Opinião

As regras vigem, mas não vigoram. Quem vigora é a força do intérprete

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11 de agosto de 2022, 10h03

A interpretação não institui, não instaura, não inaugura a regra (lei).

Por isso, a interpretação, que vem depois, deveria somente traduzir em norma (decisão jurisdicional, arbitral ou administrativa) a regra, que vem antes, no vocacionado desvelo de conferir-lhe efetividade e permanência, permanência e voz.

Herdeira de Hermes [1], a interpretação intervém como o mensageiro, que sempre deveria zelar para que a mensagem chegasse íntegra e ilesa ao destino.

Pois o mensageiro, na atual prática hermenêutica, tornou-se a própria mensagem.

Hoje, as regras vigem, porém não vigoram.

Na realidade, sequer a interpretação vigora.

Antes, quem vigora é a força do intérprete, porque, no fim do dia, quem fala por último é um decisionismo, a cada tropeço e atropelo, mais desenfreado, mais pedestre, mais impenitente.

Esse decisionismo, a pretexto de interpretar, cala os preceitos legislados, que, embora não tenham cordas vocais, falam a partir da história, falam a partir da tradição, falam a partir da lógica, falam a partir dos conceitos jurídicos, falam, enfim, a partir de sua prévia e vinculante pregnância de sentido.

Virou moda pedir socorro a um pragmatismo ad hoc, quando o legislador prescreve algo com que o intérprete, sobretudo autoridade, não concorda. Aí, justamente aí, alastra-se aberto domínio das vontades. Soa o alarme e, como agora no cabo de guerra sobre a nova Lei de Improbidade, os intérpretes entram em estado de prontidão e restrita solicitude para o triunfo do seu querer. Em vez de interpretações, sobrevém puro entrechoque de apetites e anseios. Até o que nunca deixou de significar o que sempre significou passa a ter inédito e surpreendente significado. É como se a lei se transformasse em ferramenta para qualquer uso, menos para o qual foi concebida.

A lei passa a ser interpretada como se não houvesse um sentido predesignado e anterior ao intérprete e suas idiossincrasias — inclusive ideológicas, inclusive políticas, inclusive religiosas, inclusive morais. O querer domina o sentido e marginaliza a interpretação. O resultado é um extravagante tumulto em que há progressivo risco de a sociedade esquecer, em meio ao extremo vozerio, o valor original reverenciado pela lei. Não é à toa que, hoje em dia, nem mesmo em torno do respeito incondicional à democracia há consenso.

A situação preocupa.

As regras já não se reconhecem nas normas. As regras já não vêm à palavra nas normas. O intérprete já não faz a experiência do sentido, mas, tão só, de seu querer. Cada leitura da legislação equivale a um voluntarioso ato de tomar posse. A vontade de querer tornou-se norma, usurpando, assim, o lugar constitucional da regra.

Contudo, no Estado democrático de Direito, o que encoraja e motiva deveria ser, em igual proporção, o que contém e guia o intérprete: o apreço civilizado e civilizatório pela lei e pela Constituição.


[1] Platão – Íon, 534e: "…os mensageiros [hermeunés – intérpretes] dos deuses"

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