Opinião

Proteção de dados no contexto eleitoral

Autor

  • Mônica T. Medeiros Lopes Scariot

    é advogada do escritório Lopes e Pauletto Associados especialista em Direito Civil Negocial e Imobiliário pela LFG/Anhanguera e especialista em Digital e Proteção de Dados pela Escola Brasileira de Direito (Ebradi).

10 de agosto de 2022, 11h02

Em janeiro de 2022 a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) divulgaram em conjunto um guia destinado a orientação e aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) por agentes de tratamento no contexto eleitoral [1].

O guia possui uma série de informações sobre a lei, além de exemplos sobre as bases legais para tratamento, especialmente sobre o consentimento, uma das principais hipóteses quando se trata de campanha eleitoral. A iniciativa é de suma importância, isto pois, as eleições deste ano serão as primeiras em que a LGPD estará em plena vigência, uma vez que embora tenha sido promulgada em agosto de 2018, entrou em vigor em setembro de 2020.

O documento orientativo possui várias informações tais como: as principais bases legais (consentimento, obrigação legal e legítimo interesse), informação sobre canais de atendimento para exercício dos direitos dos titulares, informações/exemplo sobre utilização sobre bases de dados antigas, além de uma série de exemplos práticos incluindo questões voltadas à segurança da informação. Contudo, é direcionado à proteção de dados do eleitor, não havendo nenhuma indicação à proteção dos dados dos candidatos, embora evidentemente sejam titulares de dados. Faço essa ressalva, porque em junho de 2022 o TSE promoveu audiências públicas, justamente em função da divulgação de dados pessoais de candidatos pela plataforma intitulada DivulgaCandContas [2], na qual uma série de dados pessoas (incluindo dados sensíveis) ficam disponibilizados [3]. Dentre os questionamentos efetuados aos participantes da audiência — incluindo alguns juristas renomados  destaca-se:

1) Há necessidade de operar ajustes na plataforma DivulgaCandContas e no sistema processo Judicial Eletrônico quanto à extensão da publicização do trâmite dos processos de registro de candidatura e de demonstrativo de regularidade de atos partidários? Em caso de resposta positiva, quais seriam eles?

2) Há necessidade de reconsiderar o acesso ao teor das certidões criminais disponibilizadas na plataforma DivulgaCandContas, inclusive no período para além ao "período crítico eleitoral" (do início da campanha até a data da eleição)?

3) Há necessidade de inibir a publicização na plataforma DivulgaCandContas de algum (ns) dado (s) pessoal (is) titularizado (s) pelo (a) requerente do registro de candidatura? Em caso de resposta positiva, quais seriam eles?

4) Há necessidade de operar ajustes ou de inibir a publicização na plataforma DivulgaCandContas de informações atinentes ao campo "Lista de Bens Declarados"?

Nesse sentido, vale lembrar que a LGPD é uma lei geral destinada à proteção dos dados pessoais e com a emenda constitucional 115 o direito à proteção de dados passou a ser direito constitucional. Dessa forma, ainda que não tenha havido a manifestação da ANPD no guia conjunto do TSE sobre a proteção aos dados pessoais dos candidatos, é certo que há aplicabilidade da norma aos candidatos, o que certamente impulsionou as audiências públicas anteriormente mencionadas.

E aqui, faço a ressalva de que a presente reflexão não tem nenhum cunho político partidário, mas apenas o questionamento da aplicação da norma de proteção de dados de uma forma mais ampla, alcançando todos os titulares de dados no contexto eleitoral, independente do espaço que venham a ocupar.

Com relação a plataforma que disponibiliza os dados das eleições anteriores, ainda que tenha surgido o questionamento por meio da audiência pública ocorrida em junho do ano corrente, dados pessoais de candidatos seguem sendo disponibilizados, a exemplo de nome, e-mail, ocupação, gênero, raça, CPF. A questão que fica é: existe finalidade ou necessidade de manutenção desses dados antigos? E existindo, não poderiam ser eles anonimizados? Além disso, existem informação relativas ao patrimônio, que na eleição anterior ou pleitos passados foram necessários (mas na época não tínhamos uma norma de privacidade em sua plena vigência, tampouco um direito constitucional à proteção de dados).

O famoso privacy by design está sendo observado na plataforma Divulgacandcontas no sentido de impedir que dados de raça ou informações desnecessárias fiquem disponíveis? Há preocupação com relação aos algoritmos de inteligência artificial que utilizam esses dados para discriminação para questões futuras? O equilíbrio e harmonização dos princípios que baseiam a lei geral de proteção de dados estão sendo observados?

É notório que os dados sensíveis possuem um cuidado especial, sendo que se tratando da filiação partidária, é evidente que há cumprimento do princípio da finalidade na indicação deste dado na plataforma. Em contrapartida, sabe-se da polêmica/problemática que se tem de tratar de dados discriminatórios. Poderia a raça ser um dado pessoal opcional a ser indicado?

Embora tenham sido realizadas as audiências públicas no mês de junho, até o momento não houve um posicionamento do TSE sobre o resultado da análise, ainda que as candidaturas já estejam ocorrendo no portal. Questionei o TSE por meio da ouvidoria e obtive o retorno que "todas as ponderações serão objeto de análise e o processo (PA no PJE 0600231-37) oportunamente voltará a ser apreciado pelo plenário".

É certo que tanto o TSE quanto a ANPD terão muito trabalho pela frente, especialmente nos próximos meses, pois conciliar questões necessárias para transparência de candidaturas e cumprimento das normas de proteção de dados, sem que haja ferimento de direito constitucional não será uma tarefa simples. Além disso, especialmente com relação a ANPD, na qualidade agora de autarquia federal, terá o dever de fiscalizar o cumprimento dos ditames da LGPD com relação a proteção de dados do titular na esfera de campanha eleitoral, sendo vigilante nas denúncias por propaganda política indevida (sem consentimento, por exemplo, ou outra base legal que autorize o tratamento dos dados).

Certamente não há uma resposta adequada para o questionamento, principalmente porque como mencionado acima trata-se da primeira eleição sob a vigência plena da norma, ou seja, desde o tratamento dos dados por parte do poder público, à fiscalização por parte da ANPD a aplicabilidade da norma por parte dos partidos no que diz respeito a campanha eleitoral haverá várias lacunas e interpretações distintas. Mas, sabe-se que independente da LGPD o direito constitucional se aplica a todos os titulares (candidatos e eleitores) e caberá ao TSE e a ANPD acharem um caminho do meio para fazerem esse balanceamento.

Harmonizar o interesse público e o privado nunca foi uma tarefa fácil, mas certamente nos próximos meses ouviremos muito sobre proteção de dados — ou falta dela — no âmbito das eleições.

[1] https://www.gov.br/anpd/pt-br/documentos-e-publicacoes

[2] https://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/

[3] https://www.tse.jus.br/servicos-judiciais/audiencias-publicas/audiencia-publica-sobre-os-possiveis-impactos-da-implementacao-da-lgpd-no-processo-eleitoral-de-registro-de-candidatura

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    é advogada do escritório Lopes e Pauletto Associados, especialista em Direito Civil, Negocial e Imobiliário pela LFG/Anhanguera e especialista em Digital e Proteção de Dados pela Escola Brasileira de Direito (Ebradi).

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