Garantias do Consumo

"Direito à reparação": universal panaceia ou torpe mistificação?

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10 de agosto de 2022, 8h04

O direito à reparação de bens de consumo permanece na ordem do dia.

A propósito do Fair Repair Act de Nova York, recentemente adotado, os media encheram-se de referências que nem sempre primaram pelo rigor, na forma ligeira como certos articulistas tratam determinados temas de interesse manifesto.

Ao invés do que se vem asseverando em círculos menos bem documentados e, consequentemente, menos esclarecidos, não se trata de uma realidade palpável, entre nós, na Europa, antes de um projeto em progressão [?].

O Parlamento Europeu estima, em proposta de Resolução de 30 de março do ano em curso, aprovada a 7 de abril pretérito, conquanto ainda não publicada, que:

  • 79 % dos cidadãos da UE consideram que haveria que impor os fabricantes propiciassem a reparação dos dispositivos digitais ou a substituição das suas peças individuais;
  • 77 % dos europeus preferem reparar os seus dispositivos em vez de os substituir [há patente contradição nos desenvolvimentos subsequentes…];
  • as empresas do mercado da reparação poderiam garantir de forma considerável emprego a nível local e, como se sustenta, competências específicas a nível europeu.

Daí que considere fundamental se outorgue aos consumidores um "direito à reparação" de molde a incrementar a transição industrial da Europa, reforçando resiliência e autonomia estratégica.

Reconhece que o estímulo a uma cultura de reparação [que não de descarte e consequentemente de acumulação de resíduos imprestáveis] oferece inegavelmente oportunidades econômicas e sociais em termos de empreendedorismo e criação de distintos programas de atuação.

Sem eventual referência a antecedentes, que o espaço escasseia, situemo-nos na resolução do Parlamento Europeu de 4 de julho de 2017

Eis parte das recomendações endereçadas à Comissão Europeia:

  • Promoção da possibilidade de reparação e projeção da durabilidade dos bens de consumo
  • Garantia de uma melhor informação dos consumidores
  • Adoção de medidas atinentes à obsolescência programada
  • Reforço do direito à garantia legal de conformidade

Em 2019, adotou-se um sem-número de medidas de execução ao abrigo da Diretiva Concepção Ecológica [com o tônus na eficiência energética], a saber,

  • período obrigatório para o fornecimento de peças sobressalentes e
  • prazos máximos de entrega,
  • requisitos de concepção em matéria de desmontagem/montagem de componentes.

O novo Plano de Ação para a Economia Circular de 11 de março de 2020, promove um sem-número de iniciativas específicas tendentes a

§ combater a obsolescência precoce e

§ promover a durabilidade,

§ propiciar a reparação e a acessibilidade dos produtos, bem como

A Capacitação dos Consumidores para a Transição Ecológica ter-se-á como essencial para conferir deveras aos consumidores um direito efetivo à reparação.

A revisão da Diretiva Venda de Bens (de novo na calha quando os diplomas de transposição entraram em vigor, nos Estados-membros, a 1 de janeiro pretérito) proporcionaria uma oportunidade para analisar o que mais pode ser feito ainda de modo relevante para promover a reparação e incentivar produtos circulares e mais sustentáveis.

A análise incidirá sobre pontos essenciais, a saber:

§ a preferência pela reparação em detrimento da substituição,

§ o alargamento do período mínimo de garantia para os bens novos ou em segunda mão, ou

§ um novo período de garantia pós-reparação (que já existe em vários ordenamentos dos Estados-Membros da União, aliás, em dados termos, como ocorre no ordenamento jurídico pátrio, entre outros).

O Parlamento Europeu, por Resolução de 25 de Novembro de 2020, conferiu particular relevo ao "Direito à Reparação dos Produtos" (intentando, ao que parece, uma estratégia fulcral em matéria de reparação de bens de consumo).

Amplo leque de medidas permitiu-se propor:

· A outorga de um "direito à reparação" aos consumidores;

· A promoção da reparação em vez da substituição;

· A normalização das peças sobressalentes susceptível de promover a interoperabilidade e a inovação;

· O acesso gratuito às informações necessárias para a reparação e a manutenção

· Um cacharolete de informações que aos produtores incumbe em matéria de disponibilidade de peças sobressalentes, atualizações de software e a faculdade de reparação de um produto, nomeadamente acerca de:

  • o período estimado de disponibilidade a partir da data da compra,
  • o preço médio das peças sobressalentes no momento da compra,
  • o prazos aproximados recomendados de entrega e reparação e
  • informações sobre os serviços de reparação e manutenção

· O período mínimo obrigatório para o fornecimento de peças sobressalentes e consonância com a duração de vida estimada do produto após a colocação no mercado da última unidade;

· A garantia de preço razoável para as peças sobressalentes;

· A garantia legal para as peças substituídas por um reparador profissional quando os produtos já não estiverem cobertos pela garantia legal ou comercial;

· A criação de incentivos, como o "bónus do artesão", suscetíveis de promover as reparações, em particular após o fim da garantia legal.]

A 30 de Março de 2022, na proposta de Resolução sobre o Direito à Reparação, o Parlamento Europeu ensaia propor à comissão [Texto aprovado de forma expressiva a 7 de abril de 2022, à data ainda não publicado no Jornal Oficial]:

a. Se confira à massa anônima de consumidores um direito efetivo à reparação susceptível de abarcar distintos aspectos do ciclo de vida dos produtos: abordagem que decorreria de diferentes domínios políticos interligados, vidando designadamente a concepção dos produtos, os princípios éticos fundamentais da produção, a normalização, a informação dos consumidores [a rotulagem sobre a possibilidade de reparação] no que tange à vida útil dos produtos e, sempre que possível e adequado, os direitos e garantias que aos consumidores se reconhecem;

b. Que o "direito à reparação" seja proporcionado, baseado em dados concretos e eficientes no tocante aos encargos emergentes e se revele susceptível de proporcionar o equilíbrio entre os princípios da sustentabilidade, da proteção dos consumidores e de uma economia social de mercado altamente competitiva;

c. Que o "direito" efetivo "à reparação" crie vantagens competitivas significativas para as empresas europeias, abstendo-se de lhes impor encargos financeiros desproporcionados, inspirando a inovação e incentivando o investimento em tecnologias sustentáveis;

d. Conquanto, no quadro atual, os consumidores tenham o direito de escolher entre a reparação e a substituição de bens não conformes, ao abrigo da Diretiva Venda de Bens de 20 de Maio de 2019, a reparação pode, em muitos casos, ser uma escolha mais eficiente em termos de recursos e com impacto neutro no clima;

e. Observa, porém, que, na prática, os consumidores optam geralmente pela substituição em detrimento da reparação, o que pode dever-se ao elevado custo da reparação;

f. Frisa que a substituição do produto deve continuar a ser uma alternativa se o consumidor e o fornecedor nisso acordarem, atendendo a que a reparação pode ser, a um tempo, demasiado morosa quão onerosa;

g. A Comissão Europeia que proponha, na iniciativa alusiva ao direito à reparação, uma série de medidas destinadas a promover e incentivar os consumidores, os produtores e os fornecedores a optarem pela reparação em detrimento da substituição

h. Que a próxima revisão da Diretiva Venda de Bens inclua, entre outras, medidas destinadas a incentivar os consumidores a optar pela reparação em detrimento da substituição, tais como a obrigação de fornecer um produto de substituição enquanto determinados produtos estão a ser reparados;

i. O Parlamento Europeu entende que, para incentivar a reparação dos produtos, devem ser oferecidos incentivos aos consumidores que optem por reparar em vez de substituir;

j. E considera que uma garantia alargada poderia constituir um incentivo para optar pela reparação em detrimento da substituição; acrescenta que os fornecedores devem informar sempre os consumidores de todas as opções à sua disposição, de forma equitativa, designadamente sobre os direitos de reparação e de garantia conexos;

k. Sublinha, enfim, que a garantia renovada — os dois anos —, em 2019, constitui uma regra de harmonização mínima e que apenas escasso número de Estados-membros vai para além desse período [Portugal e Espanha alargaram a três anos…];

l. O Parlamento entende ainda, por conseguinte, que a revisão da Diretiva Venda de Bens, ora na forja, como se anunciou, deve também propor a prorrogação da garantia legal para além de dois anos para algumas categorias de produtos; observa, ainda, a importância da plena harmonização do período de garantia legal [algo de que se tem fugido como o diabo da cruz…];

De um comunicado emanado do Gabinete de Imprensa da Comissão Europeia a 31 de março de 2022, realce para:

"A Comissão Europeia apresentou hoje, 31 de Março de 2022, um pacote de propostas centradas no Pacto Ecológico Europeu para que os produtos sustentáveis se tornem a norma, para impulsionar os modelos empresariais circulares e para capacitar os consumidores para a transição ecológica. Como anunciado no Plano de Ação para a Economia Circular, a Comissão propõe novas regras para que quase todos os bens físicos no mercado da UE se tornem mais amigos do ambiente, mais circulares e mais energeticamente eficientes ao longo de todo o ciclo de vida, desde a fase de concepção até à utilização diária, reafetação e fim de vida.

A Comissão Europeia apresenta hoje também uma nova estratégia para tornar os têxteis mais duradouros, reparáveis, reutilizáveis e recicláveis, lutar contra a moda rápida, os resíduos têxteis e a destruição de têxteis não vendidos e garantir que a sua produção seja consentânea com o pleno respeito dos direitos laborais.

Uma terceira proposta visa promover o mercado interno dos produtos de construção e assegurar que o quadro regulamentar em vigor é adequado para permitir que o ambiente construído cumpra os nossos objetivos em matéria de sustentabilidade e clima.

Por último, o pacote inclui uma proposta sobre novas regras destinadas a capacitar os consumidores para a transição ecológica, de modo a que os consumidores estejam mais bem informados sobre a sustentabilidade ambiental dos produtos e mais bem protegidos contra o branqueamento ecológico."

Daí que se estime ainda um largo percurso, por entre ‘trancos e barrancos’, como sói dizer-se, até que o "direito à reparação" "qua tale" se inscreva de modo fundante na Carta de Direitos do Consumidor Europeu.

Não vale "dourar a pílula" e aparecer em escritos de distintas latitudes como se havendo instituído, na Europa, um autêntico, autônomo e genuíno "direito à reparação", quando tal é ainda uma miragem… e não passa deveras do papel!

A aguardar para ver…

Autores

  • Brave

    é antigo professor da Universidade de Paris d’Est, director do CEDC (Centro de Estudos de Direito do Consumo de Coimbra) e fundador e primeiro presidente da AIDC (Associação Internacional de Direito do Consumo).

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