características tais como ostentação; opulência; forte apelo estético; ou requinte (inciso I).

O ente público considerará no enquadramento (artigo 3º) a relatividade econômica (variáveis econômicas que incidem sobre o preço do bem, principalmente a facilidade ou a dificuldade logística regional ou local de acesso ao bem) e a relatividade temporal (mudança das variáveis mercadológicas do bem ao longo do tempo, em função de aspectos como: evolução tecnológica; tendências sociais; alterações de disponibilidade no mercado; e modificações no processo de suprimento logístico).

Em contraposição, o bem de qualidade comum é o bem de consumo com baixa ou moderada elasticidade-renda da demanda (inciso II, artigo 2º).

Dentre os regulamentos já editados por outros entes federativos, destacam-se: Decreto nº 965/2022 do município de Goiânia (GO); Decreto nº 1.883/2021 do município de Curitiba (PR); Decreto nº 51.652/2021 do estado do Pernambuco; Decreto nº 4.294/2021 do município de Monte Claros (MG); Decreto nº 10.086/2022 do estado do Paraná, entre outros exemplos.

Em geral, referidos normativos seguem a mesma premissa do Decreto Federal, especialmente quando usa como referência a ideia de "elasticidade-renda da demanda".

Como anotado por Tiago Reis, a elasticidade como um conceito básico da economia, "é o percentual de alteração em uma determinada variável, dada uma variação percentual em outra. Pode ser relacionado com sensibilidade ou reação da variável em questão em relação a outras. Ainda, a elasticidade-preço da demanda consiste na variação percentual na quantia demandada, a partir de outra variação do bem" [4].

Já a elasticidade-renda da demanda mede o quanto que a quantidade demandada de um bem responde a uma variação na renda do consumidor. É calculada como a variação percentual na quantidade demandada dividida pela variação percentual na renda. Significa dizer que uma renda mais alta aumenta a quantidade demandada de um bem normal, mas diminui a quantidade demandada de bens inferiores: bens considerados necessidades pelos consumidores tendem a ser renda inelásticos; já os bens considerados de luxo pelos consumidores tendem a ser renda elásticos.30

Sob a ótica econômica, a ideia de elasticidade-renda tem fundamento o comportamento de consumo adotado pelo consumidor, assim a dificuldade será a transposição dessa noção para os bens que serão adquiridos pela administração pública.

Nesse sentido, parece haver critérios objetivos para identificar o que é bem comum, mas a dificuldade, até por se tratar de conceito jurídico-indeterminado, será a definição do que se entende como bem de luxo.

Até porque "há alguns produtos que claramente são enquadráveis nessa categoria. Assim, há veículos de luxo, há alimentos e bebidas de luxo, que são assim qualificáveis em virtude da sua excepcionalidade, de atributos diferenciados que não são essenciais para a satisfação de necessidades e que são comercializados por valores vultosos.

Por outro lado, também é inquestionável que existem produtos que não se enquadram na categoria. São aqueles objetos que apresentam atributos mínimos, fabricados com insumos básicos, e cujo preço é acessível à generalidade da população.

No entanto, entre a zona de certeza positiva e a zona de certeza negativa quanto à configuração como 'objeto de luxo' há uma área razoável de incerteza. Há uma grande quantidade de produtos cujo enquadramento é problemático" [5], como afirma Marçal Justen Filho.

 


[1] CAMARÃO, Tatiana. In: FORTINI, Cristiana; OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de; TAMARÃO, Tatiana (Coords.). Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Belo Horizonte; Fórum, 2022, p. 179-210.

[3] Razão entre a variação percentual da quantidade demandada e a variação percentual da renda média (inciso IV, art. 2º).

[4] Disponível em: https://www.suno.com.br/artigos/elasticidade/. Acesso em: 25 Jul. 2022.

[5] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratações administrativas. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 369

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    é advogada, visiting scholar pela George Washington University, doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em mediação, conciliação e arbitragem pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático (IDDE), professora da graduação, mestrado e doutorado da UFMG, professora do mestrado da Faculdade Milton Campos, professora Visitante da Università di Pisa, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA) e diretora regional do Ibeji.

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    é advogada da Jacoby Fernandes & Reolon Adv. Associados. Professora doutora e mestre pela PUC-SP. Ex-assessora de gabinete no Tribunal de Contas do Município de São Paulo. Especialista em Licitações e Contratos Administrativos. Membro associado do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo), do Idap (Instituto de Direito Administrativo Paulista), do Iasp (Instituto dos Advogados de São Paulo) e do INCP (Instituto Nacional de Contratação Pública.

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