Opinião

Tributação dos descontos na transação: Lei 14.375 e desigualdade tributária

Autor

  • Henrique Roth Isfer

    é advogado mestrando em Direito Tributário pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP) membro do Núcleo de Direito Tributário do mestrado profissional da mesma instituição e pós-graduado em Gestão Contábil e Tributária pelo FAE Centro Universitário.

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10 de agosto de 2022, 19h28

A transação tributária tem sido um dos principais instrumentos de recuperação de créditos públicos desde o seu advento, em meados de 2020. Com o intuito de aperfeiçoar o diálogo com os contribuintes e modernizar o sistema de regularização fiscal, a medida foi objeto de intensas discussões acerca de seus benefícios, limites e possibilidades de aperfeiçoamento, o que reflete a importância que assumiu na agenda dos devedores fiscais federais e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN).

Nesse contexto de erros e acertos é que foi publicada a Lei n° 14.375/2022, cujo principal objetivo foi atualizar a legislação em face dos problemas e gargalos práticos encontrados desde o advento da então inédita figura no sistema normativo brasileiro.

Para além de prever maiores descontos e a possibilidade de utilização de créditos oriundos de prejuízos fiscais do IRPJ e da base negativa da CSLL, o diploma legal incluiu o §12° no artigo 11 da Lei n° 13.988/2020, determinando que "os descontos concedidos nas hipóteses de transação na cobrança de que trata este Capítulo não serão computados na apuração da base de cálculo" do IRPJ, da CSLL e das contribuições ao PIS/Pasep e à Cofins.

Em uma primeira leitura, poder-se-ia entender a norma como grande "êxito" dos contribuintes, na medida em que os descontos concedidos podem alcançar até 65% das inscrições individuais perante à Fazenda Nacional  possuindo alto potencial de custo tributário. Todavia, a realização de um exame mais acurado sobre a questão traz válidas preocupações aos contribuintes e aos operadores do direito.

O cerne dessas preocupações reside na constatação de que não existe norma descritiva, com mera função de transmitir informações de como as coisas são. Conforme leciona Humberto Ávila, as normas são enunciados prescritivos, com função de "modificar, dirigir ou influenciar o comportamento do destinatário" [1]. Sendo assim, o §12° do artigo 11 da Lei n° 13.988/2020, ao prever a não tributação dos descontos concedidos nos acordos de transação na cobrança, não está descrevendo como as coisas são ou reconhecendo que sobre essa insubsistência passiva não há tributação, mas sim dirigindo o comportamento da Fazenda Nacional para que não realize o cômputo desses valores na base de cálculo do IRPJ, da CSLL e das contribuições ao PIS/Pasep e à Cofins.

Da constatação acima, uma interpretação lógica pode levar à seguinte conclusão: sendo necessário enunciado prescritivo para modificar ou dirigir o comportamento estatal no sentido de não computar os descontos para fins de tributação, aparenta-se que, num estado normal de coisas, as diminuições do passivo fiscal seriam consideradas para fins de incidência fiscal dos mencionados tributos.

Todavia, ao menos em relação às contribuições ao PIS/Pasep e à Cofins, trata-se de constatação duvidosa. Isso porque, para fins de incidência dos mencionados tributos, determinado fenômeno econômico deve se enquadrar no conceito jurídico de receita  e não meramente contábil , já definido no Recurso Extraordinário nº 606.107, com repercussão geral reconhecida. Assim, deve se constatar as seguintes notas determinantes: 1) ingresso financeiro; 2) que se integra no patrimônio; 3) na condição de elemento novo e 4) positivo; 5) sem reservas ou condições.

Nesse caminho, a norma mencionada aparentemente se torna inócua. Ao dispor a não tributação de fenômeno que potencialmente não seria tributado, a prescrição acaba por ter o sentido esvaziado.

Ora, mas haveria relevância nessa discussão? Independentemente ou não da previsão legal, o resultado final não seria a não tributação dos descontos concedidos nos acordos de transação tributária, trazendo maior segurança jurídica aos contribuintes? Infelizmente, não.

Isso porque o §12° do artigo 11 da Lei n° 13.988/2020 se encontra no Capítulo II da Lei nº 13.988/2020, que se refere tão somente à modalidade de transação na cobrança. Não há, portanto, previsão geral que alcance todas as modalidades. A norma supracitada, portanto, não irradia efeitos em relação às transações no contencioso de relevante e disseminada controvérsia jurídica (Capítulo III) e no contencioso de pequeno valor (Caítulo IV).

Assim, estariam excluídos do "benefício" os contribuintes que firmaram, por exemplo, as relevantes transações no contencioso envolvendo a amortização fiscal do ágio (Edital nº 9/2022) e a participação nos lucros e resultados  PLR (Edital nº 11/2021). Também é possível refletir acerca da questão temporal: aqueles que firmaram acordos de transação na cobrança anteriormente à publicação da norma, deverão ser atingidos pela tributação?

Há, portanto, um segundo problema com o advento §12° do artigo 11 da Lei n° 13.988/2020: a flagrante desigualdade de tratamento. Para este fim, é necessário rememorar que o Poder Legislativo, em sua tarefa precípua, está adstrito ao princípio da igualdade. Não há dúvidas que, dentro da liberdade legislativa, é possível instituir medidas de comparação entre os subordinados, todavia, desde que essas medidas de comparação sejam constitucionalmente fundamentadas e respeitem a proporcionalidade [2].

Não parece ser o caso, no qual não há qualquer diferenciação relevante ou constitucionalmente aceita entre os contribuintes que realizam acordos pautados na transação na cobrança e aqueles que aderiram aos editais da transação no contencioso.

Observe-se a complexidade do tema. Não só a norma legal deixa de resolver a problemática da insegurança tributária que reside no debate sobre a tributação da diminuição do passivo fiscal em transações tributárias, como potencializa o estado incerto de coisas.

Diante do exposto, tem-se dois encaminhamentos práticos para a questão. Caso se compreenda que os descontos concedidos não se enquadram no conceito de receita para fins de incidência do IRPJ, da CSLL e das contribuições ao PIS/Pasep e à Cofins, o que poderia ser esclarecido por meio de ato interpretativo da Secretaria da Receita Federal do Brasil, ter-se-ia por resolvida a questão da desigualdade da norma, ainda que seja entendida como inócua.

Todavia, na hipótese de o artigo ser interpretado como benefício fiscal, aplicado somente às transações na cobrança a partir da publicação da Lei nº 14.375, a situação seria de flagrante violação ao princípio da igualdade de tratamento, direito fundamental dos contribuintes, sendo necessária a atuação do Poder Judiciário como parte do sistema de freios e contrapesos no controle dos poderes institucionais.


[1] ÁVILA, Humberto. Competências tributárias: um ensaio sobre a sua compatibilidade com as noções de tipo e conceito. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 17.

[2] ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 174.

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  • é advogado, mestrando em Direito Tributário pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP), membro do Núcleo de Direito Tributário do mestrado profissional da mesma instituição e pós-graduado em Gestão Contábil e Tributária pelo FAE Centro Universitário.

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